18 de nov. de 2025


MACAO MORREU: NÃO

MAIS TEMPOS ETÍLICOS

 

Soube na tarde de ontem da morte do compositor Jards Macalé (Rio, 03.03.1943– Rio, 17.11.2025). Triste. Macao, o multiartista irreverente, sempre bem-humorado. Mais um dos grandes que se vai: grande músico, grande violonista, grande figura.Sua agilidade no violão sempre me lembrou Baden Powell. Fomos amigos à distância:às vezes nos falávamos no zap, às vezes nos trombávamos em eventuais idas minhas ao Rio. A última vez que nos vimos foi há dois anos, numa tarde do Leme, na velha Fiorentina. Mais uma vez combinamos de ele voltar a Cataguases para um show: “Verde! A revista Verde: quero voltar lá, Ronaldo”. Não rolou. E agora não rola mais.A seguir, em homenagem ao amigo Macao, republico uma crônica de meu livro “Há Controvérsias 2” sobre sua meteórica e etílica passagem por Cataguases numa noite de 1981. Eram tempos etílicos, com direito a uma piada engasgada de minha parte, ao frango com quiabo da mamãe, a todos os álcoois e a um inacreditável show vespertino de Macalé, aplaudidíssimo num Edgard Cine-Teatro totalmente lotado.

 

ERAM TEMPOS ETÍLICOS

Eram tempos etílicos e super-herói não tinha dono. Quer dizer, no Pasquim tinha, pois só o Ziraldo podia fazer cartuns com os pobres dos super-coitados. Piada também não: não tinha, não tem dono, autor, autoria. Mas essa tem, pelo menos essa envolvendo super-heróis, que vai ao final desta crônica piada-crônica, se é que conseguimos lá chegar. Era nos finalmentes de 1981, meados de dezembro, Uma noite de sexta-feira, quente a mais não poder, e eu acabara de chegar a Cataguases.

Eram tempos etílicos. Na copa, ora veja, papai cerveja bebia: pois-ora-pois – poeta concreto não rima, ou rimaria? Bebia papai e pela tevê ou/via o Flamengo jogar em Tóquio contra o super & power team do Liverpool: final da Copa dos Campeões, ou coisa que o valha. Na copa, da casa e dos campeões, fiquei a ver o Mengão com papai – umas cervejas a estibordo, que eram tempos etílicos. Nosso centroavante Nunes (quem?), sempre muito bem servido pela magia dos passes de mestre Zico, mandou três vezes a bola pras redes do Liverpool. E pool e pronto: É campeão!

Eram tempos etílicos e estivais. Pois é, no calor da vitória do Mengão, calorão de Cataguáis, calor demais. Duas da matina na Rua Dr. Sobral: mal acabara a pugna (gente, “impugna” essa, por favor!), três flamenguistas pelotas na rede inglesa (ou japonesa?), e eu meio mamado beijei papai, entrei no carro e me (des)mandei noite adentrafora. Eram tempos etílicos, muitas cervejas havia e de lei seca ninguém sabia.

 

O violão no Pelotas

Eram tempos etílicos e semoventes: ainda adernando aportei no Pelotas, a madrugada ao longe. Ah, o Pelotas! Era referência máxima, mesmo porque única, nas noitadas cataguasenses de então – antecessor do Bar do Quim (o “BoteQuim”, como eu o denominei um dia-noite), e depois do Bar da Loura, brava resistência da madrugada. Aliás, não era pra menos: o dono era o próprio Quin, e no Pelotas a noite corria sempre matreira, que nem as flamenguistas pelotas cravadas no Liverpool.

Eram tempos etílicos e uísque. Eis que (isto é, “uís-quê”), adentrando o chamado recinto, ouço um violão endiabrado, som que surgia das mãos de um cara de costas para a porta principal, muito à vontade dentro de uma camisa do Flamengo. Som e voz, uma voz e um som conhecidos, mas que eu não podia acreditar que ali estivessem, que aquele cara ali estava, violão e voz varando a varanda: “No cinto de utilidades as verdades/ Deus ajuda/ A quem cedo  madruga em Gotham City”.



Eram tempos etílicos, às vezes dentro, às vezes fora da melodia. Mesmo assim meus ouvidos estavam antenados. Não dava pra acreditar, mas quem arrasava nas Pelotas – e dentro de uma camisa do Mengão! – era mesmo Jards Macalé, o próprio Macao: “Cuidado! Há um morcego na porta principal/ Cuidado! Há um abismo na porta principal”. Entrei logo no embalo, soltando também meu desafinado canto “cata-noite”: “No céu de Gotham City há um sinal/ Sistema elétrico e nervoso contra o mal/ Tem um sambinha, tem axé, tem carnaval/ Todos estão dormindo em Gotham City/ Cuidado! Há um morcego na porta principal”.

