MACAO MORREU: NÃO
MAIS TEMPOS ETÍLICOS
Soube na tarde de ontem da morte do compositor Jards Macalé (Rio, 03.03.1943– Rio, 17.11.2025). Triste. Macao, o multiartista irreverente, sempre bem-humorado. Mais um dos grandes que se vai: grande músico, grande violonista, grande figura.Sua agilidade no violão sempre me lembrou Baden Powell. Fomos amigos à distância:às vezes nos falávamos no zap, às vezes nos trombávamos em eventuais idas minhas ao Rio. A última vez que nos vimos foi há dois anos, numa tarde do Leme, na velha Fiorentina. Mais uma vez combinamos de ele voltar a Cataguases para um show: “Verde! A revista Verde: quero voltar lá, Ronaldo”. Não rolou. E agora não rola mais.A seguir, em homenagem ao amigo Macao, republico uma crônica de meu livro “Há Controvérsias 2” sobre sua meteórica e etílica passagem por Cataguases numa noite de 1981. Eram tempos etílicos, com direito a uma piada engasgada de minha parte, ao frango com quiabo da mamãe, a todos os álcoois e a um inacreditável show vespertino de Macalé, aplaudidíssimo num Edgard Cine-Teatro totalmente lotado.
ERAM TEMPOS ETÍLICOS
Eram
tempos etílicos e super-herói não tinha dono. Quer dizer, no Pasquim tinha,
pois só o Ziraldo podia fazer cartuns com os pobres dos super-coitados. Piada
também não: não tinha, não tem dono, autor, autoria. Mas essa tem, pelo menos
essa envolvendo super-heróis, que vai ao final desta crônica piada-crônica, se
é que conseguimos lá chegar. Era nos finalmentes de 1981, meados de dezembro,
Uma noite de sexta-feira, quente a mais não poder, e eu acabara de chegar a
Cataguases.
Eram
tempos etílicos. Na copa, ora veja, papai cerveja bebia: pois-ora-pois – poeta
concreto não rima, ou rimaria? Bebia papai e pela tevê ou/via o Flamengo jogar
em Tóquio contra o super & power team do Liverpool: final da Copa dos
Campeões, ou coisa que o valha. Na copa, da casa e dos campeões, fiquei a ver o
Mengão com papai – umas cervejas a estibordo, que eram tempos etílicos. Nosso
centroavante Nunes (quem?), sempre muito bem servido pela magia dos passes de
mestre Zico, mandou três vezes a bola pras redes do Liverpool. E pool e pronto:
É campeão!
Eram
tempos etílicos e estivais. Pois é, no calor da vitória do Mengão, calorão de
Cataguáis, calor demais. Duas da matina na Rua Dr. Sobral: mal acabara a pugna
(gente, “impugna” essa, por favor!), três flamenguistas pelotas na rede inglesa
(ou japonesa?), e eu meio mamado beijei papai, entrei no carro e me (des)mandei
noite adentrafora. Eram tempos etílicos, muitas cervejas havia e de lei seca
ninguém sabia.
O violão no Pelotas
Eram
tempos etílicos e semoventes: ainda adernando aportei no Pelotas, a madrugada
ao longe. Ah, o Pelotas! Era referência máxima, mesmo porque única, nas
noitadas cataguasenses de então – antecessor do Bar do Quim (o “BoteQuim”, como
eu o denominei um dia-noite), e depois do Bar da Loura, brava resistência da
madrugada. Aliás, não era pra menos: o dono era o próprio Quin, e no Pelotas a
noite corria sempre matreira, que nem as flamenguistas pelotas cravadas no
Liverpool.
Eram
tempos etílicos e uísque. Eis que (isto é, “uís-quê”), adentrando o chamado
recinto, ouço um violão endiabrado, som que surgia das mãos de um cara de
costas para a porta principal, muito à vontade dentro de uma camisa do
Flamengo. Som e voz, uma voz e um som conhecidos, mas que eu não podia
acreditar que ali estivessem, que aquele cara ali estava, violão e voz varando
a varanda: “No cinto de utilidades
as verdades/ Deus ajuda/ A quem cedo
madruga em Gotham City”.
Eram
tempos etílicos, às vezes dentro, às vezes fora da melodia. Mesmo assim meus
ouvidos estavam antenados. Não dava pra acreditar, mas quem arrasava nas
Pelotas – e dentro de uma camisa do Mengão! – era mesmo Jards Macalé, o próprio
Macao: “Cuidado! Há um morcego na porta principal/ Cuidado!
