11 de set. de 2023

A Cataguases de Lina Tâmega Peixoto

 

                        Gotas de asa revoam
                        no manso curso do rio Pomba
                        como afluentes do pássaro.
                        Da janela veem-se
                        os peixes mordendo o azul
                        escorregado no fundo do céu.
                       O que se vê é a metade do mundo
                       debruçado no peitoril da janela.
                       A outra metade. Não há.
                       Lina Tâmega Peixoto/ “Cataguases”


     Mineira de Cataguases e habitante de Brasília desde os primórdios de sua construção, a professora universitária e ensaísta Lina Tâmega Peixoto (Cataguases, 5 de junho de 1931 – Brasília, 1 de setembro de 2020) é poeta de longo curso, e das grandes. Cidadã do mundo, profundamente marcada por suas raízes portuguesas, na verdade ela nunca se desprendeu totalmente do mundo-Cataguases. Seu tio, o escritor Francisco Inácio Peixoto, um dos ases da revista Verde, disse certa vez: "Vivo em Cataguases fora de Cataguases". 

     Já Lina, que tinha o tio como um de seus mestres desde quando escreveu seus primeiros versos, foi na direção inversa: "Ser mineira de Cataguases é o que não me faz ser estrangeira em Brasília, é o que me faz ser habitante de qualquer rua do mundo e nunca ser traída no meu jeito de viver”. Ela morou na Capital Federal desde antes da fundação da cidade: seu marido era engenheiro e foram para o Planalto Central ainda nos anos 1950. Mas nunca se esqueceu de Cataguases. Voltava à cidade sempre que possível. Há exatos dois anos, setembro de 2020 em Brasília, foi levada pela pandemia. 


Moderna que nem ela


Francisco Inácio Peixoto em seu escritório. 

      Cataguases! Cataguases!/ um barco no rio Pomba/ e uma menina que pesca/ nas águas a própria sombra – escrevia Cecília Meireles quando esteve em Cataguases em 1951, no poema Quadro a quadro, dedicado à sua amiga Lina Tâmega Peixoto. Antenada na modernidade. Tratando-se de Cataguases, não é apenas uma expressão a mais. Desde os anos 1940, a cidade passou a “respirar o moderno” por todas as suas ruas. Prédios, esculturas, monumentos – tudo, quase tudo hoje tombado nessa cidade que é um monumento vivo do modernismo no interior do país. Aquela casa “esquisita”? Ali morou aquele “poeta moderno”, Francisco Inácio Peixoto, um dos fundadores da revista Verde, a principal vertente do movimento modernista de 22 no interior de Minas, com conexões em todo o Brasil e até mesmo no exterior. 
      O mesmo Chico Peixoto que, em 1940, vai chamar Oscar Niemeyer para projetar sua casa – a primeira de fatura moderna na cidade e uma das obras iniciais do jovem arquiteto. Nela, jardins de Burle Marx, escultura de Jan Zach e de José Pedrosa. E, em seu interior, mobiliado por Joaquim Tenreiro, telas de vários expoentes do modernismo, daqui e do exterior. Niemeyer seria “convocado” também, em 1947, para projetar o moderníssimo prédio do Colégio de Cataguases, referência do ensino secundário no Brasil dos anos 1950.
      Para melhor situar a importância de Francisco Inácio Peixoto não só para Cataguases como para a própria poesia de Lina Tâmega Peixoto, transcrevo mais à frente alguns trechos do longo texto que ela me enviou para compor a edição especial sobre Cataguases que organizei para o Suplemento Literário Minas Gerais em 2013.
     Além de Francisco Inácio Peixoto, Lina recebeu vários aconselhamentos sobre poesia de seu primo português, o crítico literário Hernâni Cidade, com quem se encontrou várias vezes em Portugal, terra de seus ancestrais. “Vi Portugal com os olhos de Hernâni Cidade”, diz ela. “Junto a ele, aprendi a buscar o equilíbrio e o prazer – estados do mundo sensível – para unir o espírito à intuição crítica reveladora. Enfim, descobri os aspectos que interpretam e constroem a poesia, impregnada de emoção e encantamento e de uma particular reflexão intelectual no emprego da linguagem”. 
   Lina esteve sempre ligada às suas raízes portuguesas na cidade de Amarante, cortada pelo rio Tâmega, onde voltou muitas vezes. E foi exatamente em Portugal que nos vimos pela última vez, em 2019, quando ela esteve presente ao lançamento de meu livro de poemas Momento Vivo em Lisboa. Mas vamos focar em sua principal influência: Francisco Inácio Peixoto (Cataguases,1909-1986), visto pela sensível escritura da poeta. 


