Ruínas romanas de Tipasa, classificadas pela UNESCO como Patrimônio Mundial
Certa vez, convidado a falar sobre poesia, o poeta Federico García Lorca limitou-se a estender as duas mãos abertas e dizer: Yo no puedo, yo no sé hablar sobre poesia./ Yo la tengo aqui en mis manos, sé que está/ quemando mi piel, pero no lo sé o que és. De onde vem, como nasce o poema? Ferreira Gullar dizia que era do espanto. De certa forma, estava certo. Mas não é só disso, de espantar-se com o mundo, com o acontecimento, que surge o poema. Ele vem às vezes do alto, como no avião que vi cortando o céu de Botafogo, numa manhã carioca da semana passada. Avião que me levou de volta exatamente a um dos meus poemas prediletos de Gullar, vindo lá dos anos 1970, “Por você por mim”:
É dia feito em Botafogo/ Homens de pasta, paletó, camisa limpa, dirigem-se para o trabalho./ As pessoas marcaram encontros,/ irão ao cinema,/ à buate,/ se amarão nas praias/ na cama/ nos carros./ Nenhuma ameaça/ pesa sobre a cidade./ O avião no céu/ vai para São Paulo./ O avião no céu/ não é um Thunderchief da USAF/ que chega trazendo a morte/ como em Hanói./ Que se passa em Huê? em Da Nang?/ No Delta do Mekong?/ Te pergunto,/ nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,/ te pergunto,/ que se passa no Vietnam?
Alguns dias após a morte de Ferreira Gullar (São Luís do Maranhão, 10.09.1930/ Rio de Janeiro, 04.12.2016), eu publicava em meu blog três vídeos que acabara de editar sobre o poeta, inclusive um em que eu havia gravado o poema “Por você por mim”, que pode ser visto no link a seguir: Por você Por mim - Ferreira Gullar por Ronaldo Werneck ( https://youtu.be/BKFFWK_8cTA )
O poema então – além do espanto, como dizia Gullar – surge também da memória, às vezes de um avião no céu que me leva ao poema de Gullar, que me leva ao Vietnam. E, pelo menos para mim, o poema, qualquer poema, tem muito do olhar, de observar o mundo com olhos aguçados, olhos de ver/apreender. De desenvol/ver. Situações, paisagens, lembranças, alguma coisa sensorial perdida no tempo e que volta súbito e nos enlaça sob a forma de poema. E nos traz para o agora. Imagem + palavra: inventividade, experimentação. Palavras fora do dicionário, como em Drummond: “Já não quero dicionários/ consultados em vão./ Quero só a palavra/ que nunca estará neles/ nem se pode inventar”.
Isso tudo para dizer do estranho (e “espantoso”?) nascimento do poema que vai a seguir – e que ficou por quase 50 anos embrionário em minha cabeça. Era um verão literalmente africano na Argélia, setembro de 1979. Eu caminhava solitário e sem rumo por uma praia deserta nas proximidades de Chéraga, na província de Argel. O vento vinha do mar, levantava a areia e batia suave em meu rosto. Nunca mais, em toda a minha vida, eu me esqueci desse momento iluminado, de absoluta plenitude, uma quase epifania. Voltava de uma visita que me emocionara a Tipasa, exatos 69 km de Argel – a pequena Tipasa, a cidade argelina hoje Patrimônio Mundial da Humanidade, debruçada sobre o Mediterrâneo, com seus penhascos, suas escarpas e ruínas romanas.
“O mar/ la mer aussi/ e ruínas/ romanas/ e belas”– como no meu poema L´après-midi à Tipasa, escrito ainda em 1979 e publicado anos depois em meu livro “minerar O branco” (Editora Artepaubrasil, São Paulo, 2008). Eu fora a Tipasa levado por lembranças de Albert Camus, um de meus “escritores de cabeceira”, e de seu icônico “Bodas em Tipasa” – uma “ode ao sol”, cujos textos relia numa edição francesa comprada em Paris: Noces à Tipasa (tônica no último “a” de Tipasa, como no bom francês, s´il vous plaît).
Au printemps, Tipasa est habitée par les dieux et les dieux parlent dans le soleil et l´odeur des absinthes, la mer cuirassée d´argent, le ciel bleu écru, les ruines couvertes de fleurs e la lumière à gros bouillons dans les amas de pierres grellés. Assim, Camus abria seu livro. Numa rápida tradução: “Na primavera, Tipasa é habitada pelos deuses e os deuses falam sob o sol e o aroma dos absintos, o mar blindado de prata, o céu puro azul, as ruínas cobertas de flores e a luz fervendo nas pilhas de pedras de granito”.
Mais tarde, em Retour à Tipasa, escreveria Camus: Il n´est pas pour moi un seul de ces soixante-neuf kilomètres de route qui ne soit recouverte de souvenir et de sensations. Lembrança e sensações: pontos de partida e chegada. Fulcros da feitura do poema. De onde vêm, para onde vão os poemas? Em 1961, dentro das ruínas romanas de Tipasa, de frente para o mar e para o monte Chenoua, foi erguida uma stela em homenagem a Albert Camus com esta frase em francês extraída de sua obra “Noces à Tipasa”: Je comprends ici ce qu'on appelle gloire : le droit d'aimer sans mesure. (“Entendo aqui o que se chama glória: o direito de amar desmedidamente").
Então, naquele setembro de 1979, não era a primavera de Camus, mas sim o final de um abrasivo verão. E em Tipasa eu vira ainda há pouco a luz ferver ainda com mais intensidade nas pedras empilhadas penhasco abaixo até o mar blindado de prata. Ainda há pouco: imagina, há 50 anos! E essa imagem não me sai da memória. Agora, 2020, é outro verão no Shangrilá, o sítio que temos no alto de um morro, nos arredores de Cataguases, de frente e em panorâmica sobre as montanhas de Minas. Ilhado há meses pela pandemia, leio numa rede, o mundo-minas em plano geral, o mar de morros.
Vejo avencas, acácias. Vem um vento a bater suave em meu rosto – o mesmo daquela tarde em Argel? O mar de morros. Mediterrâneo? Avencas, acácias? Há um forte aroma de tâmaras (dattes! dattes!) vindo de longe, de não sei onde. Não! Eu sei de onde. Esse vento, esse aroma na memória, essas improváveis tâmaras – Argel ressurge súbito no ritmo oitavado desse poema, até mesmo na métrica de seu título. Ritmo só atravessado por duas súbitas estrofes em redondilhas menores, a ressaltarem a “palavra palavra/ para sempre fica/ pois é poesia”. Tipasa está aqui, nessa tarde, nesse après-midi, pois a trago comigo ainda agora – e para sempre: o mar/ o mundo/ a recomeçar/ au jour-le jour/ tous/ tous les jours/ todos/ todos/ os dias todos/ sob luz intensa/ sempre/ nova/ luz/ a pris´mar/ plátanos/ tâmaras/ absintos.
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