10 de dez. de 2024

RIO, BH, OURO PRETO: AGITOS CULTURAIS

           Foi culturalmente agitada a última semana de novembro. Na terça-feira, 26, lançamento no Rio de “Geografia do Tempo”, livro de meu primo, o embaixador Ary Quintella. Na sexta, 29, em Belo Horizonte, lançamento da Poesia Reunida de minha amiga Maria do Carmo Ferreira. No sábado, 30, ainda em BH, lançamento da Revista da Academia Mineira de Letras com um dossiê sobre os 80 anos de Chico Buarque. Ainda no sábado, em Ouro Preto, exibição do filme “Cristina 1300/ Affonso Ávila – homem ao termo”, de Eleonora Santa Rosa. No domingo, ainda em Ouro Preto, visita à Livraria Outras Palavras, da Marúzia, viúva do poeta Guilherme Mansur. A seguir, comento cada um desses eventos. 

QUINTELLA & A GEOGRAFIA DO TEMPO

Rio, terça-feira, 26 de novembro. Chego à Livraria da Travessa no Leblon e me dirijo ao caixa para comprar o livro “Geografia do Tempo”, de meu primo, o embaixador Ary Norton Quintella, que estava sendo lançado naquela noite. Lembro que estava em meus planos comprar também o livro de Lira Neto, “Oswald de Andrade – O Mau Selvagem”, e o de Rosa Freire d´Aguiar, “Sempre Paris”.

O vendedor me diz que o livro de Lira Neto ainda não havia sido lançado, mas tinha o livro de Rosa Freire d´Aguiar. Ao falar esse nome, uma pessoa ao meu lado foi logo dizendo: “Rosa Freire d´Aguiar sou eu!”. Ainda espantado com a coincidência, eu que não a conhecia pessoalmente rebati de imediato: “Pois então, Rosa, você está frente a frente com um de seus desconhecidos leitores!”.  Rimos muito enquanto ela me autografava seu livro: “Para o Ronaldo, que por estas coincidências eu tive a chance de encontrar, com o abraço da Rosa”.

Como eu, Rosa estava ali para o lançamento do livro de Ary, o grande sucesso daquela noite: “Geografia do Tempo” literalmente “atravessou a Travessa”, a ponto de logo os exemplares se esgotarem nas gôndolas da Livraria. Encontro vários amigos, primos e primas e reencontro sua mãe, minha prima Thereza Quintella, que foi a primeira aluna do Instituto Rio Branco a se tornar embaixadora de carreira – e que eu não via desde 2019, quando esteve no lançamento de meu livro “Momento Vivo” na Travessa de Ipanema. Na imensa fila dos autógrafos , a irmã de Ary, Titina, veio me falar da enorme memória do irmão, que se lembrava com detalhes de filmes, peças de teatro, livros e fatos e mais fatos ocorridos anos e anos atrás, muitas vezes quando eram ainda adolescentes.



        Não conhecia pessoalmente meu primo, só por eventuais trocas de email. Levei pra ele dois de meus livros, um dos primos falou meu nome e Ary me recebeu de braços abertos: “Claro que conheço o Ronaldo, meu primo escritor”. Disse que o achei muito parecido com o Jorge Quartarone, o percussionista Quartera do famoso Conjunto da Bossa Nova, Os Cariocas – que conheci pessoalmente, pois realizei um vídeo com o Quarteto quando trabalhava no CCBB/Rio, onde eu eraassessorado pelo filho do Quartera, meu amigo Fernando Quartarone. Para minha surpresa, e meio que indo de encontro ao que sua irmã Titina acabara de me dizer sobre sua “imemorial memória”, Ary não conhecia Os Cariocas, nunca ouvira falar do Quarteto. Mas me disse, meio sorrindo, “vou procurar no google, mas esse Quartera pelo menos era bem apessoado, não?” 
      Dias depois, recebo mensagem de Ary: Querido Ronaldo, escrevo de Kuala Lumpur (onde ele é o nosso embaixador). Estou intrigado com seus livros, os poemas e o estudo sobre Rosário Fusco. Eu nunca sequer ouvira falar nele, e cheguei a pensar que você criara a personagem, com falsos comentários do Mário de Andrade etc... Agora estou atônito de ter chegado aos 61 anos sem nunca saber dele. Quanto aos poemas, já o primeiro me cativou. Lembrou-me um poema do Borges, que mencionou no livro, "Tríade". Essa coisa terrível que é todo dia enfrentar a vida”.

