Por você por mim
“Consumiste
o dia numa sala fechada,/ lidando com papéis e números./ Telefonaste e
escreveste,/ irritações e simpatias surgiram e desapareceram/ no fluir dessas horas.
E caminhas,/ agora, vazio,/ como se nada acontecera.// (...) Tua casa está ali.
A janela/ acesa no terceiro andar. As crianças/ ainda não dormiram./ Terá o
mundo de ser para eles/ este logro? Não será/ teu dever mudá-lo?// Apertas o
botão da cigarra./ Amanhã ainda não será outro dia”. Neste poema, “Volta para casa”, Ferreira
Gullar parece render homenagem a um de seus poetas preferidos, Carlos Drummond
de Andrade. Há nele toda uma dicção dummondiana e, ao mesmo tempo, toda uma
preocupação com as andanças e esquivanças do mundo.
Em
1967, a morte de Ernesto Che Guevara me levou a um poema escrito no calor da
hora (e que sairia na capa do SLD, o Suplemento Literatura Difusão que eu editava com o poeta Joaquim Branco), como se vê por esses fragmentos: “à morte azul-/ piscina/ frouxa colcha
de retalhos/ surge súbita/ a pré-fabricada/ nas oficinas/ da américa latina/ das
oficinas da américa/ das oficinas de sombra e medo/ suja morte em selva vida/ lidalívida
lediviva/ la muerte sem arcanjos/ sujo de selva/ e sangue/ fora do
encantamento/ o corpo-roto/ de selva & sangue/ o mito-morto/em higueras, os
andes vulcânicos/ a morte risco na vida/ meridiano da sorte// de selva e
sangue/ faz-se o mito-morto/ de selva e sangue/ tão junto da verdade/como o
sangue do corpo/o céu avermelha/sol & selva/ el cielo
rojo de higueras/
torna rubra a pálida face/ do herói tombado/y el cielo baja/rojo de espanto/ sobre mi caballero”.
Muitos
outros poetas também escreveram sobre a morte de Guevara. Poucos com a força
das palavras de Gullar, sua emocionante e épica narrativa: “Em Buenos Aires há sol/ nas alamedas
arborizadas, um general maquina um golpe./ Uma família festeja bodas de prata
num trem que se aproxima/ de Montevidéu. À beira da estrada/ muge um boi da
Swift. A Bolsa/ no Rio fecha em alta/ ou baixa./ Inti Peredo, Benigno, Urbano,
Eustáquio, Nato/ castigam o avanço/ dos rangers./ Urbano tomba/ Eustáquio,/ Che
Guevara sustenta/ o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe/ o
joelho, no espanto/ os companheiros voltam/ para apanhá-lo. É tarde. Fogem./ A
noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos”.
“(...) Não está morto,
só ferido./ Num helicóptero ianque/ é levado para Higuera/ onde a morte o
espera/ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu no combate/ mas de mão
assassina/;que o abate./ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu aberto/ mas de
um golpe escondido/ ao nascer do dia// Assim o levam pra morte/ (sujo de terra
e de sangue)/ subjugado no bojo/ de um helicóptero ianque// É o seu último voo/
sobre a América Latina/ sob o fulgor das estrelas/ que nada sabem dos homens//
que nada sabem do sonho,/ da esperança, da alegria,/ da luta surda do homem/
pela flor de cada dia”.
“(...) Súbito vimos ao
mundo/ e nos chamamos Ernesto/ Súbito vimos ao mundo/ e estamos/ na América
Latina/ Mas a vida onde está/ nos perguntamos/Nas tavernas?/ nas eternas/
tardes tardas?/ nas favelas/ onde a história fede a merda?/ no cinema?/ na
fêmea caverna de sonhos/ e de urina?/ ou na ingrata/ faina do poema? /(...) A
vida muda como a cor dos frutos/ lentamente/ e para sempre/ A vida muda como a
flor em fruto/ velozmente/ A vida muda como a água em folhas/ o sonho em luz
elétrica/ a rosa desembrulha do carbono/ o pássaro da boca/ mas/ quando for
tempo/ E é tempo todo tempo/ mas/ não basta um século para fazer a pétala/ que
um só minuto faz/ ou não/ mas/ a vida muda/ a vida muda o morto em multidão”.