Eram tempos etílicos. E de rogado não se fez Macalé: qualé? Três garrafas à frente já éramos amigos de infância e eu tentava contar uma piada que bolara dias antes (sim, piada às vezes tem dono): como cenário, claro, a própria Gotham City. Sacumé: uma coisa leva à outra, né seu zemané? Pelo menos, eu achava, pois esqueci a piada nem bem comecei a contar. Engraçado que a partir de então, e por várias vezes, ouvi minha piada contada por outrem, “outrens”, com uns tantos trens a mais, ou a menos. Nunca ousei dizer que havia criado a dita cuja. Piada é piada ter dono.

 

Hotel das Estrelas

 Era então em pleno calor de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1981, e estava eu com o agora meu amigo Macao/ Jards Macalé no Pelotas, famigerado botequim da noite de Cataguases. Eram tempos etílicos, e eu me esquecera do final de uma piada recém-criada. Exatamente aquela passada em Gotham City, que eu acabara de inventar. Meio que engasguei, dei um trago, uma talagada e mudei “rapimente” de assunto. Pedi logo pro Macao cantar Hotel das Estrelas, sua canção com letra de Duda Machado, minha predileta entre todas as suas: “Estrela vulgar a vagar/ Rio e também posso chorar”.

Manda de lá Macao: “Não preparei Hotel das Estrelas, fica difícil pra tirar assim, na hora”. Não sei se já falei, mas Macalé estava em Cataguases prum show para estudantes que iria fazer no Edgar Cine-Teatro no dia seguinte, às três da tarde. Nunca entendi o porquê desse estranho horário, mas eram tempos etílicos, vocês bem sabem. E Hotel das Estrelas não estava no programa. “Pena”, falei. “Mas, se você terminar a piada, eu tento”, rebateu Macao – irônico e de (bate)pronto.  Qual o quê! A piada não evoluía. Sabia que tinha o Batman, o Robin, o Coringa, também o Super-Homem. Mas, e daí?




Pelas ruas o que se via

O que acontecia, o que gotejava pelas góticas paredes de Gotham City? Só de birra, tomamos mais quatro ou cinco birras, alguns steinhaggers pra equilibrar e, como apoio estratégico, uma cachaça diabólica sacada das profundezas pelotais. Eram realmente etílicos os tempos.  Dali, embrenhados na madrugada, cabeças girando, rodamos por uma Cataguases que por nós também rodava (“dessa janela sozinho/ olhar a cidade me acalma”). E foram ainda muitas birras-cervejas e foram muitos tragos e talagadas outras, e foram muitos monumentos e Bolonha e Bruno Giorgi e Djanira e Marcier e Portinari e foi muito Colégio de Cataguases e Niemeyer e Burle Marx e Francisco Inácio Peixoto, e foi muito cinema e Humberto Mauro, e foi muito, muito Rosário Fusco & todos os rapazes da Verde – que o Macalé queria saber de tudo um muito.

De manhã, pra lá de insones, acabamos na Rua Dr. Sobral – começo e fim: carpe diem. E lá nos metemos devidamente altos e “fogueiros” num disputadíssimo jogo de sinuca nos fundos do Armazém do Sachetto. Isso antes de arribarmos à casa do papai, logo adiante, e enfrentarmos galhardamente o frango com quiabo da mamãe, com o estratégico apoio de brahmas tantas & batidas quetais. Abatido o imbatível frango da Dona Zeca – imbatíveis que éramos –, Macao & eu rumamos num só e rápido-lento plano-sequência para o Cine Edgar. E sem dar tempo ao tempo, pois – sacumé, All That Jazz – o show tinha que começar. “Uis-quê” surge inesperadamente no camarim um garrafão assim de cachacim.  O tempora! O mores!

Que tempos aqueles! Nem bem entrou no palco – o Edgard Cine-Teatro inacreditavelmente lotado naquela tarde de sábado –, Macao mandou de lá: “Estou adorando Cataguases. Desde ontem à noite o poeta Ronaldo Werneck vem me mostrando sua cidade, falando de seus artistas e me pedindo a cada minuto que cantasse pra ele minha canção Hotel das Estrelas. Acontece que ela não está no programa deste show. Mas disse ao poeta que cantaria se ele terminasse de contar a piada sobre Gotham City, que ele diz ter feito e está tentando se lembrar desde esta madrugada. Convido então ao palco o Ronaldo Werneck pra abrir com sua piada o nosso show.”. Não sei bem como adentrei aquele palco, pois Macao não disse que iria me chamar. A voz pastosa, num sem-graça daqueles, enfrento a plateia e dou partida à parte que não fazia parte do meu show. Nem do Macalé.