Escritura: Lina & Chico Peixoto


No lançamento de "A Janela", autógrafo para poeta
Lina Tâmega Peixoto.

     Quando a poesia se fez um campo, onde o imaginário desvelava a realidade, em gozo e beleza, e a palavra era um desafio no transpor as experiências de vida em consciente linguagem poética, busquei a presença de Francisco Inácio Peixoto, meu tio. Foi ele o meu primeiro leitor e crítico. Cataguases, na década de quarenta, movia-se em arte, num latejar de ideias, projetos e produções de cunho artístico. Não cabe nesta narrativa enumerar a modernidade, comandada por Francisco Inácio Peixoto, no esforço e trabalho em recriar a sua cidade, pelo estimulo à construção do Colégio de Cataguases, aquisição de quadros e esculturas para compor o acervo do futuro Museu de Arte Moderna, incentivo às atividades literárias, intelectuais e estéticas dos novos escritores, cineastas, pintores, atores ou aos apaixonados pelo fazer outras formas artísticas, cerzidas pelos pespontos de desejo, de delírio e de astúcia. Sua figura avultava sobre este universo plurivalente de realizações artísticas e representava o eixo central do imaginário simbólico de Cataguases. Ainda hoje, sua memória interfere no pensamento e nas ações em que se fundamenta o contexto político da cidade, em suas múltiplas vertentes culturais.
  Devo a Francisco Inácio Peixoto meu aprendizado primeiro na construção do poema e no amadurecer as algemas da realidade. À noite, era para sua casa que me dirigia, tremendo os poemas na mão, pensando se haveria um peso excessivo nos versos, mesmo que fosse o de palha ou de nuvem. Sentava no chão, junto à espreguiçadeira, belíssima, azul e branca, obra de Tenreiro, onde meu tio se recostava, após o jantar. Entregava-lhe meus poemas manuscritos e o ouvia reclamar, sempre, da dificuldade da leitura, pelas letras, bambas e tortas. Era um longo silêncio este encontro de poesia caminhando na mão inquieta de meu tio que, às vezes acompanhada de murmúrios, esmagava com o dedo uma vírgula caída de mau jeito, tocava a palavra contraditória e ingênua ou apontava a sintaxe dúbia. E depois, vinha a voz, com cruel doçura, me dizer que, apesar destes cascalhos, o poema tinha um certo frescor e secreta substância onírica, e, portanto, era bom. 
   Era com este adjetivo que expressava sua aprovação. Ao escutar o veredito, ultrapassava o tempo, pulava as cercas da escuridão e me entupia de alegria e emoção. Em outras ocasiões, me aconselhava a guardar o poema na pasta. E isto, para mim, apontava o descuidado ajuste da inteligência criadora e a vulgarização da beleza, sensações que me causavam ansiedade e dúvidas. Explicava-me que esquecer o escrito representava o necessário distanciamento para que, posteriormente, pudesse olhar os versos como um objeto a ser reconstruído pela linguagem em sua plenitude de sedução. Relembro seu jeito de inclinar a cabeça sobre o papel e o bigode costurado em cima da boca pelo reflexo da luz que vinha do spot no teto. Mostrava-se atento às minhas inquietações em lidar com o exercício difícil da construção do poema que exigia rupturas, cortes, remendos até que, reconstruído pelo espírito criador, se firmasse na página, em equilíbrio e silêncio. Suas palavras reforçavam ser necessário o conhecimento das forças estilísticas e estruturais da linguagem, a fim de receber o pensamento poético, mais rico e elaborado em suas imagens e signos. 

