Show no CCBB/Rio Clássicos
do Jazz
Meses depois do porre negro
romano de 1979, e já no Rio, convido o Tião e o Afonsinho (que acabara de
chegar da Itália) para uma feijoada lá em casa, num apartamento da Tijuca onde eu
morava na época. Foi o quarto porre negro. Isso porque, feijoada sem batida de
limão, como bem o sabeis, “dá cadeia”. Lá pelas tantas da noite, resolvo dar
uma carona pro Afonsinho (o Tião já fora embora), que estava na casa de sua
irmã Marluce, no Leblon. Demos uma parada estratégica num botequim da Praça da
Bandeira, soltanto pra abastecer. Só
me lembro que o que aconteceu foi depois de o Afonsinho contar umas histórias
das peladas que jogara com o Garrincha (e também com o Chico Buarque) quando a
Elza Soares morava em Roma.
O boteco,
àquela altura, estava cheio de bebuns das mais variadas estirpes, um ambiente
que vou te contar. Afonsinho foi ao banheiro e na volta tropeçou num deles, um
sujeito imenso e mal encarado. Tanto que não se fez de rogado: não aceitou as
desculpas e partiu logo pra cima do nosso baterista. Eis que surge do nada um
negão pra-lá-de-pra-lá-de-grande, que segura o outro e manda essa,
inacreditável: “aqui ninguém parte pra cima de amigo do Mané Garrincha, que eu
parto logo na porrada”. Ufa, pagamos umas cervas pro nosso novo e nobre amigo,
e demos no pé. Dessa vez não teve pão com salame, mas o susto foi grande. Qualé,
qualé! Viva nossas pernas tortas, viva o Mané!
Corta para Cataguases, final dos
anos 1980. Já vai pra mais de meia-noite de um domingo quando entramos em meu
carro rumo ao Rio. Ao meu lado, Afonsinho – em definitivo no Brasil, após quase
vinte anos na Itália – diz que seu gosto pela música veio de seu tio Vadinho,
que tocava sax como ninguém, e gostava muito de jazz. Fala de sua bateria, que
ficou em Roma, e de um festival de jazz onde tocou com Tony Scott, um dos
ídolos de Billie Holiday. Lembramos então do Edson Machado, o
Edson Maluco, e daquele seu solo de bateria antológico na gravação de Nara para
a música Opinião, de Zé Kéti.
E também do ator Sal Mineo,
canastríssimo, no papel do baterista Gene Krupa, um dos ídolos do Afonsinho e
de outros bateristas – do Tião, é claro, do Milton Banana, do Edson Machado, do
Reizinho da Bateria, do Robertinho Silva e também do nosso grande amigo
Juquinha – que além de baterista foi jóquei e marceneiro dos melhores. Acho
que, à exceção do Robertinho, toda essa gente já se encontra no rol dos
“saudosos” – como, aliás, a grande maioria dos nomes citados nessa série de
crônicas.
Entramos em Teresópolis para um café
com coca-cola: vão longe, e para sempre, os tempos etílicos – aqueles
memoráveis porres negros. São quase três
da manhã e o bar está cheio. Um cidadão que está tomando uísque volta-se pra
mim e diz, solene: “Vi tua mulher ontem no Golf Club. Ela anda bebendo muito”.
Toma um trago e olha pro Afonsinho: “Não tava te conhecendo. Sabe que eu votei
em você? Pois é, eu também sou PMDB”. Detalhe: nunca havíamos visto aquele sujeito.
Afonsinho sorri e diz: “É incrível nossa capacidade pra atrair malucos”. Bingo!
Mas malucos mesmo, malucos por música de qualidade,
foram aqueles três personagens inefáveis que se responsabilizaram por boa parte
do melhor som produzido no Rio dos anos 1990 – o trio formado pela bateria de
Afonso Vieira, o piano de Chiquinho Neto, um dos melhores instrumentistas da
noite carioca, e o baixo (e a voz) do
saudoso Manuel Gusmão, o baixista nº 1
da bossa nova, desde que se abriram os clubes do Beco das Garrafas, além de
fundador do famoso Copa Trio. Pois foi esse o Trio que sugeri à pianista
clássica Lilian Barretto para incluir em seu Projeto “Música da América”, que
aconteceu no CCBB-Rio em 1992.
