E ponto final. Assim abro eu este texto, com um
ponto que não fecha, pois vai de encontro a qualquer argumento. Exatamente como
faz o desarticulado Capitão Talkei, que solta um “e ponto final” cortando
perguntas que o incomodam e para as quais não tem argumentos. “Ponto final uma
pinoia: o Brasil não é quartel”, diz Mario Sergio Conti em sua coluna do último
sábado na Folha de S.Paulo, quando solta uma série de pontos e vírgulas: “O
governo é integrado por beócios; aventureiros; idiotas inúteis; tratantes;
bobalhões; Sérgio Moro; pintores de rodapé”.
Semana passada, os estudantes brasileiros em
marcha por cerca de 200 cidades contra a (des)educação governamental,
acompanhados por uma massa popular de mais de dois milhões de pessoas me levou
de volta à Paris de 1968. Tal e qual. “Sejam realistas, busquem o impossível”
foi um dos muitos slogans grafitados nos muros parisienses pelos jovens
estudantes comandados por Daniel Conh-Bendit.
“Era
então maio e todas as tevês, todos os livros, jornais, revistas, toda a mídia,
toda, todos, todos eles, toda Paris – só se falava daquele maio de 50 anos
atrás. Daquele maio de 68 – daquele “carnaval”, daquele chienlit segundo De Gaulle – da força da palavra de (des)ordem de
Daniel Cohn-Bendit. A Paris do maio de 1968, com os estudantes e operários
tomando as ruas, as ruas que repercutiam com toda a força aquele ´é proibido
proibir´: a imaginação no poder”.
Com
esse parágrafo eu terminava uma série de crônicas escritas em junho do ano
passado, ao voltar de Paris, a maioria tendo a cidade e o maio de 68 como foco.
Não sem antes reservar alguns tópicos para o poeta franco-suíço Blaise
Cendrars, sobre quem encontrara num dos buquinistas das margens do Sena uma
extensa e bem apanhada biografia escrita por sua filha. Cendrars acabou
conectado a Cataguases, pois escrevera um poema em 1927 dedicado “aux jeunes
gens de Catacases” (sic), aqueles companheiros de Rosário Fusco na aventura da
Revista Verde.
Lembro
que na época meu amigo Angelo Oswaldo, então Secretário de Cultura de Minas,
mandou-me um poemail registrando minha crônica: “Caro Ronaldo,/ não
só rosário/ ofusca paris/ de
jeunes gens/ de catacases/ continuam a/ brilhar
na cidade/ de cendrars/ e o rio pomba/ deságua na cena/ em que o poeta/ roneck
atravessa/ o sena e acena/ para os que daqui/ aplaudimos
o ás/ de cataguases”.
Mas, como disse Cendrars, “jazz
vient de jaser” – das muitas vozes em dissonante andamento, às vezes em
algaravia, em contínuo improviso – e Paris, digo eu, vem de lazer. Melhor, de
“jazer” que é jazz e prazer. Turistas transgressores, deixemos – como no maio
de 2018 – um pouco a cultura “oficial” de lado. Agora, nada de Louvre, nada de
Versailles, nada de Beaubourg, apenas uma rápida passada pelo Orsay, que está
no caminho, e vamos lá, que Paris é
também e ainda La Paris Canaille de
Léo Ferré. A velha canção que ouvi primeira vez lá pelos anos 50 com Juliette
Gréco e depois tantas e tantas vezes num velho vinil dos anos 60 de Yves
Montand – e que volto a ouvir agora numa relativamente recente (2014) e
vibrante gravação pop da jovem chanteuse
Zaz (Isabelle Geffroy):
“Paris marlou/ Aux yeux de fille/ Ton air filou/ Tes vieilles guenilles/
Et tes gueulantes/ Accordéon/ Ça fait pas d'rentes/ Mais c'est si bon // (...) //
Paris flon flon/ T'as l'âme en fête/ Et des millions/ Pour tes poètes/ Quelques
centimes/ A ma chanson/ Ça fait la rime/ Et c'est si bon”. Arrisco uma
tradução “de prima” para esses dois fragmentos da canção, que é imensa: “Paris
parasita/ Vista pela menina/ Seu ar que
hesita/ Velho trapo que desafina/ E sua gana/ Acordeon/ Isso não gera grana/ Mas
isso é bom// (...)// Paris cafetão/ Sua
alma em festa/ E milhões/ Pra seus poetas/ Trocados em cima/ Pra minha canção/ Que
tem rima/ Acordeon/ E isso é bom”.
