O
homem que salta de dentro do atleta. |
“O mito é o nada que é tudo“, escreveu um dia o poeta
Fernando Pessoa. E como nada somos, com bem o sabeis – e só não sabem aqueles
que bradavam ou ainda bradam pelo “mito falso e fujão”–, fiquemos com nossos
mitos do gramado e com o que de humano cada um deles traz dentro de si. “Morreu,
aos 82 anos, Edson Arantes do Nascimento – disse Juca Kfouri em artigo na Folha
de S.Paulo de 30.12.2022 –, um homem igual a qualquer outro, com qualidades e
defeitos. (...) E consta que morreu nesta quinta-feira (29), também aos 82
anos, Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos”. E Kfouri concluía
seu longo e bem sacado texto: “É de se lamentar que, neste ponto, seja
obrigatório informar a quem veio até aqui, que não, não é verdade que Pelé
tenha morrido. Quem morreu foi o Edson”.
E com Pelé interpretando Pelé, como só ele sabia,
adversário não havia” – escrevia eu, comentando a Copa de 1998 na França, mas
me remetendo à Copa de 1970, aquela do México: Brasil Tricampeão. Mitos como
Pelé, sobre quem eu pensava não haver mais nada a ser dito. Mas o Chico
Buarque, que estava em Paris, cobrindo a Copa pro Globo, conseguiu uma
novidade: “A impulsão com que Pelé celebrava o gol chegava a superar aquela, já
extraordinária, com que subira para cabecear. Era como se, na celebração do
gol, o homem saltasse de dentro do atleta”. O homem que salta de dentro do
atleta: que imagem mais perfeita do futebol alegria, do futebol-arte, do
futebol-poesia.
“Um futebol de poesia”: era como anunciava o poeta
e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini ao escrever sobre a vitória do Brasil
contra a Itália na final da Copa do México, em 1970. Publicado no jornal Il Giorno, em 03 de janeiro de 1971, o artigo de
Pasolini girava em torno da dicotomia “futebol de prosa e futebol de poesia” –
e tinha lances como: “Em futebol há momentos que são exclusivamente
poéticos: são os momentos do gol. Cada gol é sempre uma invenção, é sempre uma
perturbação do código: todo gol é fulguração, espanto e irreversibilidade. Precisamente
como a palavra poética”.
E Pasolini continuava: “O melhor goleador de um
campeonato é sempre o melhor poeta do ano. (...) Quem são os melhores
dribladores do mundo e os melhores goleadores? Os brasileiros. Portanto, seu
futebol é um futebol de poesia: de fato, todo ele está baseado no drible e no
gol. (...) Se o drible e o gol são os momentos
individualistas-poéticos do futebol, é por isso que o futebol brasileiro é um
futebol de poesia. Sem fazer diferença de valor, mas em sentido puramente
técnico, no México a prosa estetizante italiana foi vencida pela poesia
brasileira”. E, no futebol, complemento eu agora o artigo de Pasolini, a poesia
brasileira esteve sempre representada por Pelé.
O Rei e Ela
Pelé, Brigitte Bardot mais
eu. Era assim que durante muito tempo falava para amigos & quejandos quando
perguntado sobre o dia do meu aniversário. Nós três de outubro, 23. Mas não sei
bem como nem por que colocava Brigitte nesse trio, já que ela na verdade nasceu
em 28 de setembro de 1934. Devo ter lido errado em algum lugar e Brigitte,
estrela guia, ficou nos acompanhando em vários aniversários ao longo dos anos.
Pelé, não. Pelé, sim: 23 de outubro de 1940, exatos três anos antes de mim. Um
jornalista desses mais exaltados chegou a sugerir que a partir de agora o 23 de
outubro seja sacramentado como o Dia de São Pelé. Não vou a tanto, mas bem que
o Rei santista podia também figurar entre tantos outros reis e santos. Assim
como escreveu Nelson Rodrigues em 1958, ao saudar o jovem Pelé: “Verdadeiro
garoto, meu personagem, anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis
e fatais. Dir-se-ia um Rei, Não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”.
A
abertura deste tópico fica assim, como abertura mesmo, para falarmos dele,
Pelé, antes de darmos um rápido corte e chegarmos numa tarde de 1991 à plateia
do Teatro I do CCBB/Rio. Ali estou eu a conversar com a atriz Fernanda
Montenegro, enquanto sua filha Fernanda Torres é ensaiada no palco por Geraldo
Thomas, diretor do espetáculo The Flash and Crash Days, estrelado pelas duas, a estrear dias
depois. Eu acabara de entrevistar a Fernanda para um vídeo que faria sobre a
peça, a exemplo de outros tantos que fiz naqueles tempos do CCBB. Lembrei à
Fernanda que já havíamos nos encontrado há quase vinte anos, lá pelos inícios
dos anos 1970, quando a entrevistei no Teatro da Maison de France na época em
que protagonizava a peça de Louis Verneuil,
O amante de Madame Vidal, traduzida por Millôr Fernandes, com direção de
seu marido Fernando Torres. Ela se recordou da nossa entrevista e da peça, de
grande sucesso e longa temporada.