Dito e feito. Sob o título
“Clássicos do Jazz”, o trio Afonso-Chiquinho-Gusmão mandou ver no palco do
Teatro II do CCBB, numa das melhores e mais aplaudidas performances do Projeto
“Música da América”. Foram muitos os standards do jazz apresentados num show de
quase duas horas naquela noite de 05 de setembro de 1992. Editei trechos do
show mais que memorável do Trio, que se encontram no vídeo “Clássicos do Jazz”
(link a seguir), destacando músicas como “There´s A Small Hotel”, de Richard
Rogers e Lorenz Hart; “Don´t Ge Around Anymore”, de Duke Ellington e Bob Russell;
e “Route 66”, de Bobby Troup. Um show
“da pesada”, como se dizia naquele tempo, com Afonsinho solando como nunca na
batera.
Ao longo desses últimos três meses
desde a morte de meu amigo, e enquanto começava a estruturar essa série de
crônicas, a imagem do Afonsinho permanecia viva e me assolava a sua lembrança a
cada momento. Nossos muitos risos, suas muitas performances, lances que surgiam
do nada, como se soubessem que eu estava envolvido na escritura dessas linhas, e
assomado pela saudade. Como os três cds
da Coleção Folha 50 Anos de Bossa Nova, comprados ao acaso em Paraty durante a última
Flip, e que vieram rodando em meu carro.
Um deles, com o Milton Banana Trio e
sua bossa-jazz, me levou de volta a Copacabana, ao “200 da Barata Ribeiro” e ao
Tião e ao Afonsinho. Milton, que acompanhou Tom Jobim e João Gilberto desde o
início da bossa nova foi, na verdade, o criador da “batida diferente” que acompanhava,
no bar do Hotel Plaza, a revolucionária batida do violão que João aplicava aos
sambas de Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira e dele mesmo. No encarte do
disco, Ruy Castro escreve: “É a Milton Banana que se deve, não apenas o típico
teque-teque da bateria da bossa nova, mas todo o colorido rítmico e a intensa
variedade de tempos que o ritmo exigia”. Vinte anos depois que Milton Banana me
perguntava sobre a Bolsa de Valores naqueles tempos do “200”, eu o encontrei
tocando – para ninguém! – num soturno inferninho do bas-fond de Copacabana.
Foi nessa época que o Milton andou
morando de favor num quarto de fundos do apartamento de minha amiga Míriam, uma
professora de português de “escolas de escol” do Rio. Míriam era uma pessoa
séria e recatada, que adorava música e literatura: tenho até hoje uma edição
bem cuidadíssima da Divina Comédia, fartamente ilustrada por Gustavo Doré, que
ela me presenteou. Bem, Míriam era recatada até que tomava umas e outras no
Licks Bar, o botequim em frente ao apartamento onde eu morava na Constante
Ramos, nosso “escritório”, meu e de toda a turma da rua. Aí, meus caros, saiam
todos de baixo: ela se transformava na “Míriam Camburão” e botava pra quebrar.
Coisas da Copacabana daqueles tempos de nunca mais.
Mesmo ajudado pelo cantor e compositor Mário Telles, irmão
da Sylvinha, que organizou um show beneficente para ele, Milton Banana morreu
em maio de 1999, após graves problemas circulatórios provocados pela diabetes
(teve uma perna amputada numa cirurgia no mês anterior). Segundo Ruy Castro, no velório chamou a
atenção uma coroa de flores com os dizeres: “A Milton, a quem o Brasil não
homenageou, nem reconheceu. Ass: Todos os músicos do Brasil”. Soube-se depois
que a coroa teria sido enviada por – quem mais? – João Gilberto.
Outro cd comprado em Paraty foi do nosso
conterrâneo, o saudoso cataguasense Lúcio Alves, de quem eu e Afonsinho tanto
gostávamos (e o João Gilberto também; Lúcio era um de seus ídolos). Lembro de
alguns de nossos papos. Eu, Afonsinho e o Lúcio, décadas e décadas atrás, num
botequim da Urca, nas proximidades da TV-Tupi, onde Lúcio era diretor. Nossa
conversa girava quase sempre sobre o Festival de Música Popular Brasileira de
Cataguases que eu e o Joaquim Branco estávamos organizando em 1969 – e Lúcio
Alves nos deu uma grande força para a realização.