Na Gávea, no Vietnam
Em 1968 comecei a namorar uma portuguesinha – “bela, recatada & etc” – que morava na Gávea e estudava na escola mais famosa do bairro, o Colégio Estadual André Maurois. Dirigido por Dona Henriette Amado, o André Maurois adotava o lema Liberdade com Responsabilidade como princípio de educação, tendo por base a prática da escola de Summerhill, na Suíça, a primeira democracia infantil do mundo. Dona Henriette acreditava que Summerhill seria um ponto de partida para uma educação que formasse pessoas seguras, onde houvesse uma verdadeira troca de experiências entre alunos e professores.
Pois foi ali no André Maurois, numa
tarde do segundo semestre de 1968, que vi minha portuguesinha em cena. Mamãe
portuguesa era bravíssima e na época só nos era permitido encontros
vespertinos. Às vezes conseguíamos pegar um cineminha no Leblon, mas
escondidos, mãos tímidas se encontrando no claro/escuro. Anos depois, ela
sairia seminua na Revista Ele/Ela e logo seu nome estaria em letras garrafais
nas fachadas dos cinemas, já que ficara famosa, imagina!, como atriz de
pornochanchadas. Pois é, acontece. Então, para minha surpresa, minha tímida portuguesinha
estava ali em cena, no palco do Colégio, e atuava ao lado de vários colegas na
montagem de “Por Você Por Mim” (logo depois, aqueles rapazes e moças encenariam
a peça também no Teatro Opinião), o belo-terrível poema de Ferreira Gullar
sobre a Guerra do Vietnam, que eu acabara de ler/reler. O poema fora publicado
naquele mesmo ano, e saíra num livro fino, de corte vertical, muito bem
diagramado, com fantásticas fotos solarizadas das batalhas no Sudeste Asiático
– livro que anda há tempos sumido entre os muitos de minha biblioteca.
Minha portuguesinha me dissera somente que ela e seus colegas iriam fazer a apresentação de um poema, e como eu era (era?) “o seu poeta”, deveria gostar. Ao ver que era o poema de que tanto gostava, e muito bem apresentado por aqueles “meninos e meninas” (eu já me considerava um velho de quase 25 anos frente aos 16, 17 anos dos jovens “atores”) me emocionei de vez, como me emocionara várias vezes nas várias leituras e releituras que já fizera do poema de Gullar. O mesmo poema que reencontro agora, nesta edição do “Toda Poesia”, com várias e antigas marcações feitas por mim. E que acabo de gravar em vídeo que se encontra em meu canal do youtube.
Em 1968, com a escalada americana no Sudeste Asiático, o Vietnam nos chegava pelo telstar, escorria sangue pelo videotape e era manchete diária em todo o mundo. Também eu acabara de escrever um poema tendo a guerra como pano de fundo e que sairia em meu primeiro livro, “Selva Selvaggia”. O eu-lírico de meu poema Telstar estava na cama com sua amada enquanto a televisão exibia imagens sangrentas do Vietnam. A seguir, um fragmento de Telstar, que ganharia mais tarde o Prêmio Carlos Drummond de Andrade: “exclamo/ eu te amor/ tecendo/ o B-52/ lenta/ lentamente/ p e n e t r a/ mente/ lenta/ p e n e t r a/ lenta/ lentamente/ brilhuzindo/ no ventre da manhã/ não a clara/ ensolarada/ manhã de todos/ mas a rubra/ ensanguentada/ manhã/ de todos os B-52/ vagina/ entreabrir/ parir/ bull-pups/ púbis/ bulldozers/ parir/ phantoms/ napalm/ thunderchiefs/ lazy-dogs/ parir/ a manhã/ de todos/ os B-52/do vietnam”.
Minha portuguesinha me dissera somente que ela e seus colegas iriam fazer a apresentação de um poema, e como eu era (era?) “o seu poeta”, deveria gostar. Ao ver que era o poema de que tanto gostava, e muito bem apresentado por aqueles “meninos e meninas” (eu já me considerava um velho de quase 25 anos frente aos 16, 17 anos dos jovens “atores”) me emocionei de vez, como me emocionara várias vezes nas várias leituras e releituras que já fizera do poema de Gullar. O mesmo poema que reencontro agora, nesta edição do “Toda Poesia”, com várias e antigas marcações feitas por mim. E que acabo de gravar em vídeo que se encontra em meu canal do youtube.