Mas a Fernanda que conheci naquele dia na Maison de France era uma atriz
séria, compenetrada, voltada para o fazer de seu ofício. Agora, não. Essa
Fernanda que está ao meu lado é uma pessoa descontraída, que deixa antever o
seu bom-humor, sinal de sua sagacidade, de sua inteligência. Finda a
entrevista, câmera e microfone desligados, é tempo de se soltar, de falar como
admirava o trabalho de Gerald, como confiava nele, como se submetia ao seu
comando, quase sem pensar.
Dias depois, noite de estreia, eu conversava nos
bastidores com Paulo José e Ziraldo (sua
filha, Daniela Thomas, era a cenógrafa do espetáculo). Disse Ziraldo: “não
entendi nada, mas essa movimentação dos atores, essa iluminação que só o Gerald
sabe fazer, isso sim, você sente que é teatro, que tem a força do teatro”. E, voltando à Fernanda: além do Gerald ela
começa agora a elencar outras admirações as mais diversas, do marido Fernando
Torres a Sérgio Britto, de Chico Buarque a Caetano Veloso. De repente, Fernanda
para e diz muito séria, para minha total surpresa: “Olha, mas quem eu admiro
mesmo é o Pelé. O Rei Pelé”.
Foi quando, tomado por súbito entusiasmo – e para espanto total da Fernanda –, levantei-me entre as poltronas e, em pé no corredor do teatro, tentei “narrar ao vivo” – em meio a chutes e cabeçadas no ar – a cena do inacreditável lance Pelé-Coutinho que vi no Maracanã numa noite de 1963, durante a decisão do Campeonato Brasileiro de 1962, com o time do Santos dando de cinco a zero no Botafogo.
Da rua da Grama à grama do Maracanã
Foi assim. Trabalhávamos num Banco, eu e um amigo botafoguense, e
morávamos numa pensão da rua da Grama, em Leopoldina. Era a tarde de 2 de abril
de 1963 e ele, botafoguense doente, perguntou se eu topava irmos ao Rio assistir à
final de Santos x Botafogo naquela noite. Sequer titubeei. Nunca vira Pelé
jogar, o que só aconteceria com mais assiduidade quando me mudei para o Rio em
1965, assistindo a lances memoráveis no Maracanã, inclusive o gol-1000, aquele
de pênalti, quando eu estava na arquibancada atrás do gol do arqueiro Andrada
do Vasco. Mas era, sempre fui, mais
Pelé que santista ou qualquer outro time, com o perdão do meu Flamengo. E foi
então que partimos num ônibus Rio-Bahia afora. Da rua da Grama para a grama do
Maracanã.
Pelé faz seu segundo gol naquele arrasador 5x0 contra o Botafogo |
Nunca uma viagem valeu tanto a pena. Maracanã lotado, inclusive com a
presença mais que anunciada de dois astronautas russos. Aquele acender
incessante de fósforos e isqueiros, a arquibancada piscando que nem milhões de
vagalumes e a grama, a verde, sacrossanta, iluminada grama onde pisavam nossos
ídolos. No Botafogo, havia Garrincha, Nilton Santos, Manga, Amarildo, Zagallo e
até Jairzinho. No time do Santos, aquele ataque endiabrado: Dorval (que faria
um gol), Mengálvio, Coutinho (1 gol), Pelé (dois gols) e Pepe (1 gol). Final: Santos 5 x 0 Botafogo, naquele que os
cronistas hiperbólicos classificaram como “o maior jogo do mundo”.
Mas, e o lance, o lance Pelé-Coutinho que eu “narrei” pra Fernanda
naquela tarde do CCBB? Não dá pra contar, só pra encenar, se é que me explico
bem. Vamos lá, se é que consigo recuperar em palavras o que vi e descrevi pra
Fernanda. Deu-se que Pelé estava na lateral direita, próximo da linha do
corner, acossado pelo grande Nilton Santos. Foi quando ele saiu correndo em
direção ao zagueiro e à grande área, mas deixou a bola pra trás. Nilton
balançou o corpo sem entender, sem saber se seguia Pelé ou ia em direção à
bola, que ficara lá na lateral. Foi quando Coutinho veio de trás em disparada,
passou por Nilton, chegou até a bola que ficara na lateral e num átimo – sim,
num átimo! – cruzou para Pelé que, já na pequena área, cabeceou para dentro das
redes de Manga, um Manga também atônito com tudo aquilo. Um lance, um relance
de dois gênios entrosadíssimos. O Maracanã veio abaixo e gritava comigo: Pelé!
– inclusive meu botafoguense amigo. Pelé! Pelé! Pois é.
Assim foi que parei minha trôpega, mas entusiasmada encenação entre os
sorrisos e aplausos de Fernanda Montenegro.
Disse pra ela que nunca mais me esqueci daquela primeira vez que vi Pelé
jogar. Faço minhas as palavras do
jornalista João Máximo: “Pelé alcançou o que se supunha impossível: a
perfeição. Seu futebol era uma combinação de técnica e beleza, arte e magia,
soma de virtudes que fizeram orgulhar-se dele um país com poucos motivos de
orgulho”. Rainha dos palcos, nada mais justo que Fernanda Montenegro se
curvasse em reverência à arte e magia do Rei do Futebol.
2 comentários:
Poeta, vc é o Pelé das pretinhas!
Texto a altura de um rei
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