E parece que está acontecendo ainda agora
aquela viagem de tempos depois, quando viemos num táxi do Rio para o Festival –
eu, Lúcio e a saudosa cantora (e “certinha” do Stanislaw Ponte Preta) Luely
Figueiró. Lúcio era um dos jurados (ou o presidente do Júri?) e Luely iria
defender uma das músicas, “Momento”, exatamente uma parceria do Afonsinho com o
também saudoso compositor cataguasense Messias. Enquanto o táxi subia a Serra
de Petrópolis, Luely e o – também ele! – saudoso Lúcio Alves parodiavam Tom
Jobim em sincopados semitons: “Minha alma canta/ deixo o Rio de Janeiro/ já
estou morrendo de saudade”. E emendavam com aquela
valsa-maravilha-de-uma-cidade-maravilhosa, aquele campo/contracampo
cinematográfico de Ismael Netto e Antonio Maria: “Vento do mar e o meu rosto ao
sol/ a queimar, queimar. /Calçada cheia de gente a passar/ e a me ver passar”. Realmente,
essas crônicas estão se transformando num festival de saudosos, e nos deixam
aqui morrendo de saudade.
O terceiro cd que comprei era da Sylvinha Telles, que
foi quem levou o Afonsinho pro Rio, após vê-lo tocando uma noite em Cataguases.
Não conheci a Sylvinha, que morreu muito cedo, mas sim seu irmão Mário Telles, o
autor da bela canção Nanã, em parceria
com Moacir Santos: “Nesta noite nos delírios meus/ Vi nascer um novo amanhã/ Veio
o dia com um novo sol/ Sol da luz que vem de Nanã”. Afonsinho e eu nos
encontrávamos às vezes com o Mário na Copacabana dos anos 1990, em longos papos
que começavam no Bar El Cid, na Rua Viveiros de Castro, e se estendiam Barata
Ribeiro e noite afora até as proximidades de seu apartamento na esquina da Rua
Paula Freitas. Numa dessas noites, Mário me presenteou com um de seus cds onde
canta várias canções de Baden Powell com Vinicius e duas de sua parceria com
Baden (Aurora de Amor e Tristeza vai embora), além de Nanã. E nessas e em outras ocasiões Mário
(morto em 2001, mais um ”saudoso”) sempre dizia pro Afonsinho como sua irmã
falava bem dele e de sua bateria.
Sylvinha Telles foi umas das
“inventoras” do canto cool da bossa nova, ao lado de João Gilberto, de quem,
aliás, foi namorada. Seu cd é praticamente dedicado a Tom Jobim (ela talvez
tenha sido a cantora que mais gravou músicas do Tom) e traz na faixa de
abertura um impecável “Dindi”, canção que ficou mais conhecida em sua voz. “E o
vento que fala nas folhas/ contando as histórias/ que são de ninguém/ mas que
são minhas/ e de você também”. Ouvindo agora, percebo que Dindi tem a ver com
essas histórias que são minhas e do Afonsinho também. Certa vez, perguntada
qual foi seu maior sucesso, Sylvinha respondeu: “Dindi. Indindiscutivelmente”.
Mas o disco de Sylvinha conta também
com “Canção da volta”, de Ismael Neto. E ouvindo Sylvinha cantar os versos de
Antonio Maria (“meu lugar é aqui/ faz de conta que eu não saí”) revém a
lembrança das palavras do Afonsinho em 1993, após a execução de nossa música Vermelho Cais no palco do Festival em
Cataguases, que homenageou exatamente, olhaí, o “saudoso” Lúcio Alves, morto
meses antes: “eu fui (para a Europa),
mas voltei. Meu lugar é aqui”. Será que foi inconsciente, ou meu amigo estava
“citando” a gravação da Sylvinha? Ou, mais uma vez, eu estou pirando na
batatinha?
Continua na próxima semana
Nenhum comentário:
Postar um comentário