   Eu conhecia sua importante participação no movimento modernista brasileiro com a publicação de Verde e havia lido muito de sua rica e expressiva produção literária. Avulta sobre tudo isto a ressonância do afeto de meu tio, o familiar aconchego à emoção estética, em exigir de mim o que estava confinado, em crepuscular promessa, para se romper em arrebatamento poético. É com o coração que escrevo sobre sua presença em minha vida familiar e literária. Dou a ele meus quinze anos de idade com suas estranhas e impetuosas imagens, nascidas das experiências da infância e a elas acrescento muitos anos no alcance do lento e sofrido aprendizado da literatura. Agradeço a meu tio, Francisco Inácio Peixoto, ter-me ensinado a transformar as formas nebulosas de minha expressão poética em nítidas estrelas. Quando publiquei meu primeiro livro, recebi dele uma carta, onde dizia: “Sempre gostei de sua poesia, onde encontro uma linguagem mágica que me enternece. Desde os vagidos iniciais, você nunca me desmereceu.”.

     Recebi de Rosário Fusco – com quem, anos mais tarde conversava sobre o ofício de escrever e sobre o papel que Cataguases devia reassumir no campo da literatura brasileira – do mesmo modo que de outros escritores, como o do meu primo Hernâni Cidade –, estímulos e conselhos para o exercício de escrever. Acrescento a esta breve menção histórica o nome de Marques Rebelo. Ele incentivou o meu sonho e o de Francisco Marcelo Cabral em editar uma revista literária, o que se concretizou nos anos 1948-1949, com Meia Pataca. Seu apoio se fez tão essencial e relevante, que sem ele teria sido quase impossível existir a revista. 


Lina e Meia Pataca por Chico Cabral


Rio, 2009: RW, Lina & Chico Cabral.
Livraria da Travessa-Ipanema.


      Em 1948, oscilando entre os 17 anos dela e os 18 dele, Lina Tâmega Peixoto e o poeta Francisco Marcelo Cabral (Cataguases, 1930 – Rio, 2014) lançam em Cataguases a revista Meia Pataca. Nos tópicos a seguir, um depoimento de Chico Cabral (o “Cabruxa”, como Lina o chamava), nosso grande amigo, sobre Meia Pataca.

      Não tenho nenhum exemplar à mão. Mas foi uma bela revista, impressa em papel couché, que serviu de berço a dois poetas: Lina Tâmega Peixoto e eu, nesta ordem de importância. Mas é preciso que se diga: Meia Pataca inteira foi obra da Lina. Era ela que, além do parentesco ilustre – Peixoto, ilustre por causa do Francisco Inácio – tinha a verdadeira vocação das letras, tão consistentemente confirmada depois. Digo mesmo – e disse-o em meu poema-livro Inexílio (Imprinta Editora, Rio, 1979) – Lina foi minha mestra. Sua escritura sutil, sua sensibilidade irredutível às platitudes do discurso trivial, marcaram para mim a extensão e as fronteiras do território em que viceja o poema – essa infração, essa refração, essa contínua derrapagem nas estradas do idioma, esse artefato como todos inútil, mas capaz de deflagrar a centelha da desbanalização e reavivar a fala e suas falsetas. 
     E sem metáforas: Meia Pataca inteira foi obra da Lina. Edição, diagramação (com umas dicas do Rosário Fusco), secretaria, redação de sueltos e resenhas, enfim, ela estava em todas. Eu fui o bói da redação e fiz algumas resenhas por ordem dela. À nossa volta, torcendo para que déssemos certo: Marques Rebelo e Fusco (em cuja casa conheci Antônio Fraga, de quem obtive o fragmento publicado num dos números de Meia Pataca, o velho Fraga que, antes de qualquer outro, me falou de Gomringer e seu Kindgarden – concretismo avant la lettre – a revelação de uma nova concepção estética que só muito depois assimilei. Uma colaboração de Marques Rebelo – transcrevendo um trecho de Verlaine em que ressalta a técnica de composição nas alterações introduzidas no texto – foi para mim a evidência de que o poema é um construto passível de aprimoramento, como eu percebia em Manuel Bandeira e Murilo Mendes (quando “ainda não havia para mim” João Cabral de Melo Neto).