 Montaigne/Quintella

     O livro de Ary Quintella viajou comigo para Belo Horizonte e Ouro Preto, onde fui a seguir, mas intacto: não tive tempo sequer de abrir a “Geografia” de meu primo. Só agora, já em Cataguases, pude ler ao acaso alguns trechos de seu livro e encontrar-me com um refinado e cultíssimo escritor, um escritor viajante como um dia disse de si o grande Michel de Montaigne. E não é por acaso que menciono Montaigne. como Montaigne, se lhe perguntassem: “Que sei eu?”. Que saberemos nós?”. 

           Um dia de 1986 o poeta Francisco Marcelo Cabral e eu vínhamos de carro do Rio para o enterro do escritor Francisco Inácio Peixoto em Cataguases. Por quase toda a viagem Chico Cabral me falava de Montaigne, de seu enfrentamento frente à morte, da maravilha de seus ensaios. E me dizia que a gente só começa a realmente entender Montaigne a partir dos 40 anos. Não sei de onde ele tirou isso, mas eu estava com 43 anos e confesso que não sabia quase nada de Montaigne.  Já era hora, então.

           A partir daí, comecei a me interessar por Montaigne em leituras esparsas até que no ano 2000, quase aos 60 anos, comprei “Os ensaios”, numa edição da Penguim, lida e relida, com várias marcações às margens e fragmentos grifados, como faço com os livros de que gosto. E só agora percebo – olha o acaso de novo aí – que a tradução e as notas são de ninguém menos que Rosa Freire d´Aguiar, ela mesma, a minha “nova amiga”




          Montaigne é um mundo. E situa-se como poucos perante a morte. Transcrevo: “Não espanta que tão amiúde as pessoas caiam na armadilha. Amedrontamos nossa gente só em mencionar a morte, e a maioria se persigna, como diante do nome do diabo. (...) Porque essas sílabas atingiam muito rudemente seus ouvidos, e porque essa palavra lhes parecia de mau agouro, os romanos aprenderam a suavizá-la ou diluí-la em paráfrases. Em vez de dizer “ele morreu”, dizem “ele parou de viver”, ou “ele viveu”. Consolam-se contanto que seja vida, ainda que passada.  Daí tiramos nosso “finado fulano de tal”. (...) Nasci entre onze horas e meio-dia do último dia de fevereiro de 1533, como contamos agora, começando o ano em janeiro. Justamente faz apenas quinze dias que passei dos 39 anos. E faltam-me pelo menos outros tantos. E enquanto isso seria loucura pensar em algo tão distante. Mas qual! Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira.  Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de si. E, ademais, pobre louco que és, quem te fixou os prazos de tua vida?”. 

         E são essas reflexões de Montaigne, esse “pensar, verbo intransitivo” como disse Gustavo Nogy, que encontramos muitas vezes em Ary Quintella, um escritor erudito, de fino trato, como observa Cora Ronai em seu prefácio: “Uma história de vida tão rica, porém, poderia ser o atributo de um escritor maçante. (...) é um alento encontrar textos que abordam os assuntos mais requintados, respirando alta cultura e sagacidade, mas tratados com mão leve e ouvido atento, criando o ritmo fluente e irresistível de uma deliciosa conversa”. 



Como Quintella, Montaigne interessa-se por tudo, e também tem paixão por viagens. É um pouco disto o que sinto numa primeira e casual leitura de “Geografia do Tempo”, em passagens como o retorno de Ary à Côte d´Azur de sua infância, à Provence mysterieuse, ao concretizar “uma ambição de anos, até então nunca realizada: contornar a Montagne Sainte-Victoire, celebrada por Cézanne”. E chegar ao Castelo de Vauvenargues (segundo Quintella, o marquês de Vauvenargues “é hoje meu moralista predileto”), comprado em 1958 por Picasso.   Mas antes almoçar no restaurante Relais de Saint-Ser. É quando numa simples observação surge o sofisticado escritor sob a capa de refinada metonímia: “Quase encostado na montanha, o restaurante olha para o vale e da minha mesa, no terraço, eu tinha uma vista deslumbrante.”. Vejam como ele se coloca no cardápio do restaurante – é o restaurante que olha a paisagem como se saída de seus olhos. Lance de mestre. 

