21 de mai. de 2025

 

Maria Lúcia Godoy:

pássaro em pleno voo


 


         

         Aos 100 anos, faleceu na última sexta-feira, 16 de maio, a soprano mineira  Maria Lúcia Godoy (Mesquita, MG, 02.09.1924 – Belo Horizonte,  16.05.2025). Incensada por grandes nomes (JK, Bidu Sayão, Ferreira Gullar,  Drummond, Fernando Sabino, Glauber Rocha), Maria Lúcia foi uma de nossas  maiores cantoras líricas. Nós nos conhecemos em meados da década de 1990, quando ela fez um concerto apresentado por mim no CCBB/Rio, onde desfilava modinhas imperiais recolhidas por Mário de Andrade e belas serestas mineiras, “paixão e alento das gentes das Gerais”, como me dizia. Acabamos amigos: Minas nos uniu. Em fevereiro de 2004, Maria Lúcia realizou um concerto aqui em Cataguases, no Centro Cultural Humberto Mauro. Fui de novo o apresentador e publiquei na ocasião um texto sobre minha amiga na revista Usina Cultural, que eu editava junto com Mônica Botelho.  Eu a chamava, brincando, de “La Godoy”, epíteto que cai bem na Diva que realmente era. Em sua homenagem, reproduzo a seguir meu texto. 

 



    “Sua voz, quando ela canta,/ Me lembra um pássaro/ Mas não um pássaro    cantando/ Lembra um pássaro voando”. “A mais bela, a mais comovente, a      mais importante voz deste país”. “A tua voz confundia-se com o aroma das        rosas. Era tão segura e forte que enfraqueceu meu coração, meu corpo e                minha alma, de tal modo que não tive forças para te procurar e agradecer-te           por tudo e de joelhos te dizer muito obrigado”.

     “Nada de prima-donna, nenhum traço de afetação ou vedetismo que a            ópera nos acostumou a atribuir aos cantores líricos. Maria Lúcia tem um                jeito familiar de the Girl Next Door, como dizem os americanos – não fosse a        voz que, mesmo apenas falando, sugere aquele denso e profundo mistério          da criação: uma voz em que a poesia se reflete”. “Dona, sua voz é a paz no          coração, sua voz é o silêncio do mundo”. “Lembrar as serras de Minas/                   Demolidas, como dói!/ Mas me consolo se escuto/ Maria Lúcia Godoy./ Foi-        se o ferro de Itabira?/ O ouro não se destrói:/ Está na voz da mineira/ Maria          Lúcia Godoy”.

    O primeiro poema é de Ferreira Gullar. A frase a seguir, de Juscelino Kubitschek. A outra, de Cartola. Depois, Fernando Sabino. Aqueloutra, de um gari da Prefeitura de Belo Horizonte. O último poema, claro, é de Carlos Drummond de Andrade. “Ouvir Minas é ouvir Maria Lúcia Godoy”. Esta é do ex-Secretário de Cultura Angelo Oswaldo.

    Referência obrigatória da cultura contemporânea brasileira, a soprano Maria Lúcia Godoy veio a Cataguases em novembro para cantar no encerramento das atividades da Escola de Música Lila Carneiro Gonçalves e lançar três CDs: Cantares de Minas, Modinhas Imperiais Brasil-Portugal e Maria Lúcia Godoy canta Manuel Bandeira.

Na chuva e sem barreiras
    

    “Eu vim aí pelas ruas de Cataguases, do hotel até aqui, literalmente cantando na chuva” – diz a diva ensopada, enxugando-se no saguão do Centro Cultural Humberto Mauro. “É sempre um prazer cantar para uma cidade especial como Cataguases, com sua literatura e entidades do quilate desta Fundação, que protege e está frequentemente patrocinando arte e artistas. Esse povo precisa e merece. E é sempre bom cantar num teatro maravilhoso como este. Ainda mais com o Choro e Canção Patápio Silva, esse grupo cataguasense de gente muito simples, maravilhosa, extremamente musical.

