No verão de 2013, de passagem pelo Recife, assisti
por acaso, sem qualquer indicação, ao filme “O Som ao Redor”, de Kléber
Mendonça Filho. Não sabia nada do filme nem do diretor, mas como a trama
acontecia no Recife acabei “arriscando”, já que ali estava. Grata surpresa: “O
Som ao Redor” é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos, e aí entram
também os estrangeiros. De volta ao hotel, na Praia da Boa Viagem, me vi subitamente
dentro do cenário de “O Som ao Redor” e lembrei-me do personagem Francisco
(chefe de uma família que domina alguns quarteirões da Zona Sul do Recife)
entrando no mar à noite, bem ali onde eu me encontrava.
Nos créditos do filme, lembrava-me de ter notado o
nome de um dos atores, W.J. Solha, mas não sabia qual o seu papel. Pensei já
ter visto o nome, talvez até em meus contatos de email, já ter lido alguma
coisa dele, mas não ligava o nome à pessoa, ou vice-versa. Qual não foi minha
surpresa quando há pouco tempo, por ocasião da morte de um amigo em comum, o
escritor cearense Nilto Maciel, vi novamente o nome W.J. Solha assinando um
texto sobre o Nilto na web. Havia uma foto dele e identifiquei de imediato o
“Senhor Francisco” do Som ao Redor. Logo depois, li um excelente texto do Solha na
Revista Eletrônica Rio Total, onde falava en
passant do Guernica de Picasso visto no Museo
Reina Sofia, em Madri, mas voltava os olhos com maior atenção para a mostra
de um fotógrafo canadense, Jeff Wall, que ali se encontrava. Também eu vira por duas vezes o Guernica no Reina Sofia, inclusive quando de uma
grande exposição sobre Picasso, em 2010. E me detivera, e me detivera, e me
detivera e vou me deter sempre ante o quadro trágico e monumental.
Mas a atenção de Solha naquele dia – Guernica à
parte – fixou-se nas fotos de Jeff Wall – em transparência, de grande porte e
retroiluminadas –, principalmente uma intitulada “Um brusco golpe de vento (a partir de Hokusai, de 1993”). Fora a
dinâmica, o que mais deslumbrou Solha foi saber que a foto remetia a uma imagem
que o japonês Hokusai (Katsushika Hokusai, 1760-1849) flagrara 200 anos antes.
Daí, mostrando grande erudição, Solha parte para a influência da arte oriental
na Europa, marcando trabalhos de Manet, Van Gogh, Cèzanne e outros mais. Seu
texto, acuradíssimo, estava eivado de tal argúcia e propriedade que não me
contive: acabei enviando ao Solha longo email elogiando o primor de suas
palavras.
Logo, seguiram-se outros e-mails de cá pra lá, de
lá pra cá, e descobrimos vários e vários amigos em comum. Enviei também alguns
de meus livros, enquanto aguardava/aguardo o envio de seus livros (o Solha
poeta ganhou o prêmio João Cabral de Melo Neto e foi finalista no Jabuti), que
ainda não chegaram. Qual não foi o meu espanto há algumas semanas, quando
estava em Nova York – e pensara nele naquele mesmo dia, ao ver um quadro de Van
Gogh no MoMa (o título de um dos livros de poemas de Solha, “Trigal com Corvos”,
remete ao quadro de Van Gogh) –, qual não meu espanto, repito ainda espantado, ao
ler no meu facebook dois textos do Solha sobre meus livros. Sou um analfabeto
nos mistérios do facebook e não consegui enviar mensagem pra ele de meu
i-phone, instrumento que manejo com total deficiência, com a imperícia de um
matuto manobrando nave espacial.
Agora sim, “acá y ahora”, direto da
base/Cataguases, prestidigito essas linhas de agradecimento. “Paraibano” desde
1982, embora nascido em Sorocaba, o escritor, poeta, dramaturgo, roteirista,
ator e artista plástico W.J. Solha é desses seres multifários que fazem de tudo
um muito e um muito de tudo, com argúcia e grande competência. Mais que
agradecido, sinto-me honrado com suas palavras. Parece cabotinismo (e é), mas
não resisto a divulgar aqui os seus textos sobre meus livros. Gracias, Solha!