 E, mais à frente, Ary Quintella nos mostra a magia do seu pensar, como já sabemos, “verbo intransitivo”: “Seria poético dizer que ali (...) encarando a Sainte-Victoire, pensei nas inúmeras vezes em que, criança e adulto, passeara de carro pela Provença, dizer que meditei sobre o tempo, as incoerências da vida, a impermanência das pessoas e das coisas, que deve nos fazer valorizar o que se revela permanente; dizer que refleti sobre o poder da arte e da literatura para dar sentido à vida. Mas nada disso aconteceu. Parado sozinho naquela momento naquele lugar pensei apenas na felicidade que era ver a imponência da montanha, sentir o perfume da lavanda, ouvir as cigarras, viver plenamente aquelas sensações, exercitar os meus sentidos atento somente ao que me rodeava”.

         Pois é meu querido primo Ary Quintella, é por esses e outros momentos que, tão logo a “geografia do meu tempo” permitir,  vou mergulhar de vez nos preciosos textos de seu livro, uma grata surpresa para mim. 

CARMINHA FERREIRA: POESIA REUNIDA

Lançamento BH. A partir da direita: Fabrício Marques 

 o editor Miguel Jubé, sua namorada e RW

Patrícia e eu passamos um fim de semana culturalmente agitado entre Belo Horizonte e Ouro Preto. Na noite de sexta-feira, 29 de novembro, na Livraria Jenipapo, em BH, lançamento da poesia reunida de Maria do Carmo Ferreira, organizada por Fabrício Marques e Silvana Guimarães, apresentada numa caixa com três belos e alentados volumes. Finalmente, aos 85 anos, minha amiga Carminha Ferreira, a grande poeta cataguasense, poderá ver seus impactantes poemas editados em livro, o que surpreendentemente não havia acontecido até agora.  

As poetas Adriana Versiani, Adriane Garcia e Ana Martins Marques leram alguns poemas de Carminha, que também enviou um áudio falando os próprios poemas. No final, eu disse algumas breves palavras sobre minha amiga (link do vídeo ao final). Carminha Ferreira mais que merece. 

Para minha surpresa, durante o lançamento na Livraria Jenipapo o editor Miguel Jubé, que eu não conhecia, citou em sua fala um trecho de um artigo meu sobre a Carminha. Ele também não me conhecia, e foi surpreendido quando alguém disse: o Ronaldo Werneck está aqui, à sua frente. A trilogia dos poemas da Carminha surge numa bem cuidada edição, numa caixa em três tomos. Nas contracapas, um texto do grande poeta concretista Décio Pignatari no primeiro volume; outro do poeta-tipógrafo e meu saudoso amigo Guilherme Mansu.

Finalmente, na contracapa do último volume, fragmento de um texto meu sobre Carminha, que reproduzo a seguir: isso porque Carminha é uma poeta que precisa urgentemente ser lida. É das grandes, reafirmo: "Jogando habilmente com suas palavras-malabares, ela é uma poeta das melhores. Inexplicavelmente inédita em livro. Os leitores terão agora a oportunidade de conhecer e se espantar a cada página com os instigantes poemas de Maria do Carmo Ferreira. Carminha é poesia e cor-ação: carme, carma, carmim". 


           Cave, carme, carmim e suas pedras de toque, como nesse fragmento de “Essa Menina”:  “Primeiro sem lugar sem rir sem falar/ de um pé ao outro de uma mãe a outra/ alucinando a corda umbilical./ Em posição de estátua/ pulando amarelinha/ fingindo-se de morta/ no nada feito atou sua autonomia.//(...)// Olho-a através do seu ponto de fuga/ no álbum de família./Quem poderia ser? Por quem se pauta?// Passiva de corpo e alma, errando de alvo,/ a menina dos olhos de outra vida.”. 

