FESTIVAL
DE CATAGUASES 50 ANOS
Em junho de 1969 a equipe do SLD –
Suplemento Literatura Difusão realizou o “1º Festival de Música Popular Brasileira
de Cataguases”. Na Comissão Organizadora: Lila Carneiro Gonçalves, Geraldo
Ramos Santos, Joaquim Branco, Paulo Dalforne, Milton Barbosa e Ronaldo Werneck.
No júri, presidido pelo poeta
Francisco Marcelo Cabral, nomes como Lúcio Alves, Nelson Motta, Mariozinho
Rocha, o filósofo Jorge Roux, o crítico (na verdade, de cinema) Alberto Silva e
os poetas-processo Álvaro de Sá, Nei Leandro de Castro e Moacy Cirne. Cinquenta
anos depois – imortais, mas nem tanto – não estão mais entre nós Geraldo Ramos
Santos, Francisco Marcelo Cabral, Lúcio Alves, Jorge Roux, Alberto Silva,
Álvaro de Sá, Moacy Cirne.
No palco do Cine-Teatro Edgar em 1969,
belas toadas como “Virandeiro”, do também saudoso Messias dos Santos e Eugênio
Malta (cantada por Luely Figueiró, aquela eterna “certinha do Lalau”),
mesclavam-se a experiências de vanguarda: “Trânsito Livre”, de Aquiles Branco,
e a vencedora, “Apocalipopótese, a paz depois”, do paraibano Marcus Vinícius de
Andrade.
Mais tarde parceiro de Paulinho da
Viola e de Augusto de Campos, Marcus Vinícius lançaria nos anos 70 dois belos
“LPs de autor”, com uma penca de músicas experimentais. Hoje é maestro,
compositor de trilhas para cinema (“A Hora da Estrela”, entre várias outras), arranjador
de renome em São Paulo e Diretor-Geral da AMAR/SOMBRAS,
e entidade que cuida dos direitos autorais dos músicos. Sua canção “Apocalipopótese”
remetia à hipótese do Apocalipse segundo o neologismo criado pelo artista
plástico-tropicalista Hélio Oiticica.
Em cena (ou sina), havia ainda a
cataguasense Maria Alcina, estreando no showbiz
com a eletrizante “Pesadelo Refrigerado”, de Alfredo Condé, um saque sagaz de
Carlos Moura, naquela letra ainda hoje up-to-date:
“Uma fazenda no Texas/ um rifle na porta aberta/ em Nova York uma cabala/ um
buquê de flor em Dallas/.../ Há sempre um lado incendiado/ um John queimado e
um metralhado”. “Pesadelo” ficou em 2º lugar e Alcina, melhor intérprete,
ganhou de Nelsinho Motta a promessa de lança-la no Rio (de Janeiro, seus sacanas!).
Logo no ano seguinte, 1971, início da carreira e da fama, Maria Alcina grava
seu primeiro disco, um compacto com
as canções “Azeitonas verdes”, de Marcus Vinícius, o próprio, e “Mamãe, coragem”, de Caetano Veloso e Torquato Neto.Em 1972, a consagração no Festival Internacional da Canção com “Fio Maravilha”, de Jorge (ainda) Ben: o Maracanãzinho em peso fascinado com seu gestual, sua elétrica interpretação. Hoje minha amiga, vejam só!, é nome de rua em Cataguases.
Zooilógico
Em
julho de 1970, lá se vão 50 anos, seria a vez do grande frisson performático-musical da história de Cataguases. A
repercussão do evento anterior fora excelente, com ampla divulgação na mídia de
BH e do Rio – e as frequências do meio musical estavam antenadas em Cataguases. Como
o próprio nome já indicava, o “2º Festival Audiovisual de Cataguases” era um
outro tipo de proposta feita pela turma do SLD, no sentido de mostrar a música
de vanguarda com uma roupagem cenográfica, trazer o poema-processo para o
palco, representar visualmente o som & coisas quetais. Pois é, aquele
“papo-cabeça” dos anos 60 deu o maior ibope em Cataguases e em todo o país.