     O ninho de Meia Pataca foi a casa de Francisco Inácio Peixoto, melhor dizendo o seu “salão” onde resplandecia, ao lado do dono da casa, o gênio carioca de Marques Rebelo (cuja amizade sempre me honrou e durou até sua morte) e que foi frequentado por gente como Walter Benevides, João Cabral de Melo Neto, José Morais, Luciano Maurício, Cecília Meireles e tantos mais. As duas figurinhas de jovens poetas – Lina e eu – vamos reconhecer: talentosos ou, pelo menos, promissores – despertaram a solidariedade desse grupo de intelectuais que andava pela casa dos 40 ou 50 anos, talvez menos. 

   E foi assim que nasceu a revista, extremamente cuidada graficamente, sem qualquer “agressividade” de gente jovem. Sem qualquer malícia na seleção das colaborações que nos chegaram, Lina e eu fomos os melhores poetas publicados por Meia Pataca. Quem quiser que confira. E assim como o salão de Francisco Inácio Peixoto gerou Meia Pataca, gerou O Centauro, edição de 1.000 exemplares (que eu levei anos e anos para esgotar sob a forma de presente compulsório), composto e impresso na Tipografia Ribeiro, em 1949, para a inexistente Editora Meia Pataca (leia-se Edição (do Pai) do Autor). E o livro de Lina, Algum Dia, editado lindamente em 1952 pela Editora Hipocampo, do poeta Thiago de Melo, e de que eu infelizmente não tenho nenhum exemplar. Lina e eu construímos uma obra pequena (Guimarães Rosa me chamava de “escasso producente”, com amizade e cobrança). Pelo prazer e por compromisso intelectual, Lina é uma leitura obrigatória.

     Tantas Linas! De muitas maneiras se podem ler seus poemas! De muitas maneiras se pode neles viajar, numa visitação impregnada da volúpia essencial, que só bons poemas nos concedem desfrutar, como se a alma movediça do poeta nos invadisse com suas mentiras de ouro e sal, e com a força de sedução e perdição dos vícios. Lina nasce, também como poeta, em Cataguases, respira Amarante e Brasília, para afinal confessar com dura tristeza e certa dose de perdão: “Como bicho assustado/ cravo os dentes no ar/ e embruteço minha ternura/ para viver no desencontro/ de qualquer lugar/ Brasília ou Cataguases/ – a mesma encruzilhada de amor/ a mesma teia emaranhada/ de um labirinto sem saída”. 


Lina respira poesia



     

     No prefácio de seu livro de poemas, Alinhavos do tempo (Tagore Editora, Brasília, 2018), Lina Tâmega Peixoto diz naquela linguagem toda sua, como sempre plena de delicadezas e metáforas bem encontradas: “Penso expor à claridade de que forma, única e particular, as experiências da infância se firmaram como elementos construtores de meu processo criativo. As lembranças distanciam-se da solidão para que eu saiba onde me encontro. (...) Preciso envelhecer o presente para recriar as coisas que se escondem dentro de mim e que resistem às delicadas sutilezas da imaginação, no fazer-se obra literária. No caminho que se estreita, Piso descalça histórias envelhecidas/ no ranger de tábuas”. (...) No entreabrir os horizontes sem-fim de Brasília, chego às montanhas de Cataguases, cidade onde nasci e morei por longos anos”. 

   É ainda nesse prefácio que Lina cita Walter Benjamin: “para o poeta, rememorar a vida se torna mais importante e essencial do que a vida que se viveu”. E escreve: “Há um tempo dimensionado entre mim e minha infância, um tempo que decomponho, com ambígua e alegre disciplina amorosa. Desse modo, Engendro ruídos do acaso, labirinto de mitos,/ geografia da carne, remendos da infância e reduzo a distância de antes e a de agora/ para cerzir o nosso tempo/ à superfície do abandono”. Cerzir o nosso tempo. Pedra de toque, a metáfora é pura Lina. Costureira de palavras, ela vai alinhavando suas metáforas linha por Lina, Lina por linha, com grande e insuperável mestria.