Essa moça/ esse moço

          Nos anos 1970, o Suplemento Literário do Minas Gerais publicava o poema “A quem interessar possa”, de Maria do Carmo Ferreira. Fiquei impressionado com a força da poeta, que desconhecia. O meu poema “Esse moço”, também publicado no mesmo SLMG tempos depois, escrito em sua homenagem, foi absolutamente influenciado pela dicção de Carminha. Só mais tarde soube que ela era minha conterrânea e até mesmo vizinha, no bairro carioca do Leme.  Às vezes nos falávamos ao telefone. Mas só a vi pessoalmente uma vez, na década de 1980, em casa da poeta Kátia Bento. 


                Fazíamos parte do júri de um concurso de poesias organizado pelo marido da Kátia, o escritor Dirceu Quintanilha. Nós quatro, e o também poeta Fernando Py, passamos a tarde inteira e parte da noite lendo/selecionando poemas, poemas, poemas. Depois, Carminha sumiu, e eu não me lembro se ela chegou a ver o meu poema, “Esse Moço”. Só muito depois, no ano 2000, retomaríamos o contato, por carta e email. Foi quando me lembrei de “nossos” poemas. Ela sugeriu então que publicássemos os dois juntos. Mandou-me o seu poema, junto com foto da época: “Estou lhe enviando o velho poema que o inspirou e através do qual recebi, na época, um pedido de casamento de um professor americano, que recebia o SL chez lui...”. A partir de então, já nos anos 2000, houve intensa troca de e-mails entre nós, os “poemails” como os chamávamos. Logo depois, Carminha sumia de novo, e até hoje. Um mistério, o dessa moça. A seguir, nossos dois poemas.


A QUEM INTERESSAR POSSA 

Maria do Carmo/Carminha Ferreira

Uma pessoa/ de sexo/ feminino/ 38 anos/ 1,65m/ 66 kg/ sem lar/ sem filhos/ sem família/ sem amigos/ sem esperança/ com 108 contos/ na poupança.// Garante que possui/ matéria-prima/ para literatura/ teatro/ baby sitter/ trabalhos manuais.// Gosta de música./ Chega a tocar/ de ouvido./ Conhece inglês/ e línguas neo-latinas./ É boa datilógrafa./ Cozinha o trivial./ Prefere a natureza/ à vida na cidade.//Amor, quase não faz/ porém se adapta sem-/ pre ao item men-/cionado.// Falta-lhe alma/ um sopro que a reanime./ Se veleidades tem/ é de sentir-se real./ Vive/ por força/ de viver/ mas corre o risco/ de se deixar morrer/ sem que se dê/ POR ISSO/ oferece-se a quem/ interessar possa/ uma coisa/ uma causa/ uma pessoa/ alguém/ um problema social:/ o caso dessa moça.

ESSE MOÇO

Ronaldo Werneck/ Rio, 1978

Feroz a um breve contato,/ à segunda vista, seco,/ à terceira vista, lhano,/ dir-se-ia que ele tem medo/ de ser, fatalmente, humano. (Drummond) 

um pouco à maneira e para maria do Carmo Ferreira 

do sexo masculino/ uma pessoa/ por todos prezada/ um bom menino/ se apresenta/ esquivo/  sem bossa/ a quem interessar possa// só sozinho/ entre todos/ um mistério/ um troço/ um caso sério/ o desse moço// amar/ ama/ na rua/ no mar/ na cama// amar/  ama/ oferta seu corpo/ a meninas/ e mulheres-dama// amar/ / ama// mesmo fora/ da cama// tão de dentro/ tão fundo/ como se gemendo/ envolvesse o mundo// tudo e todos/ saltam do peito/ do mais profundo poço/ dando forma e fundo/ a esse moço// pássaros neutrônicos/ elefantes levíssimos/ patinetes em pânico/ balões de neon/ nada igual// pipas ensandecidas/ bolas de gude/ num voo orbital//  entre eros e tanatos/ decepado/ entre fobos e deimos/ largado// ao mar/ por malasorte/ habitado// nau do ocaso/ vau/ frágil/ vendaval/ em vão// duro osso/ esse moço.

