(Los Angeles, 01.06.26 – 04.08.62)
Mesmo agora, exatos 60 anos de sua morte, minha primeira recordação é de um intenso frescor. Pra mim, Marilyn Monroe é frescor. Ao lembrar-me dela, o ar refrigerado vem refrescar os verões de minha mente. Não propriamente aquele verão intenso da Nova York de The Seven Years Itch/ O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder, daquela cena famosa do vento vindo do metrô e levantando seu vestido para profunda irritação do então marido, o astro do beisebol Joe DiMaggio, que assistia às filmagens.
Mas sim de Bus Stop, o filme realizado em 1956 por Joshua Logan. Recordo que – ainda adolescente no Rio –, após o tradicional sorvete no Cirandinha, passava pela calçada do Cine Metro Copacabana e recebia aquela lufada de refrigério vinda lá de dentro. No alto, em letras garrafais, “Marilyn Monroe em Nunca Fui Santa”, filme proibido para os meus 13 anos. Sim, MM pra mim era fruto proibido – e também refrigério, intenso ar refrigerado, um frescor de nunca mais.
“Meu querido Ronaldo, com a Marilyn você terá tudo o que um homem precisa, sem os problemas que normalmente as mulheres te trazem”. Quem escrevia assim – na bem-humorada dedicatória do livro que me presenteou no meu aniversário em 2007 – era minha grande amiga, a cantora Neti Szpilman. Não sei ao certo o que a Neti queria dizer com aqueles “problemas que as mulheres te trazem”. Na época, eu estava mais uma vez “momentaneamente descasado” e, quem sabe?, talvez ela pensasse no samba de Martinho, aquele do “Já tive mulheres de todas as cores/ De várias idades, de muitos amores/ Com umas até certo tempo fiquei/ Pra outras apenas um pouco me dei”.
O Mito Marilyn
Mulheres, pois é. Deixa pra lá. Fico mesmo com a Marilyn, fascinado que sou. O livro que ganhei da Neti – “Marilyn Monroe/ O Mito” – é na verdade o catálogo de uma exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio em 2007. Uma caprichada edição com capa dura (textos traduzidos por minha amiga, a saudosa poeta Olga Savary) da última sessão de fotos de MM realizada pelo fotojornalista Bert Stern. Fotografias feitas numa suíte de hotel em Los Angeles, em julho de 1962, poucas semanas antes de sua morte, em 4 de agosto daquele ano – com uma sensualíssima Marilyn exibindo aos quatro ventos a cicatriz da cirurgia de vesícula feita no ano anterior.
Escreve Stern: “Toca o telefone. Dou um salto. A voz do outro lado anuncia: ´Miss Monroe está aqui´. Já? Não consigo acreditar. São sete horas. Ela só está cinco horas atrasada. Eu imaginava... temia... muita coisa me passava pela cabeça. Mas não. Aquela moça existe de verdade. – Bom dia. Eu sou Bert Stern – digo estendendo-lhe a mão. Ela tem os olhos azul-esverdeados. Esqueço minha mulher, meu bebê, minha vida apaixonante em Nova York. Nada mais existe naquele instante. Estou apaixonado. – Você é uma beleza. Ela me olha, abre a boca e diz: – É mesmo? Como você é gentil”.
“O que você quer?” – alguém perguntou certa vez a MM. “Só quero ser maravilhosa” – respondeu como quem não quer nada, a não ser o que ela realmente era. Marilyn é minha companheira da vida inteira, digo eu agora e sempre. Musa de meio mundo é bem verdade. Mas principalmente minha, desde a adolescência de seus/meus filmes. Desde The Asphalt Jungle/ O Segredo das Joias, de John Huston (1949), o primeiro filme dela que vi ainda em Cataguases, até seu último lançamento, The Misfits/ Os Desajustados, do mesmo Huston (1961). Como todo mundo, fiquei chocado com sua morte naquele agosto de 1962.
Marilyn no Muro
Pois foi justo em agosto de 1962 que O Muro – o primeiro jornalzinho literário e devidamente mimeografado que Joaquim Branco e eu editávamos aqui em Cataguases – estampou em sua capa, em cima da notícia, um texto do poeta Aquiles Branco sobre a morte de Marilyn, com direito a um bico de pena do futuro cineasta Paulo Bastos Martins. Transcrevo:
“O deitar na cama branca da noite branca apavorava qualquer um. Gesto involuntário das pessoas. Foi quando um esvoaçar, longo e palpitante, cortou a veneziana lado a lado. O aparecimento de coisas já não provocaria conclusões nem maiores nem menores de tamanho. O azul da fumaça aparecia, desligado, só. A solidão a havia matado, o corpo já ninguém importava.
“Aconteceu um dia longo, quem afirma?, dizendo ao homem que precisava dele, muito, e ele achou que era brincadeira; a angústia de atravessar mais uma etapa, por mais curta que fosse, tão vazia como se apresentavam suas vestes, o tubo agiu. O colorido cor-de-rosa de uma futura camisola provocante morreu, morreu porque sentiu que a dona não poderia usá-la, nunca mais. A alma se bipartiu por si mesma e vagou”.