Há um abismo na porta principal”. Entrei logo no embalo, soltando também meu
desafinado canto “cata-noite”: “No céu de Gotham City há um sinal/ Sistema
elétrico e nervoso contra o mal/ Tem um sambinha, tem axé, tem carnaval/ Todos
estão dormindo em Gotham City/ Cuidado! Há um morcego na porta principal”.
Eram tempos
etílicos. E de rogado não se fez Macalé: qualé? Três garrafas à frente já
éramos amigos de infância e eu tentava contar uma piada que bolara dias antes
(sim, piada às vezes tem dono): como cenário, claro, a própria Gotham City.
Sacumé: uma coisa leva à outra, né seu zemané? Pelo menos, eu achava, pois
esqueci a piada nem bem comecei a contar. Engraçado que a partir de então, e
por várias vezes, ouvi minha piada contada por outrem, “outrens”, com uns
tantos trens a mais, ou a menos. Nunca ousei dizer que havia criado a dita
cuja. Piada é piada ter dono.
Hotel das Estrelas
Era então em pleno calor de uma sexta-feira, 13 de
dezembro de 1981, e estava eu com o agora meu amigo Macao/ Jards Macalé no
Pelotas, famigerado botequim da noite de Cataguases. Eram tempos etílicos, e eu
me esquecera do final de uma piada recém-criada. Exatamente aquela passada em
Gotham City, que eu acabara de inventar. Meio que engasguei, dei um trago, uma
talagada e mudei “rapimente” de assunto. Pedi logo pro Macao cantar Hotel das Estrelas, sua canção com letra
de Duda Machado, minha predileta entre todas as suas: “Estrela vulgar a vagar/
Rio e também posso chorar”.
Manda de lá Macao: “Não preparei Hotel das Estrelas, fica difícil pra
tirar assim, na hora”. Não sei se já falei, mas Macalé estava em Cataguases
prum show para estudantes que iria fazer no Edgar Cine-Teatro no dia seguinte,
às três da tarde. Nunca entendi o porquê desse estranho horário, mas eram
tempos etílicos, vocês bem sabem. E Hotel
das Estrelas não estava no programa. “Pena”, falei. “Mas, se você terminar
a piada, eu tento”, rebateu Macao – irônico e de (bate)pronto. Qual o quê! A piada não evoluía. Sabia que
tinha o Batman, o Robin, o Coringa, também o Super-Homem. Mas, e daí?
Pelas
ruas o que se via
O que acontecia, o que gotejava pelas góticas paredes de Gotham City? Só de birra, tomamos mais quatro ou cinco birras, alguns steinhaggers pra equilibrar e, como apoio estratégico, uma cachaça diabólica sacada das profundezas pelotais. Eram realmente etílicos os tempos. Dali, embrenhados na madrugada, cabeças girando, rodamos por uma Cataguases que por nós também rodava (“dessa janela sozinho/ olhar a cidade me acalma”). E foram ainda muitas birras-cervejas e foram muitos tragos e talagadas outras, e foram muitos monumentos e Bolonha e Bruno Giorgi e Djanira e Marcier e Portinari e foi muito Colégio de Cataguases e Niemeyer e Burle Marx e Francisco Inácio Peixoto, e foi muito cinema e Humberto Mauro, e foi muito, muito Rosário Fusco & todos os rapazes da Verde – que o Macalé queria saber de tudo um muito.
De manhã, pra lá de insones, acabamos na Rua Dr.
Sobral – começo e fim: carpe diem. E lá nos metemos devidamente altos e
“fogueiros” num disputadíssimo jogo de sinuca nos fundos do Armazém do
Sachetto. Isso antes de arribarmos à casa do papai, logo adiante, e
enfrentarmos galhardamente o frango com quiabo da mamãe, com o estratégico
apoio de brahmas tantas & batidas quetais. Abatido o imbatível frango da
Dona Zeca – imbatíveis que éramos –, Macao & eu rumamos num só e
rápido-lento plano-sequência para o Cine Edgar. E sem dar tempo ao tempo, pois
– sacumé, All That Jazz – o show
tinha que começar. “Uis-quê” surge inesperadamente no camarim um garrafão assim
de cachacim. O tempora! O mores!
Que tempos aqueles! Nem bem entrou no palco – o Edgard
Cine-Teatro inacreditavelmente lotado naquela tarde de sábado –, Macao mandou
de lá: “Estou adorando Cataguases. Desde ontem à noite o poeta Ronaldo Werneck
vem me mostrando sua cidade, falando de seus artistas e me pedindo a cada
minuto que cantasse pra ele minha canção Hotel
das Estrelas. Acontece que ela não está no programa deste show. Mas disse
ao poeta que cantaria se ele terminasse de contar a piada sobre Gotham City,
que ele diz ter feito e está tentando se lembrar desde esta madrugada. Convido
então ao palco o Ronaldo Werneck pra abrir com sua piada o nosso show.”. Não
sei bem como adentrei aquele palco, pois Macao não disse que iria me chamar. A
voz pastosa, num sem-graça daqueles, enfrento a plateia e dou partida à parte
que não fazia parte do meu show. Nem do Macalé.