LINA, ANA, CHICO BUARQUE


      Na manhã do dia seguinte, sábado 30, na sede da Academia Mineira de Letras, lançamento da octagésima quarta edição da Revista da AML, organizada por Rogério Faria Tavares com uma bela capa a partir da pintura “Sopros” da grande artista multimídia mineira Niura Bellavinha. Esse número da Revista contou com dois artigos meus. Um, “A Cataguases de Lina Tâmega Peixoto”, outra das grandes poetas cataguasenses, minha grande amiga falecida há quatro anos, como se vê em seu poema sobre Cataguases:  “Gotas de asas revoam/ no manso curso do rio Pomba/ como afluentes do pássaro./ Da janela veem-se/ os peixes mordendo o azul/ escorregado no fundo do céu./ O que se vê é a metade do mundo/ debruçado no peitoril da janela./ A outra metade. Não há”. 

RW com Ana de Hollanda e Rogério Faria Tavares, presidente emérito da AML

             Meu outro texto foi “Chico Buarque em Cataguases”, que fez parte do dossiê especial da Revista sobre os 80 anos de Chico. Reencontro no lançamento minha amiga Ana de Hollanda, que também publicou texto no dossiê, “Chico aos olhos da irmã menor” – e autografou exemplares da Revista junto comigo. Seu autógrafo: “Para meu querido amigo Ronaldo Werneck, uma leitura e um beijo da irmã, Ana de Hollanda”. Gracias, Ana.  

AFFONSO ÁVILA EM OURO PRETO

Na igreja de São Francisco com a diretora Eleonora Santa Rosa

               A seguir, e no mesmo sábado, partimos para Ouro Preto: lançamento do ótimo filme Cristina 1300/ Affonso Ávila/ homem ao termo, de minha amiga Eleonora Santa Rosa, sobre o grande poeta Affonso Ávila (BH/1928-2012),com projeção realizada no interior da belíssima igreja de São Francisco. Emocionante assistir ao ótimo documentário de Eleonora dentro dessa igreja da época colonial, que prima pelo barroco, arte consagrada por Affonso Ávila em poemas e ensaios. Finda a exibição, foi a vez da tradicional Chuva de Poesia, projeto lançado pelo poeta e tipógrafo Guilherme Mansur (Ouro Preto/ 1958-2023), com poemas atirados em folhas soltas do alto da igreja. 


         Logo a seguir, ainda no adro da igreja, Eleonora distribuiu um belo folder de lançamento do filme, com um texto de apresentação do professor Eduardo de Jesus da UFMG e o poema “Afrodísias” do livro inédito de Affonso, “Descante”, poema falado por ele no filme. Transcrevo o surpreendente final: “(...) flagrar fim e sim não e quão/ a cada corrimão a cada escada/ o olimpo é um palácio de imaginação/ percorrer pós ela salas e labirintos/ transidos pela vontade/ e que não há de perguntar/ numens ou homens onde estará/ a procurada a desejada a perseguida/ que o tempo não timbra nem fenece/ e a luz da tarde aquece/ sol que não descamba e queima/ e teima seu calor e obnubila a noite/ lugar que restou ao poeta/ ainda a suar a trescalar/ o dia que se foi mas legou seu ímpeto/ esta é a reta: o verso é o viagra do poeta”. 

O poeta-tipógrafo


       Na manhã do domingo, acompanhados por minha grande amiga, a poeta mineira Simone Andrade Neves, estivemos na Livraria “Outras Palavras”, propriedade da Marúzia (que conheci na noite anterior), viúva do poeta Guilherme Mansur. Isso porque havia dito para Simone que há tempos procurava o livro que Manuel Bandeira havia escrito em 1938 sobre Ouro Preto, esgotadíssimo. Ela me disse que na livraria da Marúzia com certeza eu encontraria uma edição recente, de 2015, com apresentação de meu amigo Angelo Oswaldo.
          Dito e feito. Consegui não só a nova e bela edição do “Guia de Ouro Preto” de Manuel Bandeira como fui presenteado por Marúzia também com a plaquete “manhã”, de Guilherme em parceria com Décio Pignatari e “tipografia e poesia”– um bem apanhado estudo sobre o legado e a importância do grande poeta e tipógrafo que foi Guilherme Mansur. Detalhe de luxo: na sacola da livraria onde são colocados os livros, Marúzia coloca sempre um poema-carimbo de Mansur: “Livre-se de armas/ Arme-se de livros”. 

