26 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 4

Por você por mim   

           
            “Consumiste o dia numa sala fechada,/ lidando com papéis e números./ Telefonaste e escreveste,/ irritações e simpatias surgiram e desapareceram/ no fluir dessas horas. E caminhas,/ agora, vazio,/ como se nada acontecera.// (...) Tua casa está ali. A janela/ acesa no terceiro andar. As crianças/ ainda não dormiram./ Terá o mundo de ser para eles/ este logro? Não será/ teu dever mudá-lo?// Apertas o botão da cigarra./ Amanhã ainda não será outro dia”.  Neste poema, “Volta para casa”, Ferreira Gullar parece render homenagem a um de seus poetas preferidos, Carlos Drummond de Andrade. Há nele toda uma dicção dummondiana e, ao mesmo tempo, toda uma preocupação com as andanças e esquivanças do mundo.
            Em 1967, a morte de Ernesto Che Guevara me levou a um poema escrito no calor da hora (e que sairia na capa do SLD, o Suplemento Literatura Difusão que eu editava com o poeta Joaquim Branco), como se vê por esses fragmentos: “à morte azul-/ piscina/ frouxa colcha de retalhos/ surge súbita/ a pré-fabricada/ nas oficinas/ da américa latina/ das oficinas da américa/ das oficinas de sombra e medo/ suja morte em selva vida/ lidalívida lediviva/ la muerte sem arcanjos/ sujo de selva/ e sangue/ fora do encantamento/ o corpo-roto/ de selva & sangue/ o mito-morto/em higueras, os andes vulcânicos/ a morte risco na vida/ meridiano da sorte// de selva e sangue/ faz-se o mito-morto/ de selva e sangue/ tão junto da verdade/como o sangue do corpo/o céu avermelha/sol & selva/ el cielo rojo de higueras/ torna rubra a pálida face/ do herói tombado/y el cielo baja/rojo de espanto/ sobre mi caballero”.
Muitos outros poetas também escreveram sobre a morte de Guevara. Poucos com a força das palavras de Gullar, sua emocionante e épica narrativa: “Em Buenos Aires há sol/ nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe./ Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima/ de Montevidéu. À beira da estrada/ muge um boi da Swift. A Bolsa/ no Rio fecha em alta/ ou baixa./ Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Nato/ castigam o avanço/ dos rangers./ Urbano tomba/ Eustáquio,/ Che Guevara sustenta/ o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe/ o joelho, no espanto/ os companheiros voltam/ para apanhá-lo. É tarde. Fogem./ A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos”.
“(...) Não está morto, só ferido./ Num helicóptero ianque/ é levado para Higuera/ onde a morte o espera/ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu no combate/ mas de mão assassina/;que o abate./ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu aberto/ mas de um golpe escondido/ ao nascer do dia// Assim o levam pra morte/ (sujo de terra e de sangue)/ subjugado no bojo/ de um helicóptero ianque// É o seu último voo/ sobre a América Latina/ sob o fulgor das estrelas/ que nada sabem dos homens// que nada sabem do sonho,/ da esperança, da alegria,/ da luta surda do homem/ pela flor de cada dia”.
“(...) Súbito vimos ao mundo/ e nos chamamos Ernesto/ Súbito vimos ao mundo/ e estamos/ na América Latina/ Mas a vida onde está/ nos perguntamos/Nas tavernas?/ nas eternas/ tardes tardas?/ nas favelas/ onde a história fede a merda?/ no cinema?/ na fêmea caverna de sonhos/ e de urina?/ ou na ingrata/ faina do poema? /(...) A vida muda como a cor dos frutos/ lentamente/ e para sempre/ A vida muda como a flor em fruto/ velozmente/ A vida muda como a água em folhas/ o sonho em luz elétrica/ a rosa desembrulha do carbono/ o pássaro da boca/ mas/ quando for tempo/ E é tempo todo tempo/ mas/ não basta um século para fazer a pétala/ que um só minuto faz/ ou não/ mas/ a vida muda/ a vida muda o morto em multidão”.