Aquiles Branco, in O Muro, agosto de 1962.
O cantar da eternidade
“Durante muitos anos houve rumores a respeito de Marilyn ter telefonado à Casa Branca nessa sua última noite” – escreve Norman Mailer em sua biografia da atriz. “Se meditarmos o suficiente sobre a tragédia de um tal fim em vertigem e frustação, não poderemos deixar de acreditar que ela partiu com uma maldição e que ainda vive perto de nós – a primeira dama dos fantasmas americanos”.
“Em todo esse debate sobre os pormenores de sua morte – continua Mailer –, esquecemos a dor de sua perda. Marilyn desapareceu. Abandonou-nos, deslizando para além da linha do horizonte do último comprimido. Nenhuma força exterior, nenhuma dor, provou ser mais forte, afinal, que seu poder de pesar sobre si mesma. Se tentaram estrangulá-la uma vez e, depois, sendo mais tarde amarrada pelo estúdio e asfixiada pelas iras do casamento, a verdade é que conseguiu reagir com total controle sobre sua vida.
“Isso talvez signifique que decidiu ter também um controle sobre sua morte e que, atraída pela eternidade que escutou cantar nos seus ouvidos desde a infância, deu o salto para a morte, abandonando a dor de uma alma sem vida pela esperança de vida em outra. Despediu-se do mundo que conquistara, mas não podia usar. Nunca saberemos se foi em tais termos que ela partiu. Pode ser que tenha cambaleado, passando a fronteira sem o saber, lamentando-se no último recanto de seu coração, sem que uma só voz conhecida lhe pudesse acudir. Ela veio a nós cercada pelas dúvidas e abandonou-nos envolta em mistério.
O Mito Marilyn
Marilyn, sim, é o Mito. Não esse planaltino “ser cavernoso” (segundo escreveu recentemente a sempre certeira jornalista Dorrit Harazim) que nos atormenta a cada dia com suas inacreditáveis diatribes. Fora o livro com que a Neti me presenteou, são muitas as publicações sobre MM que tenho aqui em casa.
Entre esses livros, o de Norman Mailer (Marilyn – A biography) é claro, em sua primeira edição, lançada em 1973. Também a alentada biografia de Donald Spoto, com título semelhante ao de Mailer, Marilyn Monroe – A biography, lançada vinte anos depois, em 1993. E vários outros, a exemplo do belíssimo Marilyn - March 1955, com fotos realizadas por Ed Feingersh num hotel de Nova York logo após a separação de Joe DiMaggio. O Monroe, primorosa edição em couchê lançada pela Taschen em 2006. E até o Marilyn Monroe – A Postcard Book, de 1989, da Running Press Books, da Philadelphia, que traz na contracapa uma frase enigmática de MM: "I´m always runningin to people unconscious”– qualquer coisa como, numa apressada (ou corrida”) tradução: “Estou sempre correndo rumo às pessoas sem consciência".
Então, para mim Marilyn Monroe é uma obsession – como quem ousa: com bilíngue rima e coisa & lousa. Uma enigmática obsessão, como no noturno poema que ela escreveu (sim, MM também escrevia poemas e era leitora voraz, até mesmo, dizem, de James Joyce), dedicado a seu amigo, o poeta Norman Rosten (tradução de Olga Savary): “Noite da noite – relaxante/ Trevas – refrescantes – o ar/ Parece diferente – a noite não tem/ Nem olhar nem nada – Silêncio/ Exceto para a própria noite”.
E observo agora que a palavra “refrescante” aparece aí no poema, como se a confirmar a impressão que sempre tive de MM: “refresco para os olhos”, em batida metáfora, que também me dou ao direito dessas derrapadas. Na verdade, Marilyn concentrou – com ou sem poemas – o que torna excitantes as mulheres mais excitantes (“refrescantes?”) do mundo.
MARILYN/MAILER
“Assim, pensamos em Marilyn, que era o caso de amor que todos os homens tinham com a América. Marilyn Monroe, que era loira e bela, que tinha uma voz doce, toda ternura, e que tinha, também, toda a inocência de todos os mais inocentes jardins americanos. Era o nosso anjo, o carinhoso anjo do sexo – e o açúcar do sexo vinha dela como a ressonância do mais puro acorde de violino”.
Era assim que o consagrado romancista norte-americano Norman Mailer abria a biografia que escreveu sobre Marilyn. A seguir, reproduzo alguns highligths do livro de Mailer. Já no capítulo inicial, o romancista registrava:
“Sua morte foi coberta de incertezas, da mesma forma como a de Hemingway explodiu em horror; e como as mortes e os desastres espirituais dos anos sessenta assaltaram, um a um, os reis e as rainhas da América; como Jack Kennedy foi morto; e Bobby, e Martin Luther King; como Jackie Kennedy se casou com Aristóteles Onassis; e Teddy Kennedy caiu da ponte em Chappaquiddick.