Nunca, nem nos áureos tempos de Verde ou de Humberto Mauro, a cidade ocupou
tanto espaço na mídia nacional.
Com uma Comissão Organizadora
formada por Geraldo Ramos Santos, Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Ernesto
Guedes e Carlo del Prete Silveira, o Festival trazia a Cataguases, como
concorrentes, nomes já conhecidos no cenário nacional: Rildo Hora, Ruy Maurity,
Carlos Imperial, João Medeiros, Gutemberg Guarabira, Luiz Carlos Sá (o trio
“Sá-Rodrix-Guarabira” foi formado a partir do Festival de Cataguases), José
Carlos Capinam, Ronaldo Tapajós, Bia Bedran, Trio Yrakitan, Equipe Mercado e
até mesmo Gilberto Gil, que mandara de Londres uma parceria inédita com
Capinam. “Zooilógico” seria defendida por ninguém menos que Gal Costa, depois
por Jards Macalé e depois por ninguém, já que os dois não puderam vir a
Cataguases por motivos – quais mesmo? – vamos dizer, “ilógicos”. Gal acabaria
gravando “Zooilógico” num de seus LPs da época: “Zoo, Zoo, Zoo, Zoológico/ Ilógico/ Logo sou/ Zoológico/ Ilógico/ Logo sou/ Logo
sou a feros o zero a cidade/ Logo sou a ferocidade”. Vocês se lembram? Eu sim
eu não: zooilogicamente que sim-não.
Comissão organizadora: Geraldo Santos, Carlos del Prete, Ronaldo Werneck, Lila Gonçalves, Sebastião Carvalho, Joaquim Branco. |
Meio dia, doze mortes
Quem veio foi José Carlos (Soy Loco por Ti América) Capinam, um dos
letristas-ícones do tropicalismo. Mas por conta da outra música que
classificara, “Gás Paralisante”, em parceria com o pernambucano Aristides
Guimarães: “Falamos/ Depois falimos/ Respiramos/ Depois paramos/ Só vão ficar
as estrelas/ E o mar batendo nas pedras/ Dos bujões/ Para as canções/ Dos
bujões/ Aos corações/ O gás do Orgasmo/ Agônico/ O pânico Orgânico/ Das
paixões/ E o mar batendo nas pedras”. Capinam acabou ganhando o Festival e me
disse que com o dinheiro iria comprar, imaginem!, uma máquina elétrica para
escrever seus poemas. Quais? Perdemos o contato e não os li jamais. Bons tempos
aqueles, quando os poetas ainda buscavam calar os letristas de ocasião,
empunhando seus eletromágicos teclados
contra guitarras nem sempre plugadas no novo.
Na verdade, mesclando compassos
fortes a fugas dissonantes, a 2ª colocada, “Meio-dia, doze mortes” (“Cheque
verde cheque mate cheque morte/ Choque/ Chocolate/ As locomotivas se
locomovendo se movendo loucas/ A cidade devorando, devorando, devorando tudo”),
do mesmo Marcus Vinícius que ganhara o Festival de 1969, era bem superior à
canção de Guimarães & Capinam. Como também “Harpa Selvagem ou Nero Revisitado”,
de Jadir de Sousa/Aquiles Branco, defendida com grande garra por Maria Alcina
(de novo, melhor intérprete): um delírio que mesclava Roma & Wall Street,
tendo o poeta maranhense Sousândrade como referencial & (porta) bandeira.
Ou ainda “Chevrolet’s Go Home”, de Francisco Condé, com uma letra daquelas
endiabradas de Antônio Jaime Soares: “O final, o fim, a nau/ O sinal, o sim, o não/ Chevrolet’s go home/ No
fim da noite/.../ Som de plastibeijos a ferir/ A carne viva estremecer/ No sul
sem fim/ O sul sem cor/.../ Chevrolet’s go home/ No fim da noite/ No fim do
mundo”.
