Texto
publicado no meu livro “Há Controvérsias 2”, que transcrevo agora em homenagem
aos 100 anos de Clarice Lispector (1920-1977).
Engraçado
como a gente vai assumindo um certo tipo de idiossincrasia que perdura vida
afora. Fernando Pessoa nunca me interessou como poeta, e nunca escondi isso, o
que me granjeou – aqui pra minha horta, que é onde cabe melhor granjear – um
sem-número de mal-entendidos e até rusgas com namoradas tipicamente fernandólatras.
Uma delas, não por acaso, de sobrenome Horta. Outra idiossincrasia é com
Clarice Lispector. Fora um ou outro conto lido assim-assim na juventude, ainda
na Revista Senhor, ou de crônicas esparsas em sua época de Jornal do Brasil,
jamais consegui chegar perto do coração selvagem de altíssimas elucubrações de
suas maçãs no escuro – ou mesmo me interessar por aquele tipo de paixão segundo
a, b, c, d, e, f, GH.
Mas
eis que tudo um dia tem um dia pra tudo. Eu era editor de textos do Centro
Cultural Banco do Brasil-Rio, nos anos 1990, e o CCBB programou em 1992 uma
grande exposição sobre Clarice por ocasião dos 15 anos de sua morte. Como
sempre, fui encarregado de redigir o texto oficial do CCBB para o catálogo do
evento. Mais um entre aquela infinidade de textos que escrevi sobre teatro,
música, artes plásticas, literatura, fotografia, cinema & etc etc, sem
nunca colocar meu nome, assinando sempre
“Centro Cultural Banco do Brasil” – o
que quase acabou me deixando com uma baita crise de identidade. Às vezes,
durante os vernissages, sentia-me tentando a “esquecer o Ronaldo” e
apresentar-me assim: “Prazer, CCBB”.
Gisela, Caetano, Lúcio
Minha sala no CCBB era em frente àquela em que
ficaria a exposição de Clarice, no segundo andar do prédio. Gisela Magalhães, a
arquiteta curadora do projeto de ambientação da mostra, vinha sempre bater papo,
tomar café e fumar um cigarrinho amigo, amigos que ficamos. E me falava de sua
paixão por Clarice e por Glauber Rocha (seria ela a curadora da belíssima
exposição sobre Glauber que realizaríamos em seguida). Durante nossas
conversas, eu ficava pensando o que iria escrever – logo eu, que não era lá
muito chegado em Clarice. Claro que não disse isso pra Gisela, que me falava
entusiasmada que o Caetano Veloso estava também preparando um texto especial
para a exposição.
Caetano
escreveria em seu texto, que só li depois que aprontei o meu: “O primeiro
contato com um texto de Clarice (eu ainda morava em Santo Amaro) teve um enorme
impacto sobre mim. Senti muita alegria por encontrar um estilo novo, moderno –
eu estava procurando ou esperando alguma coisa que eu ia chamar de “moderno”,
que eu já chamava de “moderno” –, mas essa alegria estética (eu chegava mesmo a
rir) era acompanhada da experiência de crescente intimidade com o mundo
sensível que as palavras evocavam, insinuavam, deixavam dar-se”.
E
havia ainda o Lúcio Cardoso (cujo texto também só li depois, com o catálogo já
pronto), a dizer coisas como “Clarice devora-se a si mesma, procurando
incorporar ao seu dom de descoberta essa novidade na sensação. Não situa seres:
arrola máquinas de sentir. Não há personagens: há maneiras de Clarice inventar.
Suas sensações, todas elas de alto talento, repousam numa mecânica única – a da
surpresa”. Bem, Caetano e Lúcio deviam gostar
da Clarice. Mas, eu?
Fiz
então o que sempre faço para construir meus textos. Mergulhei no universo de
Clarice, li muita, muita coisa dela, pra ver no que dava. Não dava em nada.