E foi nesse embalo que
resolvemos encarar o show do Crazy Horse. O famigerado cabaré parisiense e seu
strip-tease inaugural ficou conhecido mundialmente pelo filme Europa di notte (1959), de Alessandro
Blasetti, que assisti com 17 anos – e, confesso, devidamente deslumbrado – aqui
na Cataguases do início dos anos 60. Quer dizer, o Crazy Horse ainda estava num
lugar meio difuso do imaginário. Tempos atrás havíamos assistido ao espetáculo
do Lido, puro circo, salvando-se as piruetas no gelo ao som de Nino Rota e,
mais recente, ao famigerado can-can do Moulin Rouge, absolutamente enfadonho.
“Totally Crazy”, o espetáculo
em cartaz no Crazy Horse é um belo “divertissement”, termo que uso aqui em
homenagem ao grande Erik Satie, com um número de sapateado dos irmãos gêmeos
Roman & Slava simplesmente sensacional. Mas a grande vedete do show é mesmo
a iluminação – o jogo de claro-escuro, de cores e luzes – delineando à la OP ART e dando forma aos corpos (e
que corpos!) das apolíneas dançarinas, com o perdão da rima. Isso porque o
desenho daquelas luzes moldando aqueles corpos de vedetes com nomes plenos de
alusões & malícia como Kika Revolver, Enny Gmatic, Dekka Dance, Tina Tobago,
me deixaram assim
meio obnubilado.
O que de certa forma me remete
a um porno-show da pesada visto em 1979 num pequeno teatro da rue des Ecoles,
nas proximidades da Sorbonne – i.e., um pornógrafo literalmente de
“escol/ástica”. Havia uma rede, sob a
qual ficavam as poltronas onde o público se sentava. No pequeno palco, atores
começavam pudicamente a representar fragmentos de uma peça de Molière. Súbito,
todos se despiam e começava uma endiabrada orgia sobre a rede e a cabeça dos
extasiados espectadores. Uma loucura como só mesmo na Paris daqueles tempos.
Não me lembro mais o nome do show, talvez “A rede de Molière”, ou coisa que o
valha, só sei que ficou em cartaz por longos anos.
Acabei fazendo um poema sobre o
show da rede, chamado “35 rue des écoles”, que está em meu livro “Doris Day by
Night”. Um porno-poema a exemplo de outros que permeiam o livro, a ponto de Affonso
Romano de Sant´Anna, a quem dediquei um deles, me escrever dizendo: “Você
está virando o poeta mais sacana de nossa poesia, indo além do Bernardo
Guimarães com esse "ELIXIR"
de Copacabana. Coisa de doido, sô! como dizia o Hélio Pelegrino! No mais é
província ideal fluindo dentro de nós. Abraço, ars”.
Para deleite dos distintos leitores,
se é que los hay, reproduzo a seguir o “35
rue des écoles”:
no petit théâtre/ trinta étrangers/ & a porosa
solidão do quartier/ sobre nós/ a rede/ nos transmuda em peixes/ sobrenadando/ sobre o nada/ no palco/ um vaudeville qualquer/ claro: molière!/ tout-à-coup/ coxas/ caras/ tout court tout/ há coup/ pernas/ paus/ tu/ tá/ coup/ vaginas varam o vau/ & trepam em vão/ sans cesse/ jusqu´à l´îvresse/ escorre/ sêmen/
mil migalhas entre mim e as malhas/ tout-à-coup/
pernas/ paus/ língua/ tu/ tá/ cu/ pinga porra nos espanhóis que pulam/ – olé!