“Um dia, lá de Gotham City, Batman pede um help pro
Superman: ‘Venha logo, estou sozinho aqui e o Coringa tá botando pra quebrar,
já ganhou todas as ruas. O Robin? Ora, o Robin! Ele está lá na esquina, fazendo
não sei o quê com os garotos. Você sabe, o Robin não tem mais jeito. Venha
logo, Superman!’. Não teve dúvidas o Homem de Aço, que logo se mandou de sua
Super Caverna, de sua Super Metrópolis. E super voando a toda, super veloz,
senhor de todos os super poderes, chispou Superman pra Gotham City. Eis que
(pausa). Eis que (pausa maior).
“Acho que esse “eis que” – continuei a falar, de
frente para a plateia –, que me lembra “uís-quê”, é mesmo o melhor da minha
piada. Não me lembro do resto. Vou pro camarim, volto pro meu “uís-quê”, e
deixo vocês com Jards Macalé. E sem Hotel
das Estrelas: “no fundo do peito esse fruto/ apodrecendo a cada dentada”.
Mal/dito e bem/feito. “Me mandei-me” do palco (sob imprevisíveis aplausos) e
deixei o show pro Macao, que isso era mesmo função dele.
Uisquê:
no Amarelinho
Corta pra seis meses depois: Rio de Janeiro. Meio
da tarde no Amarelinho da Cinelândia. Dou de cara com Macalé & alguns
chopes. Ele já tinha contado toda essa “nossa história” na coluna que assinava
na Folha de São Paulo. Faltava a piada. “Senta aqui, meu poeta: pega um chope e
conta a piada: o que houve com nossos super-herois?”. Dois chopes e um “stein”
depois, “uis-quê” saiu a piada.
Assim: “Superman só chegou a Gotham City tempos
depois. Batman reclamou: ‘Mas o que houve? Agora já prendi o Coringa, Gotham
City está calminha – o Robin, como sempre, na esquina com seus garotos. Enfim,
o que houve?´. Num sem jeito sem fim, manda de lá o Superman: ‘Cê nem imagina.
Vinha a toda pra Gotham City, meus super poderes super super. Vai que ao sobrevoar
uma cobertura meu super olhar de raio X dá com a Mulher Maravilha tomando banho
de sol em pelo (amor de Zeus!). Uis-quê, com meu super tesão a toda, não deu
outra. Ou deu, porque dei um super rasante Mulher Maravilha adentro – e crau!’.
Batman exclama atônito: ‘Nossa, coitada da Mulher Maravilha!’. Superman
super-super rápido: ‘Não, meu chapa: coitado é do Homem Invisível!”.
Eram tempos etílicos. Lembro disso agora porque
Maria Alcina me ligou há poucos dias: andou fazendo show com Macalé e ele me
mandou um abraço daqueles. Outro procê, Macao. E também porque acaba de estrear
no Rio um filme sobre meu amigo, “Um Morcego na Porta Principal”. A julgar pelo
trailler na internet, o filme “desafina o coro do contentes”, como naquela
canção que ele fez com o Torquato. Bem Macalé. Como tam/bém Macalé é o Hotel das Estrelas, disponível no
youtube, com a “levada” (do breque & da breca) tropicalista da Gal
Costa: “Mas tenho
os olhos tranquilos/ De quem sabe seu preço/ Essa medalha de prata/ Foi
presente de uma amiga/ Sobre um pátio abandonado/ Hey, hey, hey mãe isso faz
muito tempo”. Sim, faz muito e muito não-etílicos tempos sem uis-quê &
Macao & Gotham City. E agora nunca mais.
In Há Controvérsias
2, 2011




2 comentários:
Maravilha, poeta. No início deste ano ou no final do anterior te mandei uma foto do Macao no antigo (?) Bar Goiaba, na Av. Astolfo Dutra, tirada por não sei quem, mas estava comigo desde a época dos festivais em Cataguases. Perdi aqui nos meus arquivos, vc q tem td, não salvou?
Ótima cronica. Você está cada vez demais, poeta! Cataguases é Gothan City e aqui eu tenho é terei ainda quinze anos.
Viva Jards Macale!
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