Nada brotava e o dia de mandar o texto pra gráfica chegando. Na véspera, como
sempre, varei a noite e boa parte da manhã lendo-relendo-marcando-teclando as
pretinhas de minha velha “Lettera-
Saiu
um texto muito curioso, o dia já alto, onde eu não mencionava o nome Clarice
Lispector sequer uma vez. Será que estava temendo que alguém percebesse que
agora eu “gostava-não-gostava” dela? Com vocês, então, o texto do “Centro
Cultural Banco do Brasil” (“Prazer!”)
para a exposição “A paixão segundo Clarice Lispector”. Muita gente achou
uma das melhores coisas que escrevi para o CCBB. Pois é, Clarice, quem diria!
NO
TIMBRE DE SUAS PALAVRAS
Ela
gostava de palavras, de frases soltas e “faruscantes”. Palavras sem sentido,
que eram sua liberdade, “impacto de sílabas ofuscantes”. E pouco se importava
em ser entendida, pois sabia não escrever por escolha, mas por íntima ordem de
comando.
Ela
possuía intensamente em si um pedacinho de âmbar. E exalava com gosto esse
cheiro de almíscar e mistério que sabia a inspiração que não é loucura, mas
Deus ou qualquer coisa simples cheirando a âmbar. Leve e intensamente. Ela dava
sentido à contradição, ordenava os paradoxos.
Ela
sabia como ninguém que escrever é reflexo do perguntar. E que estava destinada
a indagar sempre, pois trabalhava no diapasão do inesperado. Ela escrevia assim
por fatalidade de voz. E era seu próprio timbre: insígnia, amplidão, riqueza
sonora. E queria escrever com palavras tão agarradas que não houvesse intervalo
entre elas e ela. E no fundo não havia, pois escrever foi resultado fatal de
seu ato de vida.
Ela
escrevia sabendo que escrever é sem aviso prévio. Apenas vem, e vinha assim
como se vivesse ao correr do tempo, sem fazer literatura. Ela apenas escrevia e
assim se livrava de si e assim talvez pudesse descansar.
Ela
vivia intensamente as palavras. Essas palavras que estão todas aqui, com o
poder de atrito de suas sílabas ofuscantes. Estão aqui elas e ela, intensamente
juntas, fábricas e fabrico. Ela se faz inteira nesses fragmentos, nesses
estilhaços de si mesma, que agora se juntam plenos de vida, tanta vida, tanta.
Ela
amaria aqui estar, junto a suas palavras. Elas e ela, intactas como se
repousassem. Está aqui sua voz, seu timbre de rara ressonância surgindo dessa
ausência em meio-tom que se presentifica no preto-e-branco dessas fotos, nesse
ambiente tão ela, agora exposto e catalogado em tons que saltam do marinho mais
profundo para perto, bem perto do selvagem vermelho de seu coração.
Ela
soube sempre de suas palavras, como se soubesse sempre de sua magia, do
fascínio desses filmes que aqui estão e que só existem por elas existirem, suas
palavras. Suas palavras nessas leituras dramatizadas, suas palavras que
desvelam o abstrato tecido de suas pinturas agora reveladas, suas palavras
presentes mesmo na luz que foca a companheira mais íntima, a velha máquina de
palavras a quem pensava presentear não sabia como, agradecida pela amiga que
captava suas sutilezas e a fazia viver intensamente essas palavras, suas
palavras, melhor homenagem que lhe fazemos nesses 15 anos de ausência que se
presentifica agora e sempre. Gostavam dela, as palavras, essas palavras que se
entregostam, suas palavras desprendendo-se de si, livrando-a de si mesma, como
se descansassem. Elas e ela.
A
dama do Leme e a maçã no escuro
Clarice
veio de um mistério.
partiu para outro.
Ficamos sem saber a
essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Carlos
Drummond de Andrade
Finalizo
essa homenagem ao centenário de Clarice Lispector com alguns dos vários emails
recebidos sobre meu texto “No timbre de suas palavras”: emails e mais emeios e
mais, muito mais. Um espanto, essa moça. Drummond tinha razão: que mistério tem
Clarice?
“Adorei,
Ronaldo. Fica devendo uma crônica sobre o documentarista que saía de câmera em
punho para registrar os autores, diretores, eventos do CCBB (“Prazer”!) Bjs.
Martha”.
Martha Pagy, Rio,
Ex Coordenadora da Divisão de Artes do CCBB.