Tango terrível
Isso sem contar a outra composição
de Marcus Vinícius, “Se for com dez pés lá vai”, um bem-humorado rock sobre
tema de cordel (“Você me deixa espantado/ Na luz mansa dessa tarde/ Meu amor
escorregado/.../ Eu fico anestesiado, assim/ Teu riso desaba sobre mim/.../ Você
cai/ Se eu cair, caio por cima/ Dos olhos desta menina/ E se for com dez pés lá
vai”). Ou o delírio bélico/psicodélico de “Cristycaia”, de Messias dos Santos e
Carlos Sérgio Bittencourt (“Pra ver a nave de Marte/ E contar pra todo mundo/ Que
vi o avião de Plutão/ Talvez ir no cais/ Esperar o caos/ Que vem do Laos/ Talvez
esperar Cristycaia que vem”. Ou a explosiva manemolência do “Tango Terrível” de
Alfredo Condé e Carlos Moura, um momento totalmente tropicalista que o júri não
entendeu. O poeta Affonso Romano de Sant´Anna, um dos jurados, veio me
perguntar se seria válido votar em um tango num “festival de vanguarda”! Era
sim, Affonso, principalmente quando cantado pelo Turi-trajando-Turi, de
branco-malandro, Seu Mané!, de branco-sambista, um paradoxo tropical, em
contraposição à letra de vários achados: “Tango terrível/ Madrugada/ Gardel
Gardênia/ Média luz/ Cama de lona/ Sob a mata/ Luvas, polainas/ e capuz”. E,
finalmente, “Marina Belair”, que não cabe neste parágrafo.
Manicure do Escândalo
“Manicure/ Escândalo
dos dedos/ Dédalus /.../ Lapa ofegante Ofélia /.../ Vidrilhos olh’eyes/ Yes
olh’eyes /.../ Esmalte mickey mouse para os dedos da lapa/ Thomas de la rue and
company limited london” – martelava a letra do poeta-processo Ronaldo Periassu
para a marginal melodia (?) de seu parceiro Ricardo Guinsburg, autêntica desarmonia-heavy-metal-avant-la-lettre. No palco do Cine-Teatro
Edgar, a performática Equipe Mercado fazia seu happening marcado pela guitarra
de Stul e pela voz rascante da band-leader
Diana, um furacão em cena. A
apresentação do grupo era uma das mais esperadas daquela segunda noite do
Festival, pois eles haviam participado do famoso “Show da Sucata”, no Rio,
junto com Caetano, Gil & toda a tropicália. Além disso, o Mercado estava
entre os finalistas do Festival Universitário da TV-Tupi, que acabaria vencendo
com a bem-humorada “Mary-K no Esgoto das Maravilhas”.
2° FAC: O teatro superlotado. |
Meu amigo Ronaldo Periassu, que
viajara de carona comigo para Cataguases, me perguntara onde achar carne para cachorro.
Distraído (na verdade, pensando num piano que teríamos de colocar no palco),
disse qualquer coisa como “num açougue desses aí”. Só quando a Equipe subiu ao
palco, com meros trapos sobre os corpos seminus, brilhantes, lambuzados de óleo
(óleo?), é que vi a “função” da carne pra cachorro: Diana, Stul & Co. entrecortavam
acordes, scats & dentadas na
carne, depois atirada a esmo na plateia. Nunca Cataguases viu nada assim, a
chamada nata da sociedade recebendo na cara e onde mais pintasse grandes nacos
de carne crua, numa canina caosticidade realçada
pela estridência dos instrumentos e pelos rugidos de Diana: “Manicure do
escândalo/ Marina Belair/ Afunda da
furunculosidade”: e a bunda explícita voltada pro público atônito.
