17 de jun. de 2024

CHICO BUARQUE EM CATAGUASES

 

Colégio de Cataguases, 1959. Agachado à moda
dos jogadores de futebol. o jovem Chico Buarque
parece antever seu futuro como craque do Politheama.


A casa do Oscar

     O compositor Chico Buarque disse certa vez que desde menino queria ter morado numa casa desenhada por Oscar Niemeyer, amigo de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda. O que de fato aconteceu quando, no final dos anos 1950, estudou como interno no Colégio de Cataguases, projetado pelo arquiteto, e acabou “morando” por seis meses na “Casa do Oscar”, como ele mesmo denominou o Colégio.

   Foi rápido. A passagem de Chico Buarque por Cataguases não durou nem seis meses. Internado no Colégio por sua mãe, Maria Amelia Alvim Buarque de Hollanda – a Memélia, como era conhecida –, ele ficou na cidade apenas durante o período escolar do segundo semestre de 1959, cursando o 4º ano ginasial. Corre que Chico veio parar em Cataguases enviado por Memélia – para que o rapaz se afastasse das estranhas companhias com que andava em São Paulo, um embrião do que viria a ser a TFP – Tradição Família e Propriedade. Naqueles tempos de carolice católica, Chico e seus colegas puseram-se a comungar freneticamente todos os dias – o que deixava seus pais seriamente preocupados. Corre, mas há controvérsias.


O famoso “Bauru”

  Mas, eis que em Cataguases o “desajustado” rapaz acaba se destacando entre os primeiros alunos do Colégio e até mesmo se revela com dons de cronista. No final dos anos 1950, fundado pelos alunos internos, havia no Colégio um jornalzinho mimeografado, “O Pirilampo”, onde Chico Buarque, do alto de seus 15 anos, assinava uma coluna com o pseudônimo de “Bananal”. Sua coluna, a “Quitandinha do Bananal”, mesclava crônicas com alguns poemas, como num prenúncio do futuro compositor e romancista.

    Lendo “O Pirilampo” hoje (praticamente pela primeira vez, pois dele eu não mais me lembrava), vejo que o jovem Chico Buarque “já levava jeito de escritor” e suas crônicas – revelando desde então o seu potencial de invenção e criatividade – são perfeitamente publicáveis, considerando-se os seus apenas 15 anos.

  Numa das colunas, datada de 27.09.1959, diz o Bananal sobre o futuro dos redatores de “O Pirilampo”: “Infelizmente, estão todos falecidos, com exceção de um tal de Bananal. Este comprou há trinta anos um falso remédio de nome ´Fonte atômica da juventude´ que o envelheceu mais ainda e que não permitiu que ele morresse. Surdo, mudo, cego, paralítico e louco, não pôde o Bananal prestar-nos maiores informes”.

   Conta-se que numa reunião dos internos, surgiu aquela pergunta que aflige todo jovem: “o que você quer ser na vida?”. Chico Buarque não titubeou: “quero ser tão famoso quanto o Bauru (um sanduíche então na moda)”. Acabou sendo muito mais que isso o nosso “Bauru”, perdão, “Bananal de Hollanda” – que chega agora aos 80 anos ainda com a garra e o vigor daquele rapaz de 15 – e reconhecido com todas as honras do grande compositor e romancista que efetivamente é.

     A seguir, três das crônicas do jovem Chico, perdão, do Bananal.


Quitandinha do bananal

Três crônicas de F. Buarque de Hollanda


1.

     É com grande prazer que me apresento com minha “Quitandinha” ao leitor neste tão concorrido (espero eu) primeiro número de “O PIRILAMPO”.

    Aviso-lhe que achará em minha quitanda grandes abacaxis, e talvez, procurando muito, algumas uvas. Que ele repare por favor, que não sou convencido, já fiz notar que muitas das minhas frutas são podres. Aliás, somente aproveitando-se de notória “modéstia” dos alunos deste colégio conseguiu o senhor diretor sua colaboração: será que você tem capacidade para colaborar, etc… (Aliás, ele é muito afinado para “cantar”). A propósito, devo comunicar-lhe que faltou-me capacidade e assunto para preencher, de modo satisfatório, minha satisfatória coluna; e ainda é o 1º número. No entanto, na necessidade de preenchê-la, recorro à poesia.

