Dando continuidade (na verdade, principiando) à publicação da entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976, encontra-se a seguir o texto de apresentação, que escrevemos em conjunto:
ROSÁRIO FUSCO PARA PRINCIPIANTES
De um encontro com Rosário Fusco, muita coisa se perde ou fica esclarecida pela metade (o homem não gosta de gravador), outras se pode tentar ler nas entrelinhas, e a maioria transparece na intenção de resguardar uma intimidade imperturbável. Ao lado de uma irreverência em bom som e sem limites, que não vacila em desfiar os assuntos mais controvertidos, Fusco é o místico terra-a-terra, o calmo-desafiante, o espiritualista-materialista, o malabarista do pensamento e, até, o homem comum. Um dualismo perfeito, como convém a um romancista de sua estirpe. De limpador de vidros de farmácia no interior de Minas a conferencista na Sorbonne, onde fotografou os originais do “Lance de Dados” de Mallarmé, passando o negativo do poema pro papel e sacando dessa inversão uma tese inédita, pelo menos na época: “o importante no Coup de Dés não são os espaços em branco, ao contrário do que pensam os apressadinhos, mas o avesso disso: a posição musical ocupada pelas manchas do texto dentro da página. Mas isso é só pra chatear “los cuprinos” (leia-se Augusto e Haroldo de Campos): se quiserem, ainda tenho os originais da geringonça”. De ghoswriter de inexpressivos e tresloucados políticos de Cataguases (um deles queria que ele lesse o discurso da torre da igreja e depois se lançasse lá do alto, naturalmente metido na recém-inventada máquina-voadora, obra-prima de outro maluco da cidade: “já pensou no impacto, meus caros?!”) a candidato a deputado na década de 50 (“não fique confuso, fique com Fusco”, era seu slogan), fragorosamente derrotado: “os imbecis não me entenderam, o que, aliás, não é novidade”.
De fabricante de perfumes e desenhista de modas (“até hoje minha mulher usa a água-de-cheiro que eu faço, os vestidos que eu desenho. Muito antes de as botas compridas estarem na moda em Paris ela já calçava as botas que eu havia bolado) a editor da falecida revista A Cigarra dos bons tempos – onde criou famoso concurso de contos, o primeiro do gênero e onde, jura, o Millôr Fernandes foi seu contínuo: “o rapaz era vivo e levava jeito”. De editor, criador e enfant terrible da Revista Verde, que fez em Cataguases na época do modernismo, com apenas 17 anos (é famosa sua carta a Mário de Andrade: “mandem colaboração, seus bostas!”. E os “bostas” mandaram não só um poema a quatro mãos, assinado Marioswald de Andrade – “todos nós somos rapazes/muito capazes de ir/ver de forde verde/os ases de Cataguases” –, como outro, de Blaise Cendrars, dedicado aux jeunes gens de Catacases), à maturidade do romancista de Dia do Juízo, seu último livro publicado no Brasil (em 1961). Ou do kakfiano O Agressor, de 1939, cujos direitos autorais foram comprados por Orson Welles à editora italiana Mondadori, que o lançou na década de 1960. Aliás, o prefácio italiano (L´Agressore) o compara a Kafka e Joyce (“dois animais que só vim a praticar muito tempo depois”, como ele afirma).
“Quanto ao Orson Welles, eu o conheci num baile do Quitandinha, quase trinta anos atrás. Mas não me lembro do que falei com o atleta: estava mais interessado na Grace Kelly, com quem, por sinal, acabei dançando, sofrendo o diabo dentro de apertadíssimo smoking alugado “pelos tubos” do Rollas: me custou todo o salário do Instituto dos Marítimos, onde eu trabalhava na época (aqui pra nós: “o sovaco da princesa fedia pacas!”). Agora, o que o Orson Welles vai fazer com o meu romance, nem eu sei. Aliás, acho que nem ele, pois até hoje, ao que parece, a coisa está parada, só soube da transação quando a Mondadori me mandou o dinheiro”. E daí vai. Ou vem. E continua: de menino paupérrimo (“quando lá em casa tinha angu com torresmo... era festa...” e se emociona às lágrimas) ao advogado bem-sucedido, ao procurador do estado aposentado (idem como escritor: como membro da confraria de amigos de Plínio Doyle, de quem partiu a ideia, foi um dos primeiros escritores brasileiros a se aposentar como tal), ao excelente e ferino crítico literário dos anos 1940. E poderia continuar ad infinitum, tão controvertida e multifária é a vida do homem e do escritor Rosário Fusco de Souza Guerra: “nasci da fusão, ou confusão, de mulata com italiano, daí meu metro e oitenta acima do nível do mar (um gigante dentro do baixo nível estatutístico de Cataguases) e meu saco roxo (faixa azul, cinta encarnada), devidamente provido de aparelhagem funcionando a todo o vapor até o cu da aurora”. (Há ao lado de sua casa no Bairro da Granjaria uma vizinha de nome Aurora. Toda vez que Fusco solta esse “cu da Aurora” ele grita na sequência: “não é o da senhora, não, Dona Aurora!”).
