14 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 2

A morena foi embora 



Morto recentemente aos 86 anos, o poeta Ferreira Gullar (São Luís do Maranhão, 10.09.1930; Rio de Janeiro, 04.12.2016) gostava de dizer que muitas pessoas se enganavam ao vê-lo na janela. Nem sempre ele estava olhando a rua, a paisagem – mas sim trabalhando em algum poema. Gostava também de mencionar o episódio de um economista que conheceu durante o seu exílio no Chile dos anos 1970. O sujeito namorava linda morena, que sempre trazia a tiracolo, e seu assunto era só economia, economia, economia. “Um porre”, dizia o poeta. Até que um dia a morena deixou o gajo e ele apareceu meio transtornado e só falava poesia, poesia, poesia. Para o “espanto” de Gullar, ele sabia de cor poemas de Eliot, de Shakespeare, de Whitman e outros, e outros.
Foi quando Gullar se deu conta (antes dele ter descoberto a palavra “espanto” como espécie de motor de seus poemas) de que “a poesia vem quando a morena vai embora”. O samba de Ataulfo Alves parece ter acertado na mosca para autenticar o “surgimento” da poesia pelo poeta: Pois é/ falaram tanto/ que dessa vez/ a morena foi embora./ Disseram que ela era a maioral/ e eu é que não soube aproveitar./ Endeusaram a morena tanto tanto/ que ela resolveu me abandonar. Não sei dizer quantas morenas foram embora da vida do poeta, se é que foram. O que sei é que a poesia às vezes demorava, mas quando vinha era quase sempre de alta qualidade.
Encontrei-me com Gullar poucas vezes nessa vida, quase sempre em seu apartamento de Copacabana, na Rua Duvivier. Lembro-me de uma delas, meados dos anos 1990, quando lá estive ao lado dos poetas Francisco Marcelo Cabral e Suzana Vargas. Gullar iria se apresentar dias depois no CCBB; melhor, apresentar-se com seus poemas-objeto num evento realizado por Suzana. Levamos uma câmera, a do próprio Francisco/Chico Cabral, e um cameraman improvisado, no caso eu mesmo. O poeta dispôs seus poemas na grande mesa da sala e começou a discorrer sobre eles, enquanto eu os enquadrava com a câmera quase em close, passeando em lento travelling sobre sua obra. A coisa ia caminhando bem, até que foquei um poema estranhíssimo, escuro, mais que escuro, preto; mais que preto, pretíssimo e em movimento, com num súbito fade-out.


“Essa é boa – cheguei a pensar – um poema em movimento, um Malevich às avessas: não white on white, mas black on black. Um espanto: sem dúvida a poesia vem do espanto, como diz Gullar”. Antes que me espantasse de vez resolvo tirar o olho do visor e me deparo com o gato de estimação de Gullar passeando preguiçoso, manemolente, sobre os poemas. Brinco com Gullar: “ele é seu melhor poema, pelo menos quem parece compreendê-los melhor”.
O poeta mineiro Francisco Marcelo Cabral, meu saudoso amigo Chiquinho Cabral, me contou certa vez que costumava frequentar nos anos 1950 o apartamento que o maranhense Ferreira Gullar dividia no Rio, na rua do Catete, com o jornalista paraense Oliveira Bastos e com o cronista capixaba Carlinhos de Oliveira.  Amigo de Oliveira Bastos – que foi secretário particular de Oswald de Andrade, além de ter participado do famoso Suplemento Dominical do JB e também ser quem “aplicou” a poesia de Sousândrade nos irmãos Augusto e Haroldo de Campos –, Chico Cabral assistia e quase sempre também participava das longas discussões de “alta cultura” do jornalista com o poeta. Discussões só interrompidas para dar passagem ao barulho infernal de algum bonde que zunia em seus trilhos ali embaixo da janela – e que eram retomadas logo depois, no mesmo e altíssimo tom. A um canto, Carlinhos Oliveira, recém-chegado ao Rio, batia com as mãos na cabeça clamando aos céus: “Gente, como sou burro! Não estou entendendo nada!”.
Quando se mudou do apartamento, Gullar escreveu o “Poema de adeus ao falado 56”, dedicado a Oliveira Bastos e J.C. Oliveira, com passagens como: “Sexta-feira parto/ até outra vez/ Fica de nós, o quarto/ Fica de mim, vocês// (...)// Homens de dia dúplice/ temos um sol verbal/ além desse sol cúmplice/ da guarda-pessoal// Sol que se acende, moço,/ da boca de quem lê/ fogo-fátuo do osso/ do velho Mallarmé// (...)// Meu anjo da guarda não/ levo; livro-me enfim/ desse que como um cão/ me protege de mim.// Deixo-o para a casa/ varrer e defender,/ e sumir sob a asa/ o que quer se perder:// o telegrama, o prato,/ o pente, a citação/ erudita e o vão/ vocábulo exato”.
Avenida Copacabana, 2001. Um meio-dia de sol. Um poeta vem do Leme. O outro pro Leme vai. Um não viu o outro, nem o outro o um. Tamanho o calor e o caminhar, que só depois me dou conta da figura de Gullar. Vem do espanto a poesia: Saberá que, no centro/ de seu corpo, um grito/ se elabora?/.../ Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvore: galo/ Mas que, fora dele/ é mero complemento de auroras.


O Poeta na Praça
para Ferreira Gullar



findo o seu cantar
                                                                      manhã já no meio
                                            o galo-gullar
                                                        não cisca
                      antes
                                 levanta a crista
                                                            e logo ei-lo
                                                                        esguio
                                                         elegante
                          pela praça do lido
                                                     ereto e no prumo
rumo-leme
                        passa apressado o poeta
                                                                       – ZÁZ!
                                               esbaforido
                                                                       o poema bufa atrás
                        – a poesia freme



Ronaldo Werneck
Rio, 2001




Continua na próxima semana

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