Ronaldo
Werneck em
cataminas pomba & outros rios
W.
J. Solha
A
obra tem substancial fortuna crítica. Fábio Lucas define-a como um suave
percurso pela estória, pela História, pelas partes do Ser. Articulando
confidências da memória e da memória coletiva. Mas Délson Gonçalves parece
alertar, em versos, que se trata disso tudo, mas também de poesia, ao
acrescentar a essa definição algo essencial, quando diz que “o rio caminha fora
de mim/ e o mesmo Pomba me navega por dentro”. Não é à toa a citação que o
próprio Werneck faz de Neruda: “– Sé lo que dicen / todos los rios. (...) Hay
secretos míos/ que el rio se há llevado. (...) Reconocí en la voz del Arno
entonces/ viejas palabras que buscaban mi boca”. Recapitulando: “Confidências
da memória e da memória coletiva”. “Secretos míos”.
Tem
a ver, que numa reedição futura, por isso mesmo, talvez o livro venha a se
encher de notas de rodapé, como o “The Waste Land” do Eliot, desnecessárias
para os de Cataguases e – em alguns casos – somente para o autor, pois a obra
acaba tendo alguma coisa muito pessoal, claro que não hermética como no
“Finnegans Wake”, mas tendo. Exemplo: “como numa fotografia/ como num stop no
tempo/ como num apanhado do landóes”. Felizmente o volume é fartamente
ilustrado e se vê, no verso de uma foto de 1911, reproduzida justamente nesse
ponto: “Atelier Photográphico Alberto Landóes”. Como diz o Manoel de Barros,
numa das inúmeras epígrafes do livro: “Imagens são palavras que nos faltaram”.
Mas isso fez com que eu só fosse conquistado
totalmente pela obra quando – no final dela – Werneck fala de rios com que não
tem a mesma intimidade, como o Tajo, o Tâmisa, o Sena, que me fizeram voltar ao
Cataminas e ao Pomba com outros olhos. E por falar em fotos, realmente cataminas pomba & outros rios tem a
beleza extra de muita, muita fotografia de Cataguases e de sua gente, o que,
com o que afirma Fábio Lucas – seu ritmo é cinemático – mais o fato de que o
poeta é apaixonado pelo cinema, me fazem ver, nele, por um momento, um belo
roteiro devidamente ilustrado com todas as suas locações no tempo e no espaço.
Por
que, então, se não lhe faltavam engenho & arte, Werneck não fez um filme?
Porque, parafraseando Manoel de Barros, palavras são imagens que nos faltaram.
Como quando o mesmo Werneck, genialmente, diz: “Pressinto/ cabreiro/ com
horror/ que estou/ numa cidade/ do exterior/ mineiro”. Uau! Mais adiante, ele
descreve o Tibre como “fio presente ausente/ nas glórias de outrora/ não se vê
não se sente”. Mas “não se vê, não se sente” o quê? “faces flashes de outrora/
estilhaços de fausto/ tênues fragmentos/ sombras sobre a história”. Claro.
História!
Ele
é novamente genial quando diz, em El
tajo/tejo:toledo: “Miúdo /em toledo el tajo é tudo/ el cid el greco”. Exato. Senti isso ao parar na pista, fora da
cidadela fortificada pelo rio franzino que a rodeia no fundo do vale, eu
exatamente onde o pintor excepcional fincara o cavalete para pintar a bela Vista
de Toledo, cheia do espírito místico da cidade e dele mesmo. Werneck me faz
pensar novamente nela, quando descreve Ouro Preto: “chove sobre a cidade
encarcerada em sabão e pedra”, finalizando assim: “chove água que escorre sobre
o ouro dos pretos e leva sua memória”. Não “lava”, como seria de se esperar.
“Leva”. É impressionante como ele venera sua terra, como ama a História.