    Se Dante, se Camões, se Shakespeare, assim o fizeram, porque não poderá fazê-lo o já “famoso” Bananal? Não reparem na minha “modéstia”, mas a única diferença entre um Dante e um dono de “Quitandinha” é que ao segundo falta assunto. Espere um pouco… Não haverá poesia na falta de assunto? Perguntarei à inspiração:

Vai, poesia sem assunto,

vai, poesia, para junto

do meu monte de papéis.

Intrigado me pergunto

se poesia sem assunto

vale mais que dois mil réis.

(13/9/1959)


2.

     Em meu primeiro número versei sobre minha modéstia e falta de assunto. Cheguei à conclusão de que sou “o mais modesto do mundo”, e que umas férias, ainda que pequenas, são o bastante para incentivar minha literatura.

     Todo cuidado é pouco quando vai se atravessar uma rua no Rio. Temos de olhar para a esquerda para ver se não vem um carro contra a mão… e vem. Quando estes acabarem de passar, vire-se para a direita: pode vir algum maluco na mão certa; mas como não vem mesmo, olhase para cima.

     É sempre perigoso cair um edifício na cabeça de uma transeunte; além disso, muitas vezes aparecem lotações “pelos ares”. Então corre-se porque é certo que alguma coisa caia. Quando acabar de correr, finalmente, olha-se para baixo: corre-se o perigo de cair num buraco, mas evitá-los é impossível… Há buracos por toda a parte. Não restando nada mais a fazer, desiste-se de atravessar a rua:

Quantos desastres de lotação

quanto buraco em tão pouco asfalto


quando maluco vem contra a mão,

quanto edifício que cai lá do alto.

Sempre há mais preço do que dinheiro.


Mas, à verdade é claro que falta

se eu for falar em tom zombeteiro

da minha terra, porque no fundo

é, mesmo assim, Rio de Janeiro

sempre a melhor cidade do mundo.


3.

     Desde meus primeiros anos, lembro-me daquele relógio velho, abandonado num dos cantos da sala da “casa grande” no sítio. Ele sempre me impressionou: era grande e feio; não tinha uma cor definida. Não obstante a ferrugem que nele abundava, subsistia ao tempo.

     Certa vez, exausto, quase fora de mim, passei a observá-lo cuidadosamente. Esparramado por alguma poltrona, fixei-lhe o olhar enfraquecido por longo tempo. Por muitas vezes, lembro-me de ter visto o ponteiro dos minutos, veloz, passar por cima do outro que parecia mais cansado. O ponteiro das horas parecia mais velho, mais cansado… Quantas vezes vi o maior transpassando-o, deixando-o.

     Acordei de um sonho, admirado: como se parecem com pessoas da vida real. O ponteiro maior, incansável, superior, está por toda a parte. Seu irmão menor, inerte, inferior, movia-se menos, cansava-se mais.

     Recentemente, contudo, o ponteiro, das horas partiu-se; caíra e não se ergueria mais. Já ninguém lhe dá atenção, não deu-se ao trabalho de jogá-lo fora. Alguém, não sei quem é, continua a dar corda naquele relógio velho. Quem será? Só sei que o ponteiro dos minutos continua a girar indefinidamente… mas já não tem sentido. Assim é a vida real. Certas pessoas estão por todo lugar, estão sempre marcando presença. Aparecem nas manchetes dos jornais, parecem personalidades invulgares. Mas há alguém por trás, obscuro, apagado, que lhes dá sentido. Essas pessoas vivem ocultas, não conhecem a glória, mas são elas que marcam, são elas que deixam rastros…

(8/11/1959)


O homem dentro do atleta

    “Chico Buarque está em Paris cobrindo a Copa pro Globo”, escrevia eu em crônica publicada no Jornal Olé, em 16 de junho de 1998. “Além de samba-enredo da Mangueira”– eu continuava –, ”Chico é principalmente o meu center-forward predileto, e foi ao seu lado que disputei minha derradeira partida de futebol, defendendo as cores gloriosas de seu time, o Politheama. No poema famoso em torno de Ulisses, Fernando Pessoa escreveu que “o mito é o nada que é tudo”. E como nada somos, como bem o sabeis, fiquemos com nossos mitos do gramado e com o que de humano cada um deles traz dentro de si. O que só faz solidificar sua aura mítica.