“Um dia, lá de Gotham City, Batman pede um help pro Superman: ‘Venha logo, estou sozinho aqui e o Coringa tá botando pra quebrar, já ganhou todas as ruas. O Robin? Ora, o Robin! Ele está lá na esquina, fazendo não sei o quê com os garotos. Você sabe, o Robin não tem mais jeito. Venha logo, Superman!’. Não teve dúvidas o Homem de Aço, que logo se mandou de sua Super Caverna, de sua Super Metrópolis. E super voando a toda, super veloz, senhor de todos os super poderes, chispou Superman pra Gotham City. Eis que (pausa). Eis que (pausa maior).

“Acho que esse “eis que” – continuei a falar, de frente para a plateia –, que me lembra “uís-quê”, é mesmo o melhor da minha piada. Não me lembro do resto. Vou pro camarim, volto pro meu “uís-quê”, e deixo vocês com Jards Macalé. E sem Hotel das Estrelas: “no fundo do peito esse fruto/ apodrecendo a cada dentada”. Mal/dito e bem/feito. “Me mandei-me” do palco (sob imprevisíveis aplausos) e deixei o show pro Macao, que isso era mesmo função dele.

 



Uisquê: no Amarelinho

 

Corta pra seis meses depois: Rio de Janeiro. Meio da tarde no Amarelinho da Cinelândia. Dou de cara com Macalé & alguns chopes. Ele já tinha contado toda essa “nossa história” na coluna que assinava na Folha de São Paulo. Faltava a piada. “Senta aqui, meu poeta: pega um chope e conta a piada: o que houve com nossos super-herois?”. Dois chopes e um “stein” depois, “uis-quê” saiu a piada.

Assim: “Superman só chegou a Gotham City tempos depois. Batman reclamou: ‘Mas o que houve? Agora já prendi o Coringa, Gotham City está calminha – o Robin, como sempre, na esquina com seus garotos. Enfim, o que houve?´. Num sem jeito sem fim, manda de lá o Superman: ‘Cê nem imagina. Vinha a toda pra Gotham City, meus super poderes super super. Vai que ao sobrevoar uma cobertura meu super olhar de raio X dá com a Mulher Maravilha tomando banho de sol em pelo (amor de Zeus!). Uis-quê, com meu super tesão a toda, não deu outra. Ou deu, porque dei um super rasante Mulher Maravilha adentro – e crau!’. Batman exclama atônito: ‘Nossa, coitada da Mulher Maravilha!’. Superman super-super rápido: ‘Não, meu chapa: coitado é do Homem Invisível!”. 

Eram tempos etílicos. Lembro disso agora porque Maria Alcina me ligou há poucos dias: andou fazendo show com Macalé e ele me mandou um abraço daqueles. Outro procê, Macao. E também porque acaba de estrear no Rio um filme sobre meu amigo, “Um Morcego na Porta Principal”. A julgar pelo trailler na internet, o filme “desafina o coro do contentes”, como naquela canção que ele fez com o Torquato. Bem Macalé. Como tam/bém Macalé é o Hotel das Estrelas, disponível no youtube, com a “levada” (do breque & da breca) tropicalista da Gal Costa:  “Mas tenho os olhos tranquilos/ De quem sabe seu preço/ Essa medalha de prata/ Foi presente de uma amiga/ Sobre um pátio abandonado/ Hey, hey, hey mãe isso faz muito tempo”. Sim, faz muito e muito não-etílicos tempos sem uis-quê & Macao & Gotham City. E agora nunca mais.

In Há Controvérsias 2, 2011

2 comentários:

Anônimo disse...

Maravilha, poeta. No início deste ano ou no final do anterior te mandei uma foto do Macao no antigo (?) Bar Goiaba, na Av. Astolfo Dutra, tirada por não sei quem, mas estava comigo desde a época dos festivais em Cataguases. Perdi aqui nos meus arquivos, vc q tem td, não salvou?

Anônimo disse...

Ótima cronica. Você está cada vez demais, poeta! Cataguases é Gothan City e aqui eu tenho é terei ainda quinze anos.
Viva Jards Macale!