A recente morte de Cauby
Peixoto me fez lembrar a canção que Caetano Veloso escreveu para ele, e que foi
título do álbum gravado em 1980: “Lembro
eu deitado na relva/ No frio da manhã/ Numa clareira da aldeia Tupy/ Entre mil
pássaros só uma voz/ Uma voz, minha mãe/ Música doce/ Chamando meu nome/ Cauby!
Cauby! “. Lembrei-me também de
“Bastidores” a canção de Chico Buarque, aquela do “Cantei, cantei/ Nem sei como
eu cantava assim/ Cantei, cantei/ Jamais cantei tão lindo assim” – um de seus
carros-chefe. E, claro, “eu me lembro muito bem”, e sempre, de “Conceição”, a
música de Dunga e Jair Amorim por ele imortalizada.
Em
meu livro “Há Controvérsias 2” (Ed. Artepaubrasil, São Paulo, 2011), publiquei
duas crônicas tendo como mote Cauby Peixoto, ou melhor, um dito ao acaso de
minha irmã sobre ele. A tirada da Rosa acabou gerando os dois textos. Um deles,
sobre pessoas que brilharam, que “arrasaram” em seu métier; outro, ao
contrário, sobre o pessoal que “se ofuscou”, pisou na bola – literalmente aqueles
que “desarrasaram”. Na segunda-feira, 25
de abril de 2012, véspera do lançamento do livro em São Paulo, li que Cauby
iria cantar no Bar Brahma, onde às vezes vou quando estou em Sampa, ali naquela
esquina famosa da Ipiranga com a Avenida São João. Resolvi assistir ao show e
aproveitar para levar um livro pro Cauby, afinal ele era um dos personagens do
dito cujo. Mas Cauby acabou não aparecendo e quem fez o show foi Elza Soares –
que, aliás, e como sempre, “arrasou”.
Havia
muito tempo que não o via, desde uma noite no Rio dos anos 1960 em que saímos de
sua boate, o Drink, na Av. Princesa Isabel, e caminhamos – eu, Cauby e o
baterista Afonso Vieira (que tocara com ele) madrugada afora até a porta de seu
edifício no início da Rua Barata Ribeiro. Cauby morava nas proximidades de onde
eu e Afonsinho nos “escondíamos”: no Edifício Richard, o famigerado “200”. Ele acabara
de fazer magnífica performance, cantando standards do jazz numa jam-session no final da noite, e foi
sobre isso que nós três ficamos conversando de pé ali, e noite adentro – Cole
Porter, Gershwin e mais, muito mais – num tempo em que ainda se podia papear
sem medo nas calçadas de Copacabana. Eu com o pescoço doendo de tanto olhar pra
cima: o “professor” (como Cauby tratava as pessoas, qualquer pessoa) era alto,
muito alto. De entortar qualquer pescoço.
Nunca
mais o vi. Minto, passaram anos muitos anos quando num show do Marcos Valle
naquela boate que ficava no subsolo do Hotel Méridien, depois que a Regine´s
acabou (como era mesmo o nome? Acho que “Rio´s”, mas há controvérsias), percebi
na mesa à minha frente, em meio ao lusco-fusco, o perfil da moça com muito
chiquê, de longos cabelos ondulados, que tentei lembrar de onde conhecia.
Súbito, ela se virou ligeiramente. Levei um susto: era o Cauby – ele que
gostava de brocados, lamês & paetês e que sempre, dentro ou fora dos
bastidores, “com muito brilho se vestiu”.
“Sim, eu
me lembro muito bem” – assim começa uma das duas crônicas que escrevi sobre o
Cauby. “O aniversário da Rosa estava acaba-não-acaba quando ela colocou para
girar um disco com não sei quem cantando. Possivelmente a Elis, até hoje a
preferida de minha irmã. A turminha começou a nomear seus cantores/cantoras
preferidos, quando alguém tocou no nome do Cauby Peixoto. O pessoal caiu de pau
no coitado do Cauby: ridículo, cafona, um repertório que vou te contar. Foi
quando a Rosa mandou de lá: “É, pode ser, mas o Cauby arrasou na
Conceição”. Nunca vou me esquecer
daquele “Arrasou na Conceição”, uma tradução mais que perfeita da grandeza de
qualquer um, artista ou não, mesmo quando ataca da “Conceição”, aquela que “vivia
no morro a sonhar com coisas que o morro não tem”.