    Mitos como Pelé, sobre quem eu pensava não haver mais nada a ser dito. Mas Chico Buarque conseguiu uma novidade: “a impulsão com que Pelé celebrava o gol chegava a superar aquela, já extraordinária, com que subira para cabecear. Era como se, na celebração do gol, o homem saltasse de dentro do atleta”. O homem que salta de dentro do atleta: que imagem mais perfeita do futebol-alegria, do futebol-arte do Brasil de outras Copas, mesmo as que não ganhamos. Chico diz que era menino em São Paulo na final da Copa de 1950 e ouvia o jogo pelo rádio. Ele desligou no gol de Gighia, botando a culpa de nossa derrota no Maracanã. Pois é, para o menino Chico o culpado de nossa derrota foi o estádio. Que viagem, hein Seu Buarque! Na verdade – e parodiando o próprio Chico naqueles tempos do Bananal e de suas crônicas de Cataguases –, era como se subitamente o poeta saltasse de dentro do menino.


Um dia com o Chico

    Lembro-me bem porque era meu aniversário: 23 de outubro. Também do ano não tenho dúvidas: 1988. O compositor Carlinhos Vergueiro e eu almoçávamos na casa do também compositor Chico Buarque de Hollanda. E com o próprio. Quer dizer, o Carlinhos e o Chico almoçavam, porque eu me limitava a um modesto suco de laranja. Estava preocupado com o que viria pela frente naquela tarde. Viria literalmente pela frente, pois logo após o almoço tomaríamos o carro em direção ao Recreio dos Bandeirantes, onde se posiciona para o Brasil e cuíca para o mundo o gramado do imbatível Politheama, o time do Chico.

     O famigerado Politheama – do qual, pela menos naquela tarde, eu seria o guardião. Enfrentaríamos dali a pouco um fortíssimo time de artistas, artistas até mesmo da bola, comandado pelo Osmar Prado. Goalkeeper atento e consciente como sempre fui – guardião do Operário daqui de Cataguases, e de todos os operários, quiçá dos pobres e oprimidos – eu costumo me concentrar antes dos grandes embates. Durante o trajeto da Gávea ao Recreio, o Chico, como sempre muito elegante ao volante, com rima & tudo, fumou uns quatro ou cinco Charm – ele que já tem tanto que nem precisava. Na época, eu ainda fumava desbragadamente, como dizia a mamãe. Por acaso, o mesmo Charm do Chico, que fumou toda a cota a que tinha direito. Eu não, que não sou besta.

     Assim, foi de pulmões e estômago limpos que eu adentrei o gramado do Politheama naquela tarde fagueira, quer dizer, fatídica. O adversário não parecia lá essas coisas. No início, não dei muito bola pro Osmar Prado, aquele baixinho que vem lá, bravo e atarracado. Mas, devia ter dado. O Prado tem um bruta petardo. Logo perdíamos por três a zero. Mas o trio Chico, Vinicius França (seu empresário) e Vergueiro conseguiram equilibrar a chamada “pugna” e viramos o jogo: cinco a três. Pouco antes do final, Osmar Prado mandou seu derradeiro petardo.

    Mas este guardião que aqui digita estava atento e forte. Voou, voou e a bola açambarcou em seus braços e peito. Meio sem jeito, è vero: quando caí, caí direto na grama dura, a bola prensada na costela. Mas Chico logo pedia a bola e logo pra ele eu distribuía: Chico a França, a Vergueiro, a Chico, a França, a Vergueiro a Chico e pau! Pau no pau, bola nas traves e o apito, a soar ainda agora nos meus ouvidos. Fim de jogo, seu beque, seu Beckett. Fim mesmo, pelo menos pra mim: duas costelas quebradas: carreira encerrada para sempre.


O homem do dicionário

     Naquela mesma tarde, na volta do campo do Politheama, Chico dirigia, tendo ao lado seu produtor, Vinicius França. No banco de trás, seu parceiro e compositor Carlinhos Vergueiro e este goal-keeper que aqui digita. Foi quando falamos de Cataguases e lembrei-me de uma história, juro que do rol das verdadeiras.

     Na época em que estudávamos no Colégio aqui em Cataguases, anos 1950 (salvo engano, Chico na quarta série ginasial; eu, no primeiro científico), havia um quadro de honra colocado sob os pilotis do prédio projetado Niemeyer, aquela “casa do Oscar”. Cabia sempre aos alunos externos os primeiros lugares. Os internos, fora raras exceções, não queriam nada com os estudos. Pois bem, numa manhã eu estava com um bando de alunos vendo o quadro de honra daquele mês, que acabara de ser colocado. Para surpresa geral, o nome Francisco Buarque de Hollanda vinha em primeiríssimo lugar. Foi quando ouvi de um dos alunos que estava atrás de mim:

     “Também, pudera, o cara é filho do homem do dicionário!”. Ao ouvir minha história, caímos na risada e o Chico quase bate com o carro de tanto gargalhar. Logo ele, que é filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e não tem nada a ver com Aurélio Buarque de Holanda, “o tal homem do dicionário”.