Cataguases, 2019: lançamento de “Alinhavos do tempo”.
 

      Foi esse Alinhavos do tempo, seu derradeiro livro, que aportou aqui em casa em dezembro de 2018 – na Cataguases margeada pelo Pomba, rio tão caro a mim quanto à minha amiga poeta. E, como sempre, trazendo a sutileza das metáforas tão características até mesmo em suas dedicatórias: “Para o querido amigo Ronaldo, os ruídos do coração que alinhavam o abraço de admiração e amizade que leva estas palavras até você, Lina”. A poesia assoma em cada gesto, em cada um de seus escritos – não só na força, nos muitos punti luminosi de seus poemas, motor por excelência da poesia, mas num ensaio, numa carta, num bilhete, num email, num zap, numa postagem qualquer. “Qualquer”, palavra errada: tudo nela indica extremo zelo, cuidado, acuidade – tudo emana resplendor, halos impregnados de uma poética de grande intensidade. Lina fala, escreve, respira poesia.
      No início de 2019, quando do lançamento de Alinhavos do tempo em Cataguases, eu a levei para uma visita-surpresa à sua casa da infância na Rua do Pomba, que estava vazia, aguardando restauração. Nunca vou me esquecer de seu olhar enternecido a cada cômodo visitado. Seu marejado olhar prescindia de mãos para tocar aquelas paredes da menina que foi. O quintal debruçava-se sobre o rio Pomba, de onde avista a velha Ponte Metálica, um dos ícones de Cataguases. “Uma carcaça de estrela”: que doída imagem!


A Ponte Velha de Cataguases




     Entrevia tua figura quando descia ao fundo do quintal de minha casa na rua do Pomba. Naquela época, recém-nascida da poesia, eras uma comprida casa de grandes janelas abertas sobre ramos de cobre e espuma; um flanco com as axilas doídas pela ferrugem e fungos que fragilizavam tua forma, ou mesmo – ah, preservada visão da arte – uma carcaça de estrela, tombada do azul que o céu sustenta, a incidir sobre as águas. (...) Uma andorinha pousa na tua amurada e, iludida, fecha o voo que gotas de asa, sob teu dorso, revoam no manso curso do rio Pomba como afluentes do pássaro. 


A visita
A casa esconde-se nos desvãos de Minas
Ao olhar que a desvela.
(...)
Persiste o estilo e outros longes
Na indormida herança desta casa
Que narcisa-se em algo e água.

A casa
Volteio o corpo
e a saia abre-se em varanda.
(...)
Nas distâncias escondidas no quintal
incrustam-se lonjuras
e alguns arredores de mim.
Meu coração, ocioso e grande,
se quebra à toa
que peço à casa me carregar nos ombros.


Livros publicados: Algum dia (1953); Entretempo (1983); Dialeto do corpo (2005); Água polida (2007); 50 poemas escolhidos pelo autor (2008); Os bichos da vó (2010); Prefácio de vida (2010); Entre desertos (2013); Alinhavos do tempo (2018). 


Ronaldo Werneck
Cataguases, setembro 2023





24 de ago. de 2023

A mais nova namorada



E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 

Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Vinicius de Moraes

Estoril, outubro de 1939

 

 

 “Meu deus, o que é a morte?”, interrogava-se e nos interrogava Lúcio Cardoso pela boca de seu personagem André na abertura de seu seminal romance “Crônica da Casa Assassinada”. Quem morria era Nina, suposta mãe e amante insuspeitável de André. O câncer corroía a vida e transmutava em pus e degeneração o que fora flor e viço. Com Nina, caía de câncer a casa e todos os Meneses. Findo o romance, finda a casa e a família, a pergunta de André/Lúcio ficava sem resposta. Meu deus, o que é a morte? – perguntei-me muitos anos após a primeira leitura do romance, ao ver o cineasta Olney São Paulo, meu velho amigo baiano, definhando de câncer num leito da Beneficência Portuguesa no Rio. O corpo franzino sumia entre o lençol e mal chegava aos 40 quilos, exatos três dias antes de sumir de vez.