“De modo que a década começou com Hemingway como o monarca das artes americanas terminou com Andy Warhol como seu regente e, enfim, o fantasma da morte de Marilyn deu uma aura de lavanda aos dramáticos desígnios americanos dos anos sessenta, que parecem, em retrospecto, nada terem feito além de levarem Richard Nixon ao limiar do poder imperial”.
Como se cada homem fosse o máximo
Mailer escreve que esperava um convite de Arthur Miller, então casado com Marilyn, para visitá-los, convite que não veio – e se confessa “inexperiente para reconhecer o fundamento da arte de Marilyn”:
“O dramaturgo (Miller) e o romancista (o próprio Mailer) nunca se haviam aproximado muito um do outro. E o romancista também não podia, na verdade, condenar o dramaturgo por evitar o inevitável drama. Sua ambição secreta, afinal, fora de roubar Marilyn; em toda a sua vaidade, pensava que não havia outro homem tão capaz de trazer à superfície tudo o que de melhor havia nela quanto ele próprio, uma vaidade que outros cinquenta milhões de homens também tinham. O romancista ainda era demasiado inexperiente para reconhecer que o fundamento da arte de Marilyn talvez fosse falar a cada homem como se este fosse o máximo da existência masculina que havia à sua disposição”.
“O sentido fundamental da loucura americana, essa violência que vive como um zumbido eletrônico para além do silêncio da mais adormecida tarde de domingo, está sendo incubada nas loucas e límpidas noites subtropicais de Hollywood: a visão da fronteira americana entrou num projetor, se transformou em bárbaros de três metros de altura nas telas dos cinemas”.
“Ela era uma boneca estupida e sexy” – dirá alguma voz de amargura ultrajada –, “uma gata tonta com faro e infância miseráveis, com muita sorte e muito azar, que conseguiu levar longe um pequeno talento”. Na verdade, porém, essas vozes de desdém nada conseguiram explicar sobre ela. Há um milhão de bonecas estúpidas e tontas, com sorte e beleza, mas o fato é que nenhuma chegou perto de Monroe. Não, não chegou. Para explicar Marilyn totalmente, conservemos aquela noção cármica como uma ideia a mais, a defender em nosso espírito, enquanto tentamos seguir os intrincados caminhos de sua vida”.
Com Brando na cama:
picos & planaltos
“A sexualidade de Marilyn permanece um enigma” – diz Mailer. “Já se tornou moda agora (pois a lenda, desde a sua morte, foi formada assim), vê-la como não se interessando tanto pelo sexo quanto a antiga publicidade declarava. O testemunho daqueles que fizeram o amor com ela, mais tarde, sugere que Marilyn era capaz de dormir com o sutiã (por medo de que seus seios decaíssem) do que se abandonar num leito orgíaco, havendo também muitas histórias sobre sua inocência a respeito do sexo.
"Certa vez, depois de ter dormido com Marlon Brando, ela disse a uma amiga na manhã seguinte: “Não sei se o faço da maneira certa”. Mas, afinal, qual de nós sabe? Qualquer certeza a respeito do sexo é seguida pelo reconhecimento de que se trata de um planalto e de que existem picos acima dele. Mais cedo ou mais tarde, todos nós revelamos nossa inocência sobre o sexo com um comentário ingênuo.
“Após o casamento com Joe DiMaggio, Marilyn tornou-se a principal figura feminina do grande filme americano que é apresentado em seriado cotidianamente nos jornais do mundo. Só depois do funeral de Jack Kennedy e da ascensão de Jackie Kennedy é que uma mulher voltaria a ocupar um lugar de destaque na vida americana.
“Ela tinha um talento, embora não uma identidade, e, se alguma lógica havia na sua vida, essa lógica dizia-lhe que cortasse as raízes – Comece Tudo de Novo! – e seguisse seu talento até New York, onde iria fundar sua própria companhia cinematográfica, a Marilyn Monroe Productions. Numa artista, isso é o exercício da santidade, pois o que existe de mais sagrado é seguir a melhor coisa que se descobre na própria vida, custe o que custar, e não temos outra forma de compreender Marilyn, se não admitirmos que a sua mais profunda experiência na vida era o ato de representar um extraordinário papel.
A morte entre os
mistérios
A morte marcou presença naquele 4 de agosto de 1962, em sua casa de estilo rural em Helena Drive, Los Angeles, aquela casa meio-mobiliada, pobre em armários e rica em discos, misturados pelos cantos com pilhas de revistas e pacotes de livro, toda a coleção de sua vida em prateleiras, jogada pelo chão.
Termino este meu texto com as palavras de Norman Mailer ao fechar o seu livro, registrando o sofrimento de Joe DiMaggio no funeral de Marilyn:
“Se todo ser humano é um mistério, então, talvez possamos obter o nosso único vislumbre da verdade nas relações que encontramos entre os mistérios. Façamos, assim, o nosso cálculo do valor de Marilyn pelo sofrimento estampado no rosto de Joe DiMaggio no dia daquele terrível funeral em Westwood, a oeste de Hollywood.”
04 de agosto de 2022
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