Mas Paris gosta mesmo é de
jazz. Há poucos anos, assistimos no Le
Petit Journal Saint-Michel, um clube de jazz localizado no Quartier Latin, nas proximidades do Jardim
do Luxemburgo, a uma fantástica apresentação de jazzistas em homenagem ao
grande clarinetista e compositor americano Sidney Bechet (1897-1959), que morou
e morreu em Paris. Foi uma noitada com direito a Petite Fleur, seu maior sucesso, e a uma retomada de Summertime, que Bechet gravou em 1952
com Armstrong e o grande violonista Django Reinhardt. De quebra,
alguns sets com o Take Five de Paul Desmond, imortalizado
por Dave Brubeck, e ainda o Duke
Ellington de Take the A Train, e o
não menos Thelonious Monk de Round
Midnight.
Em maio passado, foi a vez de um ótimo
show no Café Jazz Montparnasse com um grupo de jazzistas da pesada e a surpresa
da jovem cantora parisiense Bianca Gallice. Com seu jazz manouche, um estilo de jazz cigano que se caracteriza pela
liberdade, pluralidade e quebra de padrões, Bianca domina a noite e me lembrou
muito Elis Regina, talvez por seu cabelo curtinho, à la homem.
No intervalo fui conversar com Bianca e disse isso, que ela estava parecida não só com Elis Regina (também pela movimentação em cena), como com a Jean Seberg do Acossado de Godard. Para minha surpresa, ela adorou as comparações, pois também gostava muito do filme de Godard, e se mostrou “cheia de si”, quando me perguntou pela terceira vez se eu achava mesmo isso, pois era fã de Elis Regina.
No intervalo fui conversar com Bianca e disse isso, que ela estava parecida não só com Elis Regina (também pela movimentação em cena), como com a Jean Seberg do Acossado de Godard. Para minha surpresa, ela adorou as comparações, pois também gostava muito do filme de Godard, e se mostrou “cheia de si”, quando me perguntou pela terceira vez se eu achava mesmo isso, pois era fã de Elis Regina.
Jazz manouche, liberdade, quebra de padrões, tudo isso me leva de volta ao maio de
1968, quando era “proibido proibir” e a imaginação estava no poder. Meu amigo,
o poeta e jornalista português Nuno Rebocho (como ele mesmo diz, “português nascido
em Moçambique, tendo vivido largos anos em Cabo Verde”), que esteve preso no
Porto, na sede da Pide, enviou-me depoimento sobre aqueles tempos. É outra
visada dos acontecimentos do período. Transcrevo alguns trechos a seguir.
“Maio de 68 apanhou-nos na prisão - era a sede da sinistra Pide
no Porto, onde se entrava pela Rua do Heroísmo e saía pelo cemitério do Prado
do Repouso (hoje é Museu Militar). Tinham acabado os interrogatórios pidescos e
aguardávamos ser “julgados” no Tribunal Plenário de S. João Novo. Foramos
detidos em novembro de 67 e seríamos o primeiro julgamento político da era de
Marcelo Caetano. Recebíamos, sem censura, o Paris Match e uma revista espanhola. E,
por elas, fomos acompanhando os acontecimentos na capital francesa, onde viviam
muitos portugueses exilados, fugidos ao salazarismo, à tropa e às guerras
coloniais.
“Ocorrido dois anos depois do
início da chamada ´revolução cultural proletária´ chinesa, o Maio de 68
estilhaçava a superestrutura cultural europeia (e não só), desbaratava
mentalidades estabelecidas, despertava novas mentalidades e paradigmas. Era a
sociedade dominante que estava em causa, embora a não subvertesse na sua
essência. Na esquerda, questionava ferozmente o sovietismo que esbarrara na
miserável acusação de “juif allemand”
que o líder comunista francês, Georges Marchais, fizera a Bendit (estaremos
disso esquecidos?).
“O Maio de 68 – fundindo, num
amplo movimento, o movimento sindical, a juventude estudantil e uma parte da
intelectualidade –, ao não atacar diretamente as relações sociais
estabelecidas, autolimitou-se, comprometeu-se e falhou. Mas fez abalar o
sistema, rebentou com “princípios feitos” e “verdades estabelecidas” (“é proibido
proibir” foi regra então emergente), espoletou novas mentalidades. Parecia
confirmar teses que vínhamos defendendo. Estávamos entusiasmados”.
