“Fernando Pessoa aborrece-me até a
morte”, disse recentemente o romancista António Lobo Antunes, um dos escritores
portugueses atuais mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. O dito de
Lobo Antunes faz reviver quatro décadas depois uma das tiradas de Rosário Fusco
sobre alguns mitos da literatura, daqui e dalhures. “Fernando Pessoa é um chato
em e com todos os pseudônimos”. “Rilke tinha tantas perebas psicossomáticas que
nem Rodin conseguiu descascá-las a cinzel”. Esses são apenas dois dos inúmeros
destaques extraídos da bombástica entrevista que eu e Joaquim Branco fizemos
com o escritor mineiro Rosário Fusco (1910-1977), publicada pelo Pasquim há exatos 40 anos (nº 351, 19 a
26 de março de 1976). Sarcástico, amargo, ferino, Fusco deixa transparecer na
matéria do Pasquim o atento leitor que sempre foi, o arguto pensador e,
principalmente, o grande romancista.
“O escritor brasileiro é um
supercamelo”, uma de suas frases, que “puxei” pra título da entrevista, foi
copidescado por um dos editores do Pasquim (Ziraldo? Jaguar?) e saiu como
título da matéria, em letras garrafais, como “O escritor brasileiro é um
supercamelô”, o que mudou por completo o seu sentido. Na verdade, o que Fusco
dizia era: “O romancista brasileiro não é, antes de tudo, “um duro”: é um supercamelo
carente de enzimas digestivas: rumina, mas não digere”. Editada em corpo 8, texto compacto
– como o tratado sobre a arte de tomar banho com um copo d´água, escrito por
Mme de Montespin, que ele cita em uma de suas respostas (“composição corrida,
cerrada, corpo 8 antigo”) –, mesmo assim a entrevista ocupou seis páginas (uma
das maiores publicadas pelo Pasquim), com grandes espaços destinados às fotos
de Adriana Montheiro, clicadas na casa do escritor em Cataguases.
Devidamente
ampliadas, as fotos foram perdidas na redação do Pasquim, e os negativos também
sumiram com o passar do tempo. Elas foram agora restauradas a partir de uma
velha edição do jornal que sobrou em meu acervo, e tratadas no photoshop, mas o resultado deixa a
desejar. De qualquer forma, elas vão ilustrar a entrevista que será publicada
na íntegra numa série de crônicas a partir desta de agora, ao lado de algumas outras
fotos cedidas pelo filho do escritor, Rosário François Fusco. As “fotos do
Pasquim” ficam como registro do “momento” das inúmeras falas e papos com Rosário
Fusco.
“Quero que a dona Glorinha vá pra PUC!” (´Pontifícia Universidade Católica´, ressaltava). Eu
e Joaquim trabalhamos com anotações de nossos longos papos com Fusco, textos já
publicados e respostas por escrito a algumas perguntas. Ele detestava, ou dizia
detestar, gravador (pouca coisa da nossa entrevista foi gravada). O que não é
bem verdade: da última vez que o Vinicius de Moraes esteve em sua casa em
Cataguases, Fusco gravou todo o papo, apesar de visivelmente impressionado com
a Gesse. “Vejam vocês, essa baiana que o Vinicius arrumou é sensacional sob
todos os aspectos: conseguiu beber aqui, na minha frente, enquanto
conversávamos, uma garrafa inteira de cachaça. E pura: enchia um copo desse
tamanho e mandava brasa como se fosse água. Bebeu com uma dignidade de fazer
gosto: formidable”.
No mesmo dia em que saiu a
entrevista, 19.03.76, um Rosário Fusco danado da vida – e sob a chancela
“Reservadíssimo” – mandava-me carta de Cataguases: “… o que v. chamou de
montagem de textos e o Pasquim divulgou como entrevista é furo jornalístico de
foca provinciano”. E por aí seguia o velho e ferino Fusco, ameaçador: “… Mas
pode ter consequências, pelas quais o responsabilizarei no momento oportuno, se
for o caso”. A entrevista mencionava vários medalhões literários de forma
inédita e bem-humorada, entre eles Lawrence Durrel e… Grace Kelly, a própria.
Fusco temia inacreditáveis represálias sobre o que havia dito (e dito várias
vezes), como se os dois, a “princesa” e “o autor internacional”, fossem algum
dia ler o Pasquim.
Apesar de outros envolvidos no,
vamos dizer, quiproquó (o próprio Ziraldo, o Jaguar, o Joaquim, a Adriana, que
fizera as fotos), ele não livrava minha cara: “Tirei o Joaquim Branco da jogada
porque o estilo dos comentários – inconfundível pelos cacoetes – tenho certeza
de que são seus”. O velho bruxo da Granjaria estava realmente fulo da vida. Por
absoluto mistério do correio cataguasense, só em abril a carta chegou às minhas
mãos no Rio. Devolvi de bate-pronto, numa longa resposta onde mostrava meu
espanto com sua reação em cima de coisas já sovadas de tão ditas e repetidas para
o fechadíssimo círculo que frequentava sua casa da Granjaria. E sobre as quais
nunca se pediu segredo.
Em maio daquele ano não pude ir a Cataguases, tomado
pelo nascimento de meu filho Pablo e do lançamento carioca de Selva Selvaggia, meu primeiro livro. No
início de junho, recebo carta, agora sim, de meu velho amigo, que merece
transcrição:
“Ronaldo: nada de ressentimentos,
tanto mais que o dito ficou dito e, o falado, escrito. Velho aposentado não
dispõe de tempo pra cartear, pois que o elenco de doenças que carrega lhe
consome o tempo: entende? Vai entender, daqui a trinta anos. Parabéns
(extensivos à Adriana) pelo duplo parto: do filho de papel e do filho do amor.
Ambos são válidos e, às vezes, até se confundem nas nuvens do sonho igual. Estou
projetando um artigo comprido sobre sua poesia: mandarei. Não convém que a
turma do Pasquim apareça. Pelo menos, por enquanto. Assim que eu melhorar de,
ao menos, uma de minhas mazelas (acho que todas já se instalaram em mim pra
ficar até o dia do Juízo) avisarei. Annie se junta a mim para abraçar o, agora,
quarteto Werneck. Do velho, Rosário (18.06.76).
“Morreu de talento. É a urna de
cinzas detergentes do modernismo”, ele dizia sobre seu amigo Oswald de Andrade.
Parecia falar de si mesmo, de seu talento, que lembrava o de Oswald.
Continua na próxima
semana
Devidamente ampliadas, as fotos foram perdidas na redação do Pasquim, e os negativos também sumiram com o passar do tempo. Elas foram agora restauradas a partir de uma velha edição do jornal que sobrou em meu acervo, e tratadas no photoshop, mas o resultado deixa a desejar. De qualquer forma, elas vão ilustrar a entrevista que será publicada na íntegra numa série de crônicas a partir desta de agora, ao lado de algumas outras fotos cedidas pelo filho do escritor, Rosário François Fusco. As “fotos do Pasquim” ficam como registro do “momento” das inúmeras falas e papos com Rosário Fusco.
2 comentários:
obrigado, ronaldo, por disponibilizar, em crônicas tão bem redigidas, essas memórias controversas! eu sigo gostando demais do fernando pessoa!
Muito bom, Ronnie. Essa entrevista foi memorável na época e será sempre. Mostra o espírito do nosso querido Rosário Fusco.
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