Coisas de cinema. De salas de cinema. Leio dias desses num jornal de grande circulação que numa cidade do Estado do Rio (qual? Qual? Ó memória que “se escapa-me” – epa, epa, que elocução mais “temerária”) está para acontecer o impensável: uma das igrejas da localidade será fechada e, em seu lugar, aberto o novo Cine Humberto Mauro. Como diz minha filha Ulla, isso é uma coisa do rol das “ina”/creditáveis. Aqui na terra dele, do próprio Humberto, que só nasceu nos arredores de Volta Grande por acaso – pois seu lugar na história de nosso cinema ficou reconhecido mesmo como Cataguases, onde rodou seus primeiros e seminais filmes –, pois é, aqui na terra dele, o Cine Edgard está como está, nem cá nem lá.
Há coisa de sete anos,
fizemos um pequeno filme, “Regard Edgar”, que se encontra disponível no Youtube(https://www.youtube.com/watch?v=1QHcWQNTm2o)
onde, já naquela época, lutávamos pela preservação e manutenção do cinema como
tal. Isso posto, ou por supuesto, lembrei-me
então de uma crônica que está em meu livro Há Controvérsias 2. Como o livro
está esgotadíssimo, “republicá-la-ei” (epa, epa!) aqui, mesmo porque a multidão
de meus jovens e ávidos leitores (dois ou três, é bem verdade) não deve ter
conhecimento da bendita cuja.
Pois é, coisas de cinema. De
salas de cinema. O Edgard Cine-Teatro já foi Cine-Cataguases e era chamado de
Cinema Novo para não confundir com o velho Cine Machado lá na diagonal da praça
Rui Barbosa. Quer dizer, o cinema novo brasileiro, é claro, começou em
Cataguases. E onde mais, se foi ali que o jovem Humberto Mauro, o “pai de nosso
cinema”, viu seus primeiros filmes na década de 1920, na charmosa sala do Cine-Theatro
Recreio (ou Cinema Recreio Cataguazense)?
Coisas de cinema – e nada
mais justo que agora eu saia numa campanha ainda solitária, mas que espero logo
“acompanhadíssima pelos cinéfilos cataguasenses”, quer dizer, por todos os
cataguasenses, que somos todos cinéfilos inveterados, né mesmo? Enfim, uma
campanha para que se denomine “Sala Humberto Mauro” à sala de projeção do
“Edgard”. Como é que Cataguases ainda
não tem uma “Sala Humberto Mauro”, se até a capital, imaginem, até mesmo BH já
possui a sua, como a do cinema do Palácio das Artes, entre outras?
Vamos em frente. Melhor,
para trás. Para as salas de cinema da Cataguases dos anos 50, as que eu
conheci. Havia um pequeno cinema ali na pracinha da antiga Fábrica Irmãos
Peixoto, não me lembro bem o nome, acho que o sala era do pessoal do Hotel
Pires. Os que eu frequentava mais eram o cinema do Nelo e o Barracão, onde os
Cunhas projetavam as fitas enquanto construíam o prédio do novo cinema em
frente, ali no terreno baldio onde seria o prédio de A Nacional. Antes ainda, o
Cine-Teatro Machado, ou nome parecido, o cinema do Seu Nelo, o nosso
“Nelascópio”, onde agora é o Centro Cultural Humberto Mauro.
Nos 1950, havia no
Nelascópio um corredor, hoje Galeria Zequinha Mauro. No meio dele ficava a
bilheteria do cinema. Nelo Machado, o próprio, fazia às vezes de bilheteiro,
entre outras coisas. Costumava também
“operar” na cabine de projeção: quando o filme era muito longo, o Seu Nelo,
“pulava” um ou dois rolos para ir logo dormir, pois acordava cedo pra “conferir
o leite de sua fazenda”. Ninguém nunca reclamou: nos anos 1960, o “Nelo” às
vezes passava fitas de “arte”, quase sempre europeias. E sabe como é, “cinema
europeu é assim mesmo, ninguém entende direito, coisas da vanguarda”.
Pois então, anos 1950, seu
Nelo-bilheteiro. Eu segui ali todo o seriado “Perigos de Nyoka”, minha heroína
de peripécias e escaramuças contra beduínos, tuaregues e vilões de vários
quilates. Dia do último capítulo, era o primeiro da fila. Eu e minha moedinha
para compra do ingresso. À minha frente, o seu Nelo, aguardando para abrir.
Atrás, a multidão de meninos aguardando pra ver como Nyoka iria se safar (o
penúltimo capítulo terminara com ela caindo num poço-elevador, cheio de lanças
de aço que subiam ameaçadoras contra o seu corpo).
Eu brincava com minha
moedinha jogando-a pro alto. Não deu outra: ela escapou de minhas mãos e rolou
pra trás do Seu Nelo. Que não se fez de rogado: não deixou de forma alguma que
eu a pegasse, mesmo comigo dizendo (e todos os meninos confirmando): “olha lá,
Seu Nelo, tá ali, atrás do senhor”. Até hoje não sei o que aconteceu com Nyoka.
Muitos anos depois, acabei escrevendo o roteiro de um filme (é claro,
chamava-se “Perigos de Nyoka”) onde procurava desvendar o que teria acontecido
com minha “ídala”. Coisas de cinema, de incidentes que fazem filmes. Mesmo os
que não foram feitos.
Agora de volta ao Edgard, o
antigo Cine-Theatro Recreio, o Cine-Cataguases dos anos 1950 e de tantas
histórias. O cinema e o Seu Edgard. Ah, o Seu Edgard! Sua casa na Rua Dr. Sobral
era vizinha da casa do papai. Tarde de sábado, eu fumando na janela, Seu Edgard
com seu cano de borracha regando a calçada. Chega o Coelho, mestre-de-obras (e
“pau-para-todas”) da construção do novo cinema. Chega e vai logo dizendo: “Seu
Edgard, hoje é sábado, tem baile no Rancho Alegre, o senhor pode me adiantar
cinco mil réis?”. Seu Edgard, reconhecida e providencialmente surdo, continua a
olhar o molhado infinito da calçada. Nem aí pro Coelho. Afinal, surdo é surdo.
Coelho insiste: “Seu Edgard, hoje é sábado. Baile no Rancho Alegre. Pode me
arrumar dez mil réis”. Vira-se pra ele o Seu Edgard, como se o visse pela
primeira vez: “Uai, era cinco e agora é dez?”. Trago e tusso, sufocado pelo
riso.
Esse o Edgard, aquele o
Nelo. Cinemas que se foram. Nada mais justo agora que o Edgar passe a se chamar
Humberto Mauro. “Ué, era Edgard, agora é Mauro”? Quer dizer, a sala de cinema.
Que poderia ser inaugurada, inclusive com um dos filmes de Mauro recentemente
restaurados pelo CTAv/Funarte. Acho que não há controvérsias, só faltam os
devidos “trâmites legais”. Ou coisa (a)parecida.
Cataguases/ 2001 – Do livro “Há
Controvérsias 2”
Um comentário:
Puxa vida! Seu Nelo era muito ruim, fazer isso com uma criança ávida pra saber o desfecho de sua heroína? Deus o tenha.
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