A seguir, eu continuava elencando nas
duas crônicas e por vários parágrafos uma série de “arrasos na Conceição”, de
Ella Fitzgerald a Elis; de Cole Porter a Tom Jobim; de Jeanne Moreau a Giulieta
Masina; de Truffaut a Fellini; de Nara
cantando Lindoneia a Gal cantando Lily Braun; do show de Caetano para Fellini,
em Rimini, ao mesmo Caetano de Força Estranha e do álbum Transa; do Vinicius do
poema O Haver ao Maiakóvski de A Plenos Pulmões; do Lance de Dados de Mallarmé
ao Barco Bêbado de Rimbaud; do João Cabral de Duas Águas ao Drummond de Elegia
1938; do Ungaretti de Mattina ao
Keats de “A thing of beaty is a joy forever”. E também de “desarrasos na
Conceição”: J. Edgard Hoover, o chefão do FBI, dando uma total “desarrasada na
Conceição” ao falar sobre John Lennon: “Não há espaço nos EUA para algumas
almas tímidas que pregam a paz a qualquer preço, nem para aqueles que entoam os
slogans ´antes comunista que morto´ (better
red/ than dead). Precisamos de homens e mulheres com capacidade para a
indignação, para defender a causa da democracia”.
Mais tarde Hoover foi rebatido por
Gore Vidal: “(...) Lennon era um inimigo nato das pessoas que governavam os EUA
na época. Ele era tudo que eles odiavam. Eu diria que ele representava a vida,
o que é admirável. E Nixon e Bush (e
Hoover, acrescento) representavam a morte. E isso sim, é uma droga”. Em
1976, com Nixon já defenestrado do poder, Lennon ganha a causa e recebe o Green
Card. Perguntado se tinha algum ressentimento, John arrasou geral na Conceição:
“Não, acredito que o tempo se encarrega dos patifes”. Poderia acrescentar,
hoje, que os senadores Lindeberg Farias e Vanessa Grazziotin andam arrasando na
Conceição, em descompasso com Cunha & Temer, um só e tenebroso “desarraso”.
Termino esses “recuerdos de la
Concepción” reproduzindo o parágrafo final de minha primeira crônica sobre
Cauby in “Há Controvérsias 2”: “Madrugada dos anos 60: Copa-Leme. Antes de chegar
em casa – vindo não sei de onde, nem sei como –, entro prum último drink na
boate do mesmo nome, dos irmãos Araken, Moacir e do não menos Cauby Peixoto, o
próprio. Fim de noite, fim de show, derradeiros bêbados em mesas separadas,
garçons sonolentos, lusco-fusco. No palco, alguns dos músicos que restaram
abrem uma derradeira jam-session: meu
caro amigo Afonsinho na bateria (sua bateria, aquela “Conceição” que ele arrasava
sempre), o jazzista Moacir no piano. Cauby acabara seu show, onde Conceição
naturalmente fora a estrela. Copo na mão, cigarro na outra, volta ao palco e
entra no embalo do improviso. Ataca de Cole Porter, sempre ele, um formidável I´ve Gotta You Under My Skin. Aquilo
inoculou em minhas veias uma inesquecível sensação. Nunca mais ouvi nada tão
intenso. Ali foi quando, sem o saber, Cauby realmente “arrasou na Conceição”.
3 comentários:
Morre um dos maiores interpretes da música popular no Brasil. Isso porque cantava em Inglês na perfeição. Grandes textos.
Como deixar na gaveta a memória tão cara dos sentidos e dos sentimentos, se o viver é um bem crônico? Arrasou, Werneck.
Como deixar na gaveta a memória tão cara dos sentidos e dos sentimentos, se o viver é um bem crônico? Arrasou, Werneck.
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