Em 1968, com a escalada americana no Sudeste Asiático, o Vietnam nos chegava pelo telstar, escorria sangue pelo videotape e era manchete diária em todo o mundo. Também eu acabara de escrever um poema tendo a guerra como pano de fundo e que sairia em meu primeiro livro, “Selva Selvaggia”. O eu-lírico de meu poema Telstar estava na cama com sua amada enquanto a televisão exibia imagens sangrentas do Vietnam. A seguir, um fragmento de Telstar, que ganharia mais tarde o Prêmio Carlos Drummond de Andrade: “exclamo/ eu te amor/ tecendo/ o B-52/ lenta/ lentamente/ p e n e t r a/ mente/ lenta/ p e n e t r a/ lenta/ lentamente/ brilhuzindo/ no ventre da manhã/ não a clara/ ensolarada/ manhã de todos/ mas a rubra/ ensanguentada/ manhã/ de todos os B-52/ vagina/ entreabrir/ parir/ bull-pups/ púbis/ bulldozers/ parir/ phantoms/ napalm/ thunderchiefs/ lazy-dogs/ parir/ a manhã/ de todos/ os B-52/do vietnam”.
Já
o poema de Gullar, “Por Você Por Mim”, coincidentemente com temática parecida,
e que só conheci depois que terminara o meu, abordava as atrocidades da guerra como
uma surpresa que explodia em meio à coloquialidade do cotidiano, e daí vinha o
impacto de sua força: “É dia feito em Botafogo/ Homens de pasta, paletó, camisa
limpa,/dirigem-se para o trabalho./ (...)/ Nenhuma ameaça/ pesa sobre a cidade/
Os barulhos apitos baques rumores/ se decifram sem alarma. O avião no céu/ vai
para São Paulo./ O avião no céu não é um Thunderchief da USAF/ que chega
trazendo a morte/ como em Hanói./ Não é um Thunderchief da USAF que chega/
seguido de outros/ e outros/ da USAF/ carregados de bombas e foguetes/ como
em Hanói/ que chega lançando bombas e foguetes/ como em Hanói/ como em
Haiphong/ incendiando o porto/ destruindo as centrais elétricas”.
“(...) O Vietnam agora é uma vasta
oficina da morte, nos campos/ da morte, o motor/ da vida gira ao contrário,
não/ para sustentar a cor da íris,/ a tessitura da carne, gira/ ao contrário, a
desfazer a vida, o maravilhoso aparelho/ do corpo, gira/ ao contrário das
constelações, a vida/ ao contrário, dentro/ de blusas, de calças, dentro/ de
rudes sapatos feitos de pano e palha, gira/ ao contrário a vida feita de
morte”.
“(...)
Próximo à base de Da Nang/ que tudo escuta e tudo vê,/ próximo à base de Da
Nang, esgueira-se/ entre árvores um homem,/ próximo à base cheia de soldados,/
metralhadoras, bombas,/ aviões, cheia/ de ouvidos e de olhos/ eletrônicos, um
homem, chamado Tram/ entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,/
cauteloso se move/ entre as folhas da noite, Tram Van Dam,/ cautelo se move/
entre as flores da morte/ Tram Van Dam/ quinze anos se move/ entre as águas da
noite/ dentro da lama/ onde bate a aurora/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/
Tram Van Dam/ com sua granada/ entre cercas de arame/ entre as minas no chão/
Tram Van Dam/ com o seu coração/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por
mim/ sob o fogo inimigo/ com o grampo no dente/ com o braço no ar/ por você por
mim/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por mim/ no Vietnam”.
Continua
na próxima semana
3 comentários:
Que materia maravilhosa Ronaldo Werneck, sinceros parabéns desta humilde atriz do cinema nacional, mas que teve a honra de conhece-lo antes do Mundo acontecer em Nós!! sou eternamente sua fã, se não sabia,sabe agora!! que a Vida continue o iluminando com suas belas poesias para nossa felicidade!!!! OBRIGADA----
Sempre atento atento ao passado, a construir futuro. Grato, Werneck, pelas tuas vivências cristalizadas em poemas e considerações.
Que Maravilha!! Encantada!!
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