Rosário
Fusco de novo e sempre. Após publicar uma série de crônicas sobre a entrevista
que eu e Joaquim Branco fizemos com o escritor, que saiu no Pasquim há quarenta
anos, lembrei-me de um texto que escrevi também nos anos 1970 e de que Fusco
gostava muito. Ele foi publicado em 1985 no livro “Marginais do Pomba”. Editado
por Fernando Cesário, Joaquim Branco e por mim, “Marginais do Pomba” era uma
antologia de textos de vários escritores cataguasenses, dos Verdes dos anos
1920 ao grupo da Revista Meia Pataca, anos 1940; daí ao pessoal do Totem,
década de 1960, chegando aos então novíssimos dos anos 1980.
Como
aqueles imponderáveis personagens do realismo fantástico (evoé, Fusco!), também
o personagem do meu texto-entrevista (verdadeiro? fictício?) repetia sempre o
seu bordão “eu sou um espetáculo”, como se vírgula fosse. A partir daí, Fusco
não podia me ver sem bradar do alto dos seus metro e oitenta: “eu sou um
espetáculo”. Era mesmo: não o meu personagem, mas o próprio Fusco. Meu texto
vai a seguir, como mais uma homenagem ao meu espetacular amigo Rosário Fusco de
Souza Guerra.
RINGO NÃO DISCUTE: MATA
Três
indivíduos armados com metralhadoras penetram em uma agência bancária no
interior do Rio Grande Sul e rendem o gerente. Sorrateiramente, o guarda do
banco saca seu 38 carga dupla e com o braço colocado às costas – no melhor
estilo dos caubóis – liquida de uma só vez os assaltantes.
Assim
Luiz Mendonça, 37 anos, solteiro, guarda bancário e fotógrafo amador, explica o
cognome de Ringo. Onze mortes nas costas (“mas pela frente”), inclusive um
goleiro do Coríntians (“eu era centroavante do Santos”), morto com potente
tirambaço (“a pelota bateu na trave e acertou nas costas, bem nos rins: morreu
na hora”).
Traído pelos coronéis
Ringo é
do interior de Minas, filho de índia com espanhol (“mas eles gostam de ser
brasileiros”). Foi tropeiro, carregou caminhões de terra, cortou bambu para
fábrica de papel. “Meu passado é muito triste, sou um humilde, um humilhado. Mas
sou um espetáculo”.
Aos 20 anos entra para a polícia em
Belo Horizonte e acaba indo para o Rio Grande do Sul com o SEG (Serviço
Especial de Guarda), “na captura de bandidos”. Pelo sim, pelo não, terminou
expulso após longa temporada num Hospital Psiquiátrico. Dezessete vezes tratado
a choques elétricos. “Fui traído pelos coronéis”.
Fotógrafo de polícia, fazia reportagens
com Pio XII, “o Amaral Neto da época”. Aprendeu sozinho: “sou um burocrata
formado, um autodidata fotográfico. Faço reportagens e os clientes não pagam.
Mas não sou moleque: jamais bato flash sozinho para enganar a freguesia. Sou
profissional honesto e positivo. Eu sou um espetáculo”.
Um espetáculo
Nove
horas da noite num botequim do interior de Minas. Cabelo à francesa,
literalmente penteado pra frente, camisa vermelha com bolotas brancas, terno de
linho branco com bainha dupla, imensos óculos escuros cobrindo quase metade do
rosto, máquina fotográfica a tiracolo, Ringo rides again.
Entre
um chope e um conhaque, e outro, e outros, fala de sua ida à Europa, Oliúdi
& adjacências, acompanhado o indefectível Pio XII, “um espetáculo, o maior
repórter que já existiu”. Relembra um campo de nudismo que fotografou: “Uma
pouca vergonha. Não ignorei a pátria deles (Oliúdi?), mas ela é porca. Não é
como o Brasil, onde vivemos prazerosamente e a amizade é total. Aqui não existe
covardia. Melhor do que o Brasil só Deus. Mas sou internacional”.
Sexual masculino
Para de repente, leva um cigarro à
boca, acende-o à maneira dos mocinhos de cinema, riscando o fósforo com uma só
mão, e emenda de um jato, quase sem respirar: “Sou um infeliz no mundo. Mas sou
muito honesto. Dou muita falta de sorte com as mulheres. Fui noivo, mas
casamento não é pra agora, é pra hoje ou amanhã. Mulher é mulher: namorada dá
dor no saco. Incha. As mulheres são comerciais de acordo com a frequência do
sexo masculino”.
Solta a fumaça, esvazia o corpo,
estende o indicador e completa solenemente: “Mas eu frequento o feminino. Sou
um sexual masculino. Sou um cara psicológico, um espetáculo”.
A vitrola do botequim ataca de
Roberto Carlos, mas Ringo rebate de sola: “Esse cara não é bom, bom mesmo é o
Waldick Soriano. O Waldick é um grande patriota, como o Presidente João Figueiredo:
amou, cresceu e lutou pelo Brasil. Já o Pelé é patriota em despedida. Jango,
não sei, foi traído. Mas JK era um bom patriota, como o Getúlio, que foi um
espetáculo, o dono do Brasil. Tudo que o Brasil faz é bom porque tem
progressão. A democracia sou eu. Amo a terra em que vou morrer.”
Deixa comigo
“Quando era menino, meu pai me deu
uma chicotada por causa de um boi. Mamãe me protegeu. Papai me abandonou no mundo.
Gosto muito da mamãe. É uma piranha, mas gosto dela: é mulher patriota, um
espetáculo.
“Meu revólver é silencioso e sou
rápido como o Ringo. Puxo mesmo o gatilho. Mas me arrependo das mortes que fiz,
é um horror a minha vida. Dormindo, as mortes me sobem pelas pernas, como
minhocas. Sou mau, mas não faço maldade. Deus não deixa. As boas amizades é
sempre a mim, entanto a maldade não existe entre ambos (põe aí – ambos: plural). Meu passado total é uma
tristeza. Sou muito psicológico, eu sou um espetáculo.”
Nessas
alturas, já de porre, Ringo cisma que o dono do botequim está nos olhando de soslaio.
Tira os óculos e diz, tão solene quanto lhe permite a voz pastosa: “Deixa
comigo”. E dá de alisar a cintura. Percebo que o famigerado 38 esta sob o
paletó. Realmente, uma loucura. Só a custo consigo retirar nosso herói do
chamado recinto. Ringo some dentro das pradarias da meia-noite, o andar
gingado, de caubói bêbado. Um espetáculo cambaleante e para sempre.
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