Na Gávea, no Vietnam  

     Em 1968 comecei a namorar uma portuguesinha – “bela, recatada & etc” – que morava na Gávea e estudava na escola mais famosa do bairro, o Colégio Estadual André Maurois. Dirigido por Dona Henriette Amado, o André Maurois adotava o lema Liberdade com Responsabilidade como princípio de educação, tendo por base a prática da escola de Summerhill, na Suíça, a primeira democracia infantil do mundo. Dona Henriette acreditava que Summerhill seria um ponto de partida para uma educação que formasse pessoas seguras, onde houvesse uma verdadeira troca de experiências entre alunos e professores. 
    Pois foi ali no André Maurois, numa tarde do segundo semestre de 1968, que vi minha portuguesinha em cena. Mamãe portuguesa era bravíssima e na época só nos era permitido encontros vespertinos. Às vezes conseguíamos pegar um cineminha no Leblon, mas escondidos, mãos tímidas se encontrando no claro/escuro. Anos depois, ela sairia seminua na Revista Ele/Ela e logo seu nome estaria em letras garrafais nas fachadas dos cinemas, já que ficara famosa, imagina!, como atriz de pornochanchadas. Pois é, acontece. Então, para minha surpresa, minha tímida portuguesinha estava ali em cena, no palco do Colégio, e atuava ao lado de vários colegas na montagem de “Por Você Por Mim” (logo depois, aqueles rapazes e moças encenariam a peça também no Teatro Opinião), o belo-terrível poema de Ferreira Gullar sobre a Guerra do Vietnam, que eu acabara de ler/reler. O poema fora publicado naquele mesmo ano, e saíra num livro fino, de corte vertical, muito bem diagramado, com fantásticas fotos solarizadas das batalhas no Sudeste Asiático – livro que anda há tempos sumido entre os muitos de minha biblioteca.  
    Minha portuguesinha me dissera somente que ela e seus colegas iriam fazer a apresentação de um poema, e como eu era (era?) “o seu poeta”, deveria gostar. Ao ver que era o poema de que tanto gostava, e muito bem apresentado por aqueles “meninos e meninas” (eu já me considerava um velho de quase 25 anos frente aos 16, 17 anos dos jovens “atores”) me emocionei de vez, como me emocionara várias vezes nas várias leituras e releituras que já fizera do poema de Gullar. O mesmo poema que reencontro agora, nesta edição do “Toda Poesia”, com várias e antigas marcações feitas por mim. E que acabo de gravar em vídeo que se encontra em meu canal do youtube. 