Hoje com 66 anos, novamente sediado em Cataguases (desde 1968), após longo périplo oropa-frança-bahia (leia-se Rio-ParisFriburgo), Fusco continua uma obra & biografia (qual a mais rica?) no mínimo instigantes. Doze livros publicados no Brasil (além de outros na França, Itália, peça encenada nos EUA), destacando-se, além dos citados, Carta à Noiva, O Livro de João, Amiel, O Viúvo, O Anel de Saturno e uma série de poemas e ensaios, entre eles Introdução à Experiência Estética. A Mondadori, inclusive, já está preparando a edição de Dia do Juízo, ainda sem título
italiano. Mas, como ele mesmo costuma dizer, “não adulo a dona Glorinha” (leia-se badalações & cercanias). Talvez por isso, por seu isolamento consciente, por sua aversão ao meio literário, estejam inéditos os livros que tem na gaveta desde 1961: um tratado de filosofia, dois novos romances (Vacachuvamor e S.A. – solitários anônimos) e um livro de escatológicos poemas sobre a Lapa, ainda sem título, praticamente impublicáveis. Mas que O PASQUIM, naquele tradicional “furo de reportagem” (“velha chantagem brasileira”, como diria o próprio Fusco) oferece de bandeja para o regalo de seu atônito e indistinto público. (Nota: Vinte anos após esta entrevista, foi lançada nova edição de O Agressor, pela Editora Francisco Alves, O mesmo romance foi também republicado no ano 2000, pela Bluhum. Em 2003, a Ateliê Editorial lança um romance inédito do escritor: “A.S.A. – associação dos solitários anônimos”. Existem ainda outros inéditos, como “Vacachuvamor, romance; “Um jaburu na Tour Eiffel”, livro de viagem. E “Creme de Pérolas”, poemas eróticos, de onde foi extraído o poema “Edital de Demissão e Ponto”, que datilografei ditado pelo próprio Fusco em seu escritório de Cataguases – os originais do poema datilografado, com correções à mão do próprio escritor, estão comigo ainda hoje – e que vai publicado ao final da série de crônicas sobre a entrevista. O Pasquim acabou não publicando o poema, por medo da censura dos anos de chumbo: “se a gente publica vai dar um bode dos diabos”, me disse o Ziraldo).
italiano. Mas, como ele mesmo costuma dizer, “não adulo a dona Glorinha” (leia-se badalações & cercanias). Talvez por isso, por seu isolamento consciente, por sua aversão ao meio literário, estejam inéditos os livros que tem na gaveta desde 1961: um tratado de filosofia, dois novos romances (Vacachuvamor e S.A. – solitários anônimos) e um livro de escatológicos poemas sobre a Lapa, ainda sem título, praticamente impublicáveis. Mas que O PASQUIM, naquele tradicional “furo de reportagem” (“velha chantagem brasileira”, como diria o próprio Fusco) oferece de bandeja para o regalo de seu atônito e indistinto público. (Nota: Vinte anos após esta entrevista, foi lançada nova edição de O Agressor, pela Editora Francisco Alves, O mesmo romance foi também republicado no ano 2000, pela Bluhum. Em 2003, a Ateliê Editorial lança um romance inédito do escritor: “A.S.A. – associação dos solitários anônimos”. Existem ainda outros inéditos, como “Vacachuvamor, romance; “Um jaburu na Tour Eiffel”, livro de viagem. E “Creme de Pérolas”, poemas eróticos, de onde foi extraído o poema “Edital de Demissão e Ponto”, que datilografei ditado pelo próprio Fusco em seu escritório de Cataguases – os originais do poema datilografado, com correções à mão do próprio escritor, estão comigo ainda hoje – e que vai publicado ao final da série de crônicas sobre a entrevista. O Pasquim acabou não publicando o poema, por medo da censura dos anos de chumbo: “se a gente publica vai dar um bode dos diabos”, me disse o Ziraldo).
