A morena foi embora
Morto recentemente aos 86 anos, o
poeta Ferreira Gullar (São Luís do Maranhão, 10.09.1930; Rio de Janeiro,
04.12.2016) gostava de dizer que muitas pessoas se enganavam ao vê-lo na
janela. Nem sempre ele estava olhando a rua, a paisagem – mas sim trabalhando em
algum poema. Gostava também de mencionar o episódio de um economista que
conheceu durante o seu exílio no Chile dos anos 1970. O sujeito namorava linda
morena, que sempre trazia a tiracolo, e seu assunto era só economia, economia,
economia. “Um porre”, dizia o poeta. Até que um dia a morena deixou o gajo e
ele apareceu meio transtornado e só falava poesia, poesia, poesia. Para o “espanto”
de Gullar, ele sabia de cor poemas de Eliot, de Shakespeare, de Whitman e
outros, e outros.
Foi quando Gullar se deu conta
(antes dele ter descoberto a palavra “espanto” como espécie de motor de seus
poemas) de que “a poesia vem quando a morena vai embora”. O samba de Ataulfo
Alves parece ter acertado na mosca para autenticar o “surgimento” da poesia
pelo poeta: Pois é/ falaram tanto/ que
dessa vez/ a morena foi embora./ Disseram que ela era a maioral/ e eu é que não
soube aproveitar./ Endeusaram a morena tanto tanto/ que ela resolveu me
abandonar. Não sei dizer quantas morenas foram embora da vida do poeta, se
é que foram. O que sei é que a poesia às vezes demorava, mas quando vinha era
quase sempre de alta qualidade.
Encontrei-me com Gullar poucas vezes
nessa vida, quase sempre em seu apartamento de Copacabana, na Rua Duvivier.
Lembro-me de uma delas, meados dos anos 1990, quando lá estive ao lado dos
poetas Francisco Marcelo Cabral e Suzana Vargas. Gullar iria se apresentar dias
depois no CCBB; melhor, apresentar-se com seus poemas-objeto num evento
realizado por Suzana. Levamos uma câmera, a do próprio Francisco/Chico Cabral,
e um cameraman improvisado, no caso
eu mesmo. O poeta dispôs seus poemas na grande mesa da sala e começou a
discorrer sobre eles, enquanto eu os enquadrava com a câmera quase em close,
passeando em lento travelling sobre
sua obra. A coisa ia caminhando bem, até que foquei um poema estranhíssimo, escuro,
mais que escuro, preto; mais que preto, pretíssimo e em movimento, com num
súbito fade-out.
“Essa é boa – cheguei a pensar – um
poema em movimento, um Malevich às avessas: não white on white, mas black on
black. Um espanto: sem dúvida a poesia vem do espanto, como diz Gullar”.
Antes que me espantasse de vez resolvo tirar o olho do visor e me deparo com o
gato de estimação de Gullar passeando preguiçoso, manemolente, sobre os poemas.
Brinco com Gullar: “ele é seu melhor poema, pelo menos quem parece
compreendê-los melhor”.
O poeta mineiro Francisco Marcelo
Cabral, meu saudoso amigo Chiquinho Cabral, me contou certa vez que costumava
frequentar nos anos 1950 o apartamento que o maranhense Ferreira Gullar dividia
no Rio, na rua do Catete, com o jornalista paraense Oliveira Bastos e com o
cronista capixaba Carlinhos de Oliveira. Amigo de Oliveira Bastos – que foi secretário particular
de Oswald de Andrade, além de ter participado do famoso Suplemento Dominical do
JB e também ser quem “aplicou” a poesia de Sousândrade nos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos –, Chico Cabral assistia e quase sempre também participava das
longas discussões de “alta cultura” do jornalista com o poeta. Discussões só
interrompidas para dar passagem ao barulho infernal de algum bonde que zunia em
seus trilhos ali embaixo da janela – e que eram retomadas logo depois, no mesmo
e altíssimo tom. A um canto, Carlinhos Oliveira, recém-chegado ao Rio, batia
com as mãos na cabeça clamando aos céus: “Gente, como sou burro! Não estou
entendendo nada!”.
Quando se mudou do apartamento,
Gullar escreveu o “Poema de adeus ao falado 56”, dedicado a Oliveira Bastos e
J.C. Oliveira, com passagens como: “Sexta-feira parto/ até outra vez/ Fica de
nós, o quarto/ Fica de mim, vocês// (...)// Homens de dia dúplice/ temos um sol
verbal/ além desse sol cúmplice/ da guarda-pessoal// Sol que se acende, moço,/
da boca de quem lê/ fogo-fátuo do osso/ do velho Mallarmé// (...)// Meu anjo da
guarda não/ levo; livro-me enfim/ desse que como um cão/ me protege de mim.//
Deixo-o para a casa/ varrer e defender,/ e sumir sob a asa/ o que quer se
perder:// o telegrama, o prato,/ o pente, a citação/ erudita e o vão/ vocábulo
exato”.
Avenida Copacabana, 2001.
Um meio-dia de sol. Um poeta vem do Leme. O outro pro Leme vai. Um não viu o
outro, nem o outro o um. Tamanho o calor e o caminhar, que só depois me dou
conta da figura de Gullar. Vem do espanto a poesia: Saberá que, no centro/ de seu corpo, um grito/ se elabora?/.../ Grito,
fruto obscuro/ e extremo dessa árvore: galo/ Mas que, fora dele/ é mero
complemento de auroras.
O
Poeta na Praça
para
Ferreira Gullar
findo o seu cantar
manhã já no meio
o
galo-gullar
não cisca
antes
levanta a crista
e logo ei-lo
esguio
elegante
pela praça do lido
ereto e no prumo
rumo-leme
passa
apressado o poeta
–
ZÁZ!
esbaforido
o
poema bufa atrás
– a poesia freme
Ronaldo Werneck
Rio,
2001
Continua na próxima
semana
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