Com Patrícia e a poeta Simone. Na janela
do Bené da Flauta e o Guia de Bandeira

Posto o que, um belo feijão de tropeiro no tradicional Bené da Flauta, com nossa amiga, a poeta Simone Andrade Neves – e pé nos pedais do bólido: Patrícia e eu gostamos de dirigir e viemos trocando a direção estrada e mais estrada afora, que Cataguases estava quatro horas distante e ninguém é de ferro, a não ser o quadrilátero ferrífero dos arredores de BH e Ouro Preto.  Mas foi agradável e sempre produtiva essa nossa “colonial” viagem às Minas Geraes. Como no meu poema: “minerar em minas/ palavras minério// mineirar em mim/ palavras mistério”. Falar em “quadrilátero ferrífero”, vejam a seguir texto que escrevi sobre a exposição “Quadriláxias”, realizada por Guilherme Mansur no CCBB/ Rio em 1992. 

A QUADRILÁXIA DE

GUILHERME MANSUR

Mineiro, poeta e tipógrafo. Guilherme Mansur lança mão desses três atributos para compor o poema-instalação QUADRILÁXIAS, que estará exposto no Centro Cultural a partir de 26 de agosto de 1992. Arqueólogo da tipografia, Mansur constrói sua poética de objetivos e instalações reciclando lixo tipográfico.

O nome QUADRILÁXIAS é uma junção do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais (Mansur é de Ouro Preto) com a galáxia de Gutenberg, as várias famílias & designs de tipos usados na composição tipográfica. Ampliando e reduzindo, via xerox, a composição tipográfica, feita ao acaso, com o “lixobjeto” encontrado em sua tipografia, Gilberto Mansur utiliza lona preta, papel e pedra para compor sua instalação, que se situa na área da arte povera.

            Jogando com o acaso e trabalhando simultaneamente com várias famílias de tipos – à semelhança do “lance de dados” de Mallarmé, de onde se originou o poema de vanguarda praticado neste século – Guilherme Mansur lança literalmente no chão do acaso as “entreletras” da galáxia de Gutenberg. Como diz Angelo Oswaldo no texto preparado para o catálogo da exposição, “Gilberto Mansur é a confirmação da vitalidade da poesia que se faz em Minas, em sintonia com o que há de mais atilado na criatividade contemporânea. QUADRILÁXIA é pedra fundamental”. 

Estrelas do acaso

O mundo nunca mais foi o mesmo depois que o impressor alemão Gutenberg inventou os tipos móveis. No jargão dos gráficos, o processo de composição manual, “de caixa”, utilizando tipos de chumbo (hematita, minério de ferro), depois derretidos e reciclados, é chamado composição “a quente”. Anterior mesmo ao linotipo – à  “linha de tipos” onde as palavras já surgem em blocos –, na composição “de caixa” o tipógrafo compõe artesanalmente cada palavra, “a quente”, selecionando letra a letra, grafema a grafema. Um ofício de paciência, quase amor.

Drummond falava nas palavras ainda “em estado de dicionário”. QUADRILÁXIAS, do tipógrafo-poeta Guilherme Mansur, é um poema-instalação que mergulha ainda mais fundo na gênese da própria palavra, pão cotidiano. Constelação formada por várias “famílias” de tipos, a chamada “galáxia de Gutenberg” faz parte do dia a dia de qualquer tipógrafo. Estão ali os vários grafemas, as letras antes das “palavras em estado de dicionário”. Prontas para serem manuseadas, para a intervenção do tipógrafo-poeta, que interfere no próprio processo de composição, esculpindo “a quente” o seu poema. Minerar/em minas/ palavras-minério/ minerar/ em mim as/ palavras-mistério”, este poema, de outro mineiro (eu mesmo, por acaso), parece da lavra e cabe como luva no universo poético de Guilherme Mansur.

 Poeta, tipógrafo e também mineiro, ele faz uma junção desses três componentes básico de QUADRILÁXIAS, nome que remete ao quadrilátero ferrífero das Minas & hematitas de sua Ouro Preto e à galáxia de Gutenberg. É daí que Mansur extrai seu poema que se quer poesia. Instalação/instauração. Em grego, a palavra poesis significa o ato de fazer. Fazer o quê? – Poesia. O poema é essencialmente “feitura” de poesia. Artesão de palavras, o poeta é il miglior fabbro – um fazedor de constelações.