Apocalipopótese
Caos/ carne /carnaval. Anitta, essa
de agora, perderia feio para o esplendor de Diana, a de outrora, caçadora que
lançava sua presa aos quatro ventos. Quer dizer, até mesmo em Clementina de
Jesus, a própria, que estava no palco, e foi premiada com um sangrento naco
logo nos reluzentes sapatos que ela estava exato estreando. “Um presente trazido de Paris por ´meu filho
branco´ Hermínio Bello de Carvalho” –, como confessaria ainda no Rio, a mim e
ao poeta Francisco Marcelo Cabral, quando a convidamos a vir a Cataguases. A debutante Clementina: um misto suburbano de
ingenuidade, timidez e favelado orgulho. Na noite da final, Clementina
(en)cantou e magnetizou todos nós com aquela voz rascante, a voz de Quelé – sua
força, sua doçura, sua resistência. Ah, sim, esqueci de dizer: as grandes
vedetes do Festival estavam na verdade em cena, mas não eram propriamente
concorrentes. Tantas foram as celebridades trazidas para o júri, que resolvemos
colocá-las no avantajado palco do Cine-Edgard, cenografado com belos e
funcionais praticáveis pelo artista plástico pernambucano Raul Córdula. Ali com
certeza “nossas estrelas” iriam brilhar melhor. E não era pra menos.
Acredito que jamais houve um
Festival de Música com jurados daquele jaez: de BH, o casal de poetas Laís
Correa de Araújo e Affonso Ávila; do Rio, além de Clementina de Jesus, presidente
de honra, o poeta Affonso Romano de SantAnna, acompanhado da Editora do Caderno
B do Jornal do Brasil, Marina Colasanti
(os dois começaram a namorar em Cataguases e estão juntos até hoje, evoé!), o
crítico underground do Pasquim e colunista
de Última Hora, Luiz Carlos Maciel, o crítico musical de Veja, Antônio Chrysóstomo,
o do Globo e da TV Tupy, Nelson Motta, o então poeta-processo Walter Carvalho –
hoje cineasta e um dos maiores fotógrafos do cinema nacional –, além do estado maior
do poema processo: o casal de poetas Neide e Álvaro de Sá e mais Moacy Cirne e
o papa Wlademir Dias-Pino. Álvaro, Moacy e Wlademir não estão mais aqui. Mas
seus poemas resistem em processo.
O júri votou na música da Equipe Mercado
como a melhor daquela noite e criou-se o chamado quiproquó. Joaquim Branco e eu
fomos convocados pelo prefeito para uma reunião com o eminente delegado de
polícia e o advogado oficial da comarca, ou coisa que o valha. Tínhamos que
decidir: ou a Equipe Mercado voltava pro Rio ou o Festival terminava ali.
Acabamos ficando com o Festival – e o Mercado (eu e Periassu somos amigos até
hoje) e quase todo mundo compreendeu. Quase, porque a Veja, a Manchete e os
jornais do Rio esbravejaram até mais não poder, principalmente o Carlinhos
Oliveira, que desceu o pau na “arbitrariedade” durante vários dias em sua
coluna do Jornal do Brasil. Ou meu saudoso amigo Luiz Carlos Maciel, que mesmo
com seu estilo soft & elegante,
cobriu de elogios o Festival, mas chiou a mais não poder com a malasorte da Equipe Mercado. Mais do que
nunca, Cataguases foi o cais, o caldeirão de onde caía o caos da criatividade –
pra nunca mais. Ciao, apocalipopótese!
Livraria Martins Fontes, São Paulo, 2011: RW olha para
Maria Alcina que olha para um Marcus Vinícius distraído com a fotógrafa, a escritora Eltânia André. |
7 comentários:
Oi boa tarde tudo bem? Aceita um seguirmos o blog do outro? Podemos ser amigos (não existe distância para amizade) e fazermos parceria entre os nossos blogs. https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1
Oi Ronald. Para mim foi tudo uma novidade, pois já não estava mais em Catá. Adorei saber de tudo isto. Um grande beijo
... como também grande admirador dos Festivais de músicas... esses com certeza estão entre os melhores do Brasil. Belo texto Ronaldo. Eu não sabia de tantas coisas destes dois festivais. Agora sei.
Ótimo textos.
Como sempre. Poeta 👌
Muito bacana meu amigomestre RW.
Saravas
Q bom conhecer esses momentos gloriosos da arte em Cataguases e tale
ntos que estão em plena vitalidade criadora até hoje! Parabéns Ronaldo Joaquim e Aquiles
Realmente, momentos gloriosos! Vivendo longe de Cataguases, ignorava tudo isso, que o brilhante texto do Ronaldo Werneck revive como um filme diante do leitor !
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