De sua casa na Granjaria, bairro de Cataguases (aliás, simpaticíssima, projetada por ele mesmo: ”sou o único arquiteto da Granjaria que projeta romances, no fundo um somatório de argamassa, humilhações, suor e tijolos rememorizados”), ao hospital da cidade (onde passa algumas temporadas no inferno, tomando soro & uísque contrabandeado através dos mais incríveis estratagemas com as enfermeiras), Fusco continua vivo e ferino, impressionantemente atualizado com o mundo que lhe chega diariamente pelo telstar ou através de livros, jornais e revistas mandados diretamente de Paris pela família de sua mulher atual: Annie, a francesa. Na verdade, o homem está sempre atento, vivo, funcionando a todo vapor. Guarda ainda resquícios dos velhos tempos de jornal, o hábito de trabalhar e beber durante toda a noite, rompendo “o cu da aurora” e atravessando de pé toda a manhã. Seu sono é parco e religioso: exatamente de meio-dia às quatro en punto da tarde. É raro o dia em que já não levanta com a dose matutina do litro de uísque que o auxilia a exorcizar os demônios do cotidiano.
A noite na biblioteca é consumida no silêncio da leitura, entremeada com o leve ruído das sucessivas doses de uísque (que bebe a caubói) ou com o barulho da pena rombuda da velha Parker 51, anotando trechos ou gravando situações que irão compor um próximo romance. Só escreve à mão: “assim me sinto mais ligado ao que estou escrevendo. Além de péssimo datilógrafo, a máquina me distancia das coisas, da densidade dos corpos”. “Nada vale nada com algemas”, diz no poema impublicável que nos mandou. Mas de qualquer forma, em Cataguases – no início e origem de tudo, na volta ao útero, trazendo da França Annie, a mulher que entre todas e tantas ficou para sempre (para sempre mesmo: devido a problemas com a separação de uma de suas ex-mulheres, Fusco talvez seja recorde mundial de casamento com a mesma mulher: duas vezes em Paris, duas no Uruguai e a última em Cataguases, onde funcionou como padrinho o próprio François, filho do casal) – apesar das algemas do Doutor Fróes (como ele gosta de dizer, brincando), Fusco consegue se equilibrar. Nós é que titubeamos un peu. Afinal, o homem é incrível: doses sucessivas de uísque, pernod, cinzano com gin (é uma mistura dos diabos!), campari & etc, somadas a um vermute “que vai muito bem”. Tudo isso entremeado com scargots, patê truffée & outros babados, quase sempre à francesa, preparados pela Annie ou pelo próprio, que também manda seu recado nas culinárias da vida.
Mas não houve jeito de convencer o homem ao uso do gravador (“deixa pra lá, sô, tenho pavor desse troço”). A entrevista que vai pela aí é um somatório (ou diminuitório) do que a gente conseguiu filtrar desses contatos dos últimos anos. Acrescida, em parte, do que honestamente roubamos das cartas que Fusco mandou para a escritora e excelente poeta Laís Corrêa de Araújo, cujos fragmentos foram publicados no Suplemento Literário do Minas Gerais, de 25.11.72, à revelia do escritor (perdão, Laís, mas não conseguimos te achar durante tuas férias no Espírito Santo. Santo?). Na verdade, a matéria é uma collage de respostas por escrito a perguntas que formulamos, trechos de livros, frases esparsas, sueltos dentro de noites intensamente etílicas. De qualquer forma, Rosário Fusco fica devendo ao PASQUIM uma entrevista comme il faut, com a patota toda, gravador e os cambaus. Literatura à parte, em termos de folclore & criatividade ele é o Oswald de Andrade redivivo. Agora, não publicarem seus livros é puramente safarnagem dos editores brasileiros.
Ronaldo Werneck & Joaquim Branco
ABERTURA
DA ENTREVISTA AO PASQUIM Nº 351 (19 A 25 MARÇO DE 1976)
Continua
na próxima semana
Um comentário:
Amig9o Roneck,
como sempre, são "deliciosas" as suas narrativas! Parabéns!
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