Rebocho possui também um blog de
poesia, http://ibnmucanapoesia.blogspot.com/, onde destaca trabalhos de
inúmeros poetas que escrevem na língua portuguesa. Vários poemas de poetas
brasileiros foram ali publicados, inclusive alguns meus. Mais recentemente, ele escreveu, a pedidos, um
texto sobre nossa amizade e minha trajetória literária para a Revista “Olhares
Amazônicos”, editada em Roraima por Roberto Ramos. Nos dados que enviou ao
editor, diz Rebocho: “envio-lhe meu texto sobre Ronaldo Werneck – um bom poeta
brasileiro que faz o favor de ser um dos meus amigos. Escrevi ao correr dos
dedos e num modo simples, com o engulho de não dominar o português-brasileiro”.
Vejam o texto de Nuno Rebocho a seguir.
REMOENDO BALDROCAS
Já lá vão anos que encontrei e
conheci Ronaldo Werneck. Foi no sul de Portugal, em Lagos, durante o Festival
de Cinema Lusófono que entre nós começou
duradoira amizade. Demorada correspondência e novo frente-a-frente em João
Pessoa (lindíssima cidade) vincaram a amizade com o poeta de Cataguases. Os
laços criados cimentaram-se.
Com Werneck, estreitaram-se
ainda mais as muitas cumplicidades que já tinha em terras brasileiras. Haverei
de delas vos falar, revelando amizades que construíram o meu mundo, incluindo
os encontros com o saudoso Jorge Amado, tanto em Salvador da Baía como no
Estoril português. Por enquanto, é o autor de “Há controvérsias” o motivo desta
conversa convosco.
Ligava-nos o facto de ambos
sermos jornalistas e poetarmos por desporto, embora eu sempre atirasse o taco
fora nas questões do concretismo, velho ou neo. Ensaiara umas coisitas
imitando-lhe o modo, mas cedo arrumara a manta no que toca tais aventuras. Outro
era o meu fado, ao contrário de Werneck que eu vinha tratando por “Ronaldinho
Mineirão”, para o destrinçar de outro Ronaldinho, o Gaúcho. E tínhamos ambos a
mesma paixão pelo cinema, mais acentuada nele, não fora da terra de Humberto
Mauro (com quem convivera) e já lhe ter espirrado para o sangue o cinéfilo
vício.
Além de integrar a equipa
responsável pelo Festival de Cinema Lusófono, Werneck corria léguas, mundo afora, com a sua máquina fotográfica, clicando em Paris, em Itália e sei lá onde
mais. Volta não volta, choviam mensagens suas dando-me conta das paragens que
cirandava: Ronaldo, como eu, era “viageiro de mundos”, vício que por certo
também lhe viera trazido pela profissão.
Os livros que Werneck destilava
ia-mos enviando pelo correio. Por eles, descobri a sua excelente poesia e,
certa feita, chegámos a uma troca de galhardetes a pretexto de um poema meu,
“Canto Finissecular”. Pena que me tenha desenvencilhado da obra sua, deixada
nas ilhas de Cabo Verde na doação a uma biblioteca que ajudei a criar em S.
Martinho Grande (Ribeira Grande de Santiago). Mas adoro o seu poetar feito de
subtilezas e de associação de ideias que, de algum modo, me confortou com o
concretismo.
Afinidade outra foi a do gosto
que ambos mostrámos pelos textos de crónica: prosa livre a sua, em contraste
com o sincopado tom da poética, escorrendo o convívio com grandes músicos quer
em S. Paulo, na Baía ou no Rio de Janeiro. Ronaldinho ia dando azo, com génio,
à sua muita criatividade, desforrando-se da vida nas bancas dos jornais e
publicações por onde trabalhava. Também nisso achava na amizade nossa também
algo em comum.
Enfim, Werneck deleita-me, com
o seu rico linguajar que sempre me confundiu, escrevendo mesmo para um poema
(publicado em Piracicaba) sobre o estranho significado que as mesmas palavras,
redigidas no português desta riba do Atlântico, ganham nas bandas das terras de
Santa Cruz. É um português sambado, divertido, molhado e doce – é, afinal, um
português bem brasileiro.
Através de Werneck conheci
outros vates do Brasil que entraram pelo meu mundo. Mas isso será tema para
outras conversas se, eventualmente, houver para elas oportunidade.
Nuno Rebocho
Lisboa,
abril de 2018
Um comentário:
Muito bom, meu amigo, PARABÉNS!
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