Do center-forward Chico Buarque

     Uma semana depois, eu estava na boate Vinicius em Ipanema, assistindo ao show do Carlinhos Vergueiro quando, no escuro, percebi um vulto que se aproximava de minha mesa. A figura bateu amigavelmente em meu ombro: “E aí, Ronaldo: não foi treinar esta semana?”. Era o Chico. Expliquei pro meu ídolo dos gramados que minha carreira havia se encerrado naquela derradeira partida defendendo as cores do Politheama. Nunca mais cinema (“goleiro é cinema” como disse um dia Ary Barroso), nunca mais drinque no dancing – nunca de núncaras uma espelunca sob as traves: nunca meus ais, minhas costelas nunca mais. Chico riu e disse, profético: “Um dia você volta, futebol é febre.”. Pois é, Chico, futebol é febre e também costelas quebradas.

    A amiga que estava comigo na mesa exclamou extasiada: “Ronaldo de Deus, você conhece o Chico Buarque? O Chico levantou só pra vir à nossa mesa falar com você!”. Foi difícil fazê-la entender que o Chico que eu conhecia não era o compositor, mas simplesmente sua identidade secreta, quando ele assumia sua condição de super-herói, quer dizer, quando o Chico vestia seu uniforme de center-forward do Politheama.

     Alguns dias depois, Chico mandou-me, via Carlinhos Vergueiro, o livro organizado por meu amigo e primo distante (eu cá, ele lá em São Paulo), Humberto Werneck. Ele está aqui comigo ainda agora, com todas as letras e uma pequena biografia do Seu Hollanda. Todas as letras e inclusive a letra dele mesmo, feita com a mão do próprio, que escreveu a seguinte & simpaticíssima dedicatória: “Pro grande poeta e goal-keeper Ronaldo Werneck, com a admiração e o abraço do center-forward Chico Buarque”.

     Ora, ora, por quem sois! Segura aí meu abraço pelos seus 80 anos, meu caro center-forward.


Ronaldo Werneck

Cataguases, março de 2024

3 de jun. de 2024

Joaquim Branco Cronista Visual

 

     Bela ideia, ótima notícia: o poeta Joaquim Branco lança agora em Cataguases, no dia 15 de em junho, seu novo livro. Zona de Conflito é o nome do “baita”, como diria Rosário Fusco.  Desde quando editávamos nossos primeiros suplementos literários na Cataguases da década de 60, Joaquim Branco sempre se pautou por priorizar o acontecimento em seus poemas. E esse novo livro só faz confirmar isso: poemas visuais, quase sempre de fatura política, características de sempre na produção de JB. Reler/rever esses trabalhos me levam a não mais classificá-los somente como “poemas”, mas colocá-los em outro patamar, o de “crônicas visuais”, como os defino agora.  

     Poeta e professor, incessante, incansável, são inúmeras as obras publicadas em vários gêneros por Joaquim Branco. Zona de Conflito mostra como o poeta ultrapassa o professor e sente-se à vontade em seu ofício por excelência.  Ao navegar na poesia, o JB-poeta é insuperável. Melhor: o “JB-poeta & cronista visual”. Isso porque esses poemas só confirmam mais uma vez a extrema atualidade de seus poemas-crônicas, voltados para o agora, para a temática social – e sempre com alta dose de invenção. Crônica e grafismo, o poema visual “Oculum” é exemplo mais-que-perfeito: “o poeta de olho vidrado na realidade”.  Ainda na área dos visuais, “Out(in)Door” é um verdadeiro (m)achado, ao associar num ousado re/corte (“epistemológico”?) a coca-cola-consumo deglutida de ponta cabeça sob o dito de Cristo. Forma e conteúdo. Sem esquecer a bandeira de Maiakóvski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.