“Ronnie,
excelente a prosa-poema que escreveu sobre Clarice. Conseguiu fazer bem, sem
dizer que gostava daquilo sobre o que escrevia. Compartilho um pouco com você
do ponto de vista, mas acrescento um gosto-não-gosto assim: divido sua leitura
com outra do tipo Graciliano/Cabral + Borges/Camus. Além disso, digo que seus
contos são melhores do que os romances. Já experimentou ler “Mistério
Joaquim Branco, poeta,
Cataguases.
“Chose de loque. Você acaba de despir o
pé da estátua da criação do texto! Concordo com você sobre Fernando Pessoa e
Clarice (exceto os Contos de São Cristóvão e aquele da mulher pequenina que
saiu na revista Senhor). Mas você dá uma aula, aula mesma, sobre os fundamentos
do discurso da ambiguidade. (...) Seu texto tem a força de tomar o significado
que lhe desse o leitor. Seus amigos lacanianos devem ter amado. Álvaro de Sá
disse de meu livro Inexílio que era
um poema oco, um vazio que o leitor teria de completar com sua experiência
própria. Você fez coisa melhor... dispensou o leitor. Não deu a menor ajuda nem
a Clarice nem ao visitante da exposição para que se encontrassem num
significado comum. Acho que esse seu texto proteico propõe questões de
dimensões “gregas” e merece ser discutido do ponto de vista da sua
“finalidade”, de sua razão e teleologia. Ou seja, você mexeu num vespeiro e eu
só estou agitando os bichinhos. Beijos arcádicos ou acádicos. Xico Cabral”.
Francisco Marcelo
Cabral, poeta, Rio.
“Seu
texto sobre Clarice estava tão grandiosamente bom que o recortei e o guardei.
Li as apreciações sobre ele e lhe mando a minha: você perfura com a agulha da
inteligência e da sutil sensibilidade o texto literário de Clarice que ele
mostra a face de dentro, a que tem olhos para ver o que é perturbador em sua
essência primeira. Abraços, Lina”.
Lina Tâmega Peixoto,
poeta, Brasília.
“Pois
é, Ronaldo, você tem todo o direito de não gostar de Fernando Pessoa e de
Clarice Lispector, dois ícones intemporais da literatura de língua portuguesa.
Mas encontro no texto que manda pela internet um caso enternecedor de amor não
declarado pela sempre bela e amável Clarice de todos os leitores. Parabéns pela
sinceridade. E abraços do leitor de sempre, Lázaro”.
Lázaro Barreto, escritor, Divinópolis.
“Fala,
Ronaldo. Para entrar na corrente provocada pelo teu artigo, estou te mandando
este poema que devo ter escrito lá pelos anos 80 e que incluí entre os...
contos de “Malvadeza Durão e outros contos” (Agir, 2006). Abraço do teu leitor
Flávio”.
Flávio Moreira da
Costa, escritor, Rio.
Fecho
então esta controvertida e misteriosa série de “claricices/claricidades” com o
belo poema “Maçã no Escuro”, enviado por meu amigo, o hoje saudoso escritor
Flávio Moreira da Costa sobre “A Dama do Leme”. Engraçado que também eu morei
por muitos anos no Leme, mas nunca topei com minha vizinha Clarice. Corre assim
o poema do Flávio Moreira da Costa:
A Dama do Leme apalpa uma maçã no escuro.
Sobressalta-se com o tic-tac do
relógio
é a hora, a hora da estrela
e do lobo:
Tudo e nada na balança da Casa do Tempo
quando passado invade futuro e o
presente
é apenas uma pergunta
pré-socrática.
(Nessa cidade sitiada,
"a verdade é um
instante".)
Só e só
como quem desata amarras, laços
de família:
– onde estivestes à noite, Dama
do Leme?
O lustre, o lastro, olhos de lagarto,
Ela caminha a apalpar seus arredores
na via crucis do corpo. Barata alguma
a lhe invadir a consciência e a
filosofia.
Nada de legiões estrangeiras,
nada
de imitações da rosa:
a felicidade é clandestina!
Ela sonha, ela grita, ela chora,
ela ri
o invisível riso do ser diáfano.
A Dama do Leme come sua maçã no
escuro
e pulsa, pulsa
o coração selvagem da vida.
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