Os perigos que Clara temia
eram a gripe, o calor, os insetos.
Carlos Drummond de Andrade
Magritte by Pury |
curva a cada curva
nos espera a sorte
nos espreita a morte
turva turva turva
sinaliza a peste
a peste nos pede
e damos carona
e abrimos a porta
e insidiosa
ela vem e vem
dona de si dona
de todo esse mal
dona má madona
torna quase torta
a morte corona
nesse mundo agreste
nascerá a flor
após a peste?
havia manhãs
havia jardins
já drummond dizia
agora haverá?
haverá namorados
de mãos dadas
após a peste?
do outro afastados
hoje até quando?
resistir até
até até quando?
haverá o mar
o verde a montanha
será qu´ haverá
beleza tamanha?
a vida haverá
após a peste?
haverá a peste
após a peste?
casais de mãos dadas
namorados beijos
beijos e abraços
abraços e beijos
haverá namoro
haverá após
após a peste?
nada de flanar
a casa é o lar
nada desse andar
ficar e ficar
dia é bom aqui
tarde boa aqui
noite boa aqui
aqui que é bom
lá fora a morte
a morte à espreita
muitos mortos vivos
já não há o ar
tempo de afogar
o ar qu´eu respiro
muitos vivos-mortos
muitas pás reluzem
muitas pás se apagam
pás pás ao sol torto
pás pás ao sol posto
pás a paz enfim
morte a sorte enfim?
não sim não sim-sim
o sol só se solta
sol que se apaga
e desilumina
sol que some e não
mais dá cor ao mundo
sol qu´aprisiona
sol qu´abandona
a peste pede passagem
a morte pede carona
sim – fechar as portas
pra febre malsã
sua carantonha
sua cor corona
dia após dia
haverá manhãs
haverá jardins
Ronaldo Werneck
Cataguases, abril 2020
4 comentários:
Belo poema, Ronaldo: passa inteiro o transe que todos estamos vivendo. A incerteza de um possível contágio; a dor da perda de entes queridos; a falta de horizontes, a começar dos físicos; a prisão, nunca um benefício, ainda que signifique preservação. Poesia no calor da hora: beleza.
O poema interroga a continuidade, a importância,a impotência,o horizonte do homem na vida. De repente, o poema desfolha-se.
O ritmo, que torce a camada fônica,fragmenta,com encadeamento sedutor, a tensão dos múltiplos significados. O tema da peste configura, pela estrutura da substância poética,um aturdimento e uma vertigem apreendidas pela consciência do prazer.
O poema tem o ritmo de uma respiração ofegante. Sintomático poema.
Ronek
Adorei o seu poema que, ao ser divulgado no Brasil, fará parte da história da estadia do Covid-19 em nosso país.
Abraços
Luis Antonio Martins Mendes
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