     Motor da imaginação, a palavra ocupa espaço de destaque. Aqui e ali, poemas-aforísticos tout court, como: “A mão invisivel do Mercado é a mesma que balança o berço?”. Ou insights antecipadores, como se, ao falar da ponte, o “poeta-antena-da-raça” (evoé, Pound!) aludisse ao “mito fugaz e fujão”: “Eternamente unir/ levar sofregamente/ nitidamente postar-se/ fugir avidamente”. E sempre atual e atuante, participante de nosso tempo, poeta-operário obrando o poema que acusa o descaso: “Nasce das entranhas deste dia/ uma trama secreta surgida/ nas gretas, ungida nas ruas/ escuras onde corpos magros/ experimentam a nostalgia da fome”. Ou ainda nesse poema-crônica, quase prosa-poética de dicção modernista: “Suas costas não pressentem/ um vulto que avança por trás? /Seu peito varonil nem percebe/ os instintos macabros em volta?/Então erre, se enterre/ na própria miséria”. Poema que parece desaguar em “Bocas e Dentes”, conciso, enxuto, verdadeira pedra-de-toque à la Cassiano Ricardo, que merece transcrição na íntegra: “Boca pequena/ Poema grande// Letra morta/ Boca solta/ Sua porta// Em boca fechada/ Não entra ostra// Letras armadas/ Até os dentes// Dente por dente/ Olho por olho/ Letra por letra”. 

     E letra por letra vão se formando aquelas “Lunações antes da primavera” – poema de onde a poesia salta com suavidade e extremada força: “Lua nua na redoma/ de vidro ilumina/ a si e deixa o céu/ a descoberto, à míngua/ (...)/  Deixa apenas um rastro linear/, uma espuma de poeira lunar/ entre estrelas e astros/ desavisadamente sós”. A mesma suavidade alcançada em “Meninez”: “Fui lá tirá-la do colo/ da infância/ para mostrar o avesso/ do pesadelo/ – a noite estrelada, o travesseiro de pelos/ macios onde encostar/ a cabeça de zelos”.  E é também com oxímoros, com suavidade & força, a construção de “Mãe”, poema que cai como um soco: “Mães morrem. (...) Mães vivem. Especialmente está que se vai, (...) Depois a tarde caiu como um soco/ aos olhos que se fechavam em pranto/ de chuva implacáveis”. 

     “Nunca li meia página de Homero sem encontrar invenção melódica”, escreveu em seu ABC da Literatura o grande inventor e mestre, o poeta-crítico Ezra Pound. Em sua célebre classificação dos poetas – mestres, inventores, diluidores – Pound colocava Homero não só entre os inventores (“aqueles que descobriram um novo processo”) como também entre os mestres (“aqueles que usaram esses processos tão bem ou melhor que os inventores”). Como o Homero na visão de Pound, e o próprio Pound, Joaquim Branco também se enquadra entre os poetas inventores e mestres, como se vê nesses fragmentos inundados pela melopeia poundiana, impregnados de musicalidade: “Aves sem rumo se lançam ao ar,/ o azul briga com as nuvens/ enquanto um sol amarelo/ se esvai pelo vão da janela.//(...) Haverá tormentas em outros céus/ que, em vão, não dominamos,/ mas cairá sobre esta terra/ nova promessa ou presságio/ de sóis,/ de luas,/de véus,/ de ventos/ a criar palavras-pensamentos no ar.”. Uma poética do olhar, que Joaquim Branco manobra como poucos. 

     Em “Ode a uma Marciana”, ressurge o poeta-inventor, numa associação de grande impacto de palavras-valise, à la Joyce: “Quem reprisar o sonho em vão/ na selidão de navens repelidas/ perdia senso, boca, vela e mastro. / Pensasse o coração, a ave louca/ despocaria assublinhada e púnica, perdida.// Desde que lendas turvas se atrombaram/ no horizontem, o sol de todo/ se apogou no pensamento”. 

     Já o poeta-mestre ressurge nesse metapoema literalmente avant la lettre: “o dicionário e o inventário,/ a retórica e a poesia,/ todas as formas de ser e haver/ se deram nessa forma de páginas/ na feitura e na leitura/ de palavras mágicas/ que um dia se transformariam/ nessa coisa chamada livro/ onde a humanidade aprendeu/ a viver, a sonhar, a conhecer”. Aprender a conhecer: eis o que nos ensina o novo livro de Joaquim Branco, poeta-maior, a quem dedico essas linhas. Ao Mestre, com carinho. 


Ronaldo Werneck

Cataguases, junho 2024