    “Cantar. É sempre um prazer cantar. Ultimamente tenho trabalhado muito com o Arte sem Barreiras, programa que trata da inclusão do artista deficiente na sociedade. É um movimento criado nos EUA e que em nosso país é desenvolvido pela Funarte e dirigido por Albertina Santos Brasil, uma mulher fantástica, de quase 80 anos e safenada, que viaja pra todo o lado, Brasil e exterior, levantando de forma comovente a bandeira do Programa. Antes de tudo, o artista deficiente é um artista, um ser humano como qualquer outro, que deve poder mostrar sua arte. E Albertina sabe disso como ninguém.

    Maria Lúcia lembra-se então de seu sobrinho Arnaldo Godoy, deficiente visual, que acabara de nos emocionar dias antes, quando foi exibido o filme "Janela da Alma", de João Jardim e Walter Carvalho. Numa das sequências, ele conta ter entrado no mar de Copacabana com a filha menor e que, de repente, ela desgarrou-se de suas mãos e ele ficou desesperado por ter perdido a menina em meio ao mar. Logo ela voltou às suas mãos e o susto passou.  Arnaldo e eu conversamos muito nos dias em que ele esteve em Cataguases. Um cego muito bem-humorado, pleno de piadas, mesmo quando,  agora,  já conseguia falar sorrindo sobre o episódio da praia.

    “Cantar sempre ilumina", diz Maria Lúcia. "Um dia meu sobrinho          Arnaldo         Godoy, que é cego, convidou-me para cantar num teatro que construíra para         os integrantes do Arte sem Barreiras em Belo Horizonte. Eu cantava ‘Ai, por          quem és, desce do céu,/ Oh! Lua Branca/ Essa amargura do meu peito, vem,          arranca/ Dá-me o luar da tua compaixão/ Oh! Vem por Deus iluminar meu coração’, pois é, eu cantava com os cegos do Instituto São Rafael o ‘Lua Branca’, de Chiquinha Gonzaga, quando aparece uma lua gigantesca, maravilhosa, uma coisa mágica. Desse momento iluminado eu não me esqueço mais.

 

Glauber e o soluço engasgado




          Se falo baixo é para preservar minha voz, que é técnica mais emoção. É uma coisa que brota de mim, natural, espontânea. Eu a preservo porque esta é minha força, meu projeto de arte, é como levo emoção ao meu público. Lembro de um poema meu: ‘Cumpra meu canto até onde possa imaginá-lo/ Que possa tensionar as palavras/ E ser o arco musical das intenções´.

    Gosto muito de poesia. Esse disco que gravei com poemas de Manuel Bandeira é usado em universidades americanas para estudo de poetas brasileiros. Em Tóquio, no Japão, e até no Afeganistão eu cantei “Azulão”. Na Alemanha, França, Itália, Espanha, na Europa toda, também em Bagdá, essas coisas belíssimas do Bandeira com o Jayme Ovalle (cantarola):  ‘vai azulão, vai companheiro´, grande sucesso em vários países.

    “Uma de minhas maiores emoções foi cantar no enterro de Glauber Rocha, a convite de sua mãe. Quem cantou as Bachianas no filme “Deus e o Diabo” foi a Bidu Sayão, Glauber não me conhecia ainda. Foi uma surpresa quando Dona Lúcia me procurou: ‘Ah Maria Lúcia, Glauber era apaixonado por você, gostava tanto de sua voz, tinha todos os seus discos, estão quase furados de tanto ouvir! Ele queria muito colocar você num filme sobre O Guarani’. Cantei ao vivo pro Glauber, ele morto, e foi uma coisa comovente.

    “Cantar é sempre muita emoção, é uma dádiva.  Mais que amor, é uma doação onde temos como resposta o aplauso do público. Isso nos desgasta muito, a gente coloca sempre muita intensidade e sempre se sujeita às intempéries da vida. É como escrevi no poema musicado pelo Waldemar Henrique (cantarola): ‘A voz é triste e a canção magoa/ Entretanto eu canto/ Entretanto eu canto/ E nesse exercício raro/ Vai-se enxugando o meu pranto/ Eu vou guardando entanto a voz/ Meu amor, meu desencanto/ Entretanto eu canto/ Na garganta preso/ Como um pássaro/ Um soluço engasgado”.

Ferreira Gullar tem razão: cantando, Maria Lúcia Godoy “lembra um pássaro voando”.

Cataguases, fevereiro de 2004