     Em 1968, com a escalada americana no Sudeste Asiático, o Vietnam nos chegava pelo telstar, escorria sangue pelo videotape e era manchete diária em todo o mundo. Também eu acabara de escrever um poema tendo a guerra como pano de fundo e que sairia em meu primeiro livro, “Selva Selvaggia”. O eu-lírico de meu poema Telstar estava na cama com sua amada enquanto a televisão exibia imagens sangrentas do Vietnam. A seguir, um fragmento de Telstar, que ganharia mais tarde o Prêmio Carlos Drummond de Andrade: “exclamo/ eu te amor/ tecendo/ o B-52/ lenta/ lentamente/ p e n e t r a/ mente/ lenta/ p e n e t r a/ lenta/ lentamente/ brilhuzindo/ no ventre da manhã/ não a clara/ ensolarada/ manhã de todos/ mas a rubra/ ensanguentada/ manhã/ de todos os B-52/ vagina/ entreabrir/ parir/ bull-pups/ púbis/ bulldozers/ parir/ phantoms/ napalm/ thunderchiefs/ lazy-dogs/ parir/ a manhã/ de todos/ os B-52/do vietnam”.
      Já o poema de Gullar, “Por Você Por Mim”, coincidentemente com temática parecida, e que só conheci depois que terminara o meu, abordava as atrocidades da guerra como uma surpresa que explodia em meio à coloquialidade do cotidiano, e daí vinha o impacto de sua força: “É dia feito em Botafogo/ Homens de pasta, paletó, camisa limpa,/dirigem-se para o trabalho./ (...)/ Nenhuma ameaça/ pesa sobre a cidade/ Os barulhos apitos baques rumores/ se decifram sem alarma. O avião no céu/ vai para São Paulo./ O avião no céu não é um Thunderchief da USAF/ que chega trazendo a morte/ como em Hanói./ Não é um Thunderchief da USAF que chega/ seguido de outros/ e outros/ da USAF/ carregados de bombas e foguetes/ como em Hanói/ que chega lançando bombas e foguetes/ como em Hanói/ como em Haiphong/ incendiando o porto/ destruindo as centrais elétricas”.
    “A noite, a noite, que se passa? diz/ que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta/ pantera lilás, de carne/ lilás, a noite, esta usina/ no ventre da floresta, no vale,/ sob lençóis de lama e acetileno, a aurora/ o relógio da aurora, batendo, batendo/ quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão/ batendo/ Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien./ Mas amanhece. // (...)// As águas explodem como granadas, os arrozais/ se queimam em fósforo e sangue/ entre fuzis/ as crianças/ fogem dos jardins onde açucenas pulsam/ como bombas-relógios, os jasmineiros/ soltam gases, a máquina/ da primavera/ danificada/ não consegue sorrir.” 
     “(...) O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos/ da morte, o motor/ da vida gira ao contrário, não/ para sustentar a cor da íris,/ a tessitura da carne, gira/ ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho/ do corpo, gira/ ao contrário das constelações, a vida/ ao contrário, dentro/ de blusas, de calças, dentro/ de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira/ ao contrário a vida feita de morte”.  
      “(...) Surdo/ sistema de álcool, gira/ gira, apaga rostos, mãos,/ esta mão jovem/ que sabia ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos/ demais, há mortes/ demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos/ do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada/ aquela tarde clara tudo/ tudo se dissolve nas águas marrons/ e entre nenúfares e limos/ a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul”.  
      “(...) Próximo à base de Da Nang/ que tudo escuta e tudo vê,/ próximo à base de Da Nang, esgueira-se/ entre árvores um homem,/ próximo à base cheia de soldados,/ metralhadoras, bombas,/ aviões, cheia/ de ouvidos e de olhos/ eletrônicos, um homem, chamado Tram/ entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,/ cauteloso se move/ entre as folhas da noite, Tram Van Dam,/ cautelo se move/ entre as flores da morte/ Tram Van Dam/ quinze anos se move/ entre as águas da noite/ dentro da lama/ onde bate a aurora/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ Tram Van Dam/ com sua granada/ entre cercas de arame/ entre as minas no chão/ Tram Van Dam/ com o seu coração/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por mim/ sob o fogo inimigo/ com o grampo no dente/ com o braço no ar/ por você por mim/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por mim/ no Vietnam”. 
      Pois não é que até hoje, até mesmo agora, ao digitar esses trechos do poema, ao sentir o ritmo incessantemente marcante dessa sequência de “Tram Van Dans”, me comovo quase às lágrimas? 
Continua na próxima semana





3 comentários:

fernanda lopes disse...

Que materia maravilhosa Ronaldo Werneck, sinceros parabéns desta humilde atriz do cinema nacional, mas que teve a honra de conhece-lo antes do Mundo acontecer em Nós!! sou eternamente sua fã, se não sabia,sabe agora!! que a Vida continue o iluminando com suas belas poesias para nossa felicidade!!!! OBRIGADA----

Unknown disse...

Sempre atento atento ao passado, a construir futuro. Grato, Werneck, pelas tuas vivências cristalizadas em poemas e considerações.

regina ragazzi disse...

Que Maravilha!! Encantada!!