Ao se utilizar do arsenal tipográfico como fulcro para explosão de QUADRILÁXIAS Mansur vai além do metapoema, do poema que se questiona a si mesmo, da “psicologia da composição” de João Cabral. Ele trabalha concretamente a própria “feitura” do objeto palavra, mesmo quando seleciona ao acaso suas “entreletras”, como ele denomina seus grafemas. Não se trata de escrever, mas de inscrever seu poema. Mais que paráfrase, QUADRILÁXIAS é uma ode ao tipógrafo e ao próprio fabrico do poema que gera poesia. É um zerar tudo, uma volta às origens, À concretude do grafema que gera a palavra.

A folha em branco, a galáxia de Gutenberg e o acaso da composição. Apoiado neste tripé, o poeta francês Mallarmé construiu no final do século passado o poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Os dados lançados ao acaso por Mallarmé, através das “manchas” de texto, da utilização de diversas famílias de tipos e corpos de letras, seccionadas pelo branco da página, do jogo do claro escuro, da abertura de espaços “significantes”, da interferência do branco sobre a composição tipográfica, produzindo ondulações quase musicais, foram inovações que acabaram detonando a revolução gráfico-visual encampada pelo poema de vanguarda do século XX. Mallarmé falava em seu poema de uma “constelação fria pelo esquecimento e pelo desuso” para finalizar com o verso-chave Tout Pensée émet um Coup de Dés – todo pensamento emite um lance de dados. E volta ciclicamente: um lance de dados jamais abolirá o acaso (da composição).

Mansur retoma Mallarmé em sua essência. Mais que grafar seu poema-constelação com a tipologia excêntrica, com o emaranhado de famílias e designs de letras que remete ao Coup de Dés, ele aproveita os tipos de que dispunha em sua tipografia, mesmo aqueles em “desuso”, numa junção aleatória. Mansur consegue otimizar a surpresa do lixo tipográfico, o “lixobjeto”, reciclando letras quebradas, perdidas de suas famílias. QUADRILÁXIAS é a galáxia de Gutenberg construída com o acaso mallarmáico. Mansur joga com a invenção do acaso, exatamente como dizia Mallarmé no prefácio de seu poema: “sem presumir do futuro o que sairá daqui – nada, ou quase uma arte”.

Instalado nas montanhas de Ouro Preto, em plena zona metalúrgica, Guilherme Mansur trabalha basicamente com a arte povera, utlizando-se do material do meio geográfico e de seu ofício de poeta-tipógrafo para a feitura de QUADRILÁXIAS. Utilizada pelos sem-terra, a lona é um “buraco negro” na galáxia de Gutenberg. O papel é a estrutura geométrica onde o poeta grava suas “entreletras”, a constelação de tipos ampliados ou reduzidos à exaustão, via xerox, “estourando” ou sumindo na página, conduzindo sempre ao nada (de novo Mallarmé: mero acaso?). As pedras representam o peso, o corpo do poema enquanto instalação. Minério de ferro, matéria bruta tipográfica, elas não só demarcam o espaço, pontuam o poema, como desempenham uma função alegórica – “meteoros-metáforas”, no dizer do poeta.

Mansur pretende mostrar exaustivamente seu trabalho, que já circulou em Minas antes de chegar ao Rio – e daqui segue o caminho das pedras tipográficas até São Paulo, até aonde QUADRILÁXIAS resistir em sua viagem. Exaustivamente até que as folhas se desmanchem, se transformem em nada, se esfacelem pelo tempo de uso e desapareçam como as famílias tipos da constelação mallarmáica. A lona, o papel, a pedra. E a constelação às avessas, as “entreletras” de Gutenberg lançadas no chão do acaso. 


Ronaldo Werneck

CCBB/Rio, 1992 

Links para os vídeos do lançamento em BH e para a “Chuva de Poesia" em Ouro Preto.

Lançamento em BH : https://youtu.be/4oeMWo_P9rg?si=Ec2N0T5-pyaxPgXR 

“Chuva de Poesia" : https://youtube.com/shorts/5XklE0tcRhQ?si=zGTINSVemqZbcER0