Ele
diz, em L´arno a firenze: “Como
antes/ la luna / a mesma/ de dante/ & petrarca/ a mesma se via/ sobre a
água/ refluxos de poesia”. E vai fundo, em El
manzanares en madri: “Um rio/ fechado em si/ um rio/ lago/ um rio/ del
cante-jondo/ pardo-tardo-redondo”. Fluem, assim, os versos de Werneck, sobre o
rio que cruza Cataguases “correndo corroendo/ um século em cada minuto”.
“Correndo corroendo”. “A preta prata madrugada”. “Gretas grutas”. Nesses
desdobramentos de palavras – que me lembram o glauberiano poeta recifense
Jomard Muniz de Brito –, ele mostra o quanto cuida de cada detalhe do que
compõe, quase como um outro grande mineiro, Guimarães Rosa, mas empenhado na
multiplicação dos enfoques, como os cubistas faziam, trabalhando sempre com
vários ângulos simultâneos, como numa quarta dimensão.
“O
bafo da railway bufando com bazófia/ entre nostálgicas indústrias/ se acendendo
se ascendendo se/ movendo-se movendo se/ como loucas se locomovendo se”. Cinema? Quase. Veja a decupação que ele faz
desta cena: “O rio envolve/ esse tropel de burros/ bicicletas/ meninos soltos/
no pó/ no pé descalço/ nos galhos/ pendurada no ar/ nas árvores”. Mas aí se
segue o pulo do gato: “a poesia / se desmanchando/ se amarelando/ se
dissolvendo”.
Humberto
Mauro revisto
por
Ronaldo Werneck
W.
J. Solha
Acredito
que Humberto Mauro esteja para Minas como Linduarte Noronha para a Paraíba. O
documentário “Aruanda” – paraibano – foi, segundo Glauber, a estreia do Cinema
Novo brasileiro, o primeiro filme nacional feito apenas “com uma câmera na mão
e uma ideia na cabeça”. Graças a esse enorme elogio, eu e o José Bezerra Filho,
quando fundamos a Cactus Produções Cinematográficas Ltda, lá em Pombal, no alto
sertão paraibano, em 1969, onde éramos funcionários do Banco do Brasil, o
convidamos para dirigir aquele que foi o primeiro longa de ficção, do estado,
em 35 mm – “O Salário de Morte” – no qual fiz a direção de produção e o papel
de um pistoleiro.
Foi
uma loucura: vendi a casa e um caminhão para investir no filme, de que
praticamente toda a cidade foi acionista. Essa coisa épica eu acabo de
reencontrar no monumental “Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck”, de
fascinante leitura, pelo conteúdo gigantesco e pelas mil formas – coisa pra o
“Ulisses” de Joyce – encontradas por Werneck para narrar e narrar e narrar o
que foi tudo aquilo que aconteceu em Cataguases, engrandecendo Minas no
nascedouro do cinema brasileiro, lá pelos anos 1920, quarenta anos antes do
famoso documentário do Linduarte. Gostoso, no livro, ver Glauber assistindo
quatro vezes ao “Ganga Bruta” do Mauro, enquanto o resto da turma de cineastas
estava numa festa, naquele interior mineiro. Não é à toa que sinto no ambiente
escolhido para “Terra em Transe” muito do que se vê nesse longa de 1933.
Gostoso
ver o quanto o paraibano Walter Carvalho comparece no livro, inclusive no
enterro do Humberto. Gostoso ver o Werneck entrevistando seu velho ídolo, com
toda a intimidade que só os conterrâneos têm. Gostoso ver as primeiras divas
brasileiras irrompendo lá de Cataguases. Gostoso ver a coisa simples que é
flagrar Humberto vendo um filme americano e dizendo a um amigo “Isso eu também
faço”, e fazer. Gostoso ver os primeiros investidores desse cinema que brotava
da terra, comerciantes da cidade pequena, como fizeram os de Pombal. Gostoso
ver o rico manancial de imagens fotográficas com que o volume ilustra o que
conta. Quem gosta de cinema não sabe o que está perdendo: “Humberto Mauro
revisto por Ronaldo Werneck”.
João Pessoa, 22 de maio de 2014
Um comentário:
Parabéns, Roneck, pelo reconhecimento de sua obra por quem realmente entende do riscado.
Abração!
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