Meu deus, o que é a morte? É mamãe que chora no Oncológico de Juiz de Fora, mamãe que não quer pronunciar seu nome: a morte é câncer. A morte é meu querido Luiz Linhares, como mamãe perdendo a voz e a vez neste mundo. É Nando Nogueirinha, morando no andar aqui de cima, rouco-rouco que ele só e já passando em definitivo pro outro andar de cima, a garganta totalmente tomada e evitando tossir pra não me incomodar: só soube depois – e que coisa mais patética. A morte cansa, a morte é câncer. Mesmo em si não o sendo, ela é em si seu signo e significação, nosso cotidiano câncer. A morte é tia Dalila, Lilila querida, morrendo assim como quem diminui a luz – velas, brancas velas, as mãos entre as minhas, seda e celofane. As mesmas mãos logo em desalento, logo levantadas em grito, enquanto a maca some numa curva do corredor rumo à UTI – as mãos pro alto e pra nunca mais.

Meu deus, o que é a morte? É agora Teresa Cristina Mauro, a quem velo e desvelo nesta noite: “Dona Teresa, a senhora não quer abrir os olhos por quê? – Simplesmente porque meus olhos não queriam se abrir. Nem fuga, nem medo: abandono”, diria ela em “Retratos e Reflexos”, seu primeiro livro. Teresa falava de sua volta à vida na UTI, no pós-operatório de uma cirurgia de vesícula. “Ainda que eu ande pelo vale das sombras, não temerei mal algum”, escrevia ainda, citando o Salmo 22. E parecem de novo teimar em se abrir seus olhos míopes nesta noite em que é velada na capela do cemitério de Cataguases.

Meu deus, o que é a morte? Será só abandono, torpor, sonolência? “Ouvia, no aparelho, atrás de mim, a minha vida: as batidas, tão certinhas de meu coração”. Sua vida era assim mesmo, pura e plena de delicadeza: com “batidas certinhas”, bate o coração de Teresa. “O mundo não será salvo/ pela filosofia/ falsa passionária/ mas empurrado pelos séculos/ nas mesas frias dos laboratórios”, disse meu amigo Vitto Santos num velho poema dos anos 1960. Será? Não houve laboratório que salvasse Teresa, muito menos Marina, paixão de minha adolescência. Morta Marina, morta Teresa, o mesmo mal, eu sei, cansei de câncer, cansei.

Meu deus, o que é a morte? “Subir, subir e, esplendidamente, ganhar o azul, pratear-me da lua e chegar lá, de onde vim e para onde devo voltar”. Surgem assim suas palavras, junto a uma lua-mas-que-lua nesta noite em que velo Teresa: “Eu subia o morro. De repente, percebi que, para trás, ficava bem verde, onde eu passara e nada existira antes. Eu me sentia feliz como se tivesse chegado ao meu lugar, encontrado o princípio e o fim, alcançado o eixo, o ponto central do meu viver e isto me trazia vontade de dançar, cantar, de braços abertos e leves”. Uma lua-mas-que-lua era o que era. Ela é que era. Assim: “Lua me lembra Maria-Mãe, segurança, e brilho, com seu luar – o olhar – de bondade que, mansamente, convida com carinho: ´Dá-me tua mão, vem dormir e sonhar no meu colo, vem!”. Vai, tua vida, teu caminho é de paz e amor/te.

Meu deus, o que é a morte? Quem sabe, a mais nova namorada? Assim a chamava o poeta Vinicius, o mesmo desse “vai tua vida” aí de cima, a quem auxiliei com aquele “amor/te”, e que também foi com ela se encontrar. Pois é, paixão à primeira vista: “Resta esse diálogo cotidiano com a morte/ esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,/ ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ sem saber que é a minha mais nova namorada”.

 

Ronaldo Werneck

Cataguases, 04.07.2004

in Há Controvérsias 2, São Paulo, 2009




28 de mar. de 2023

“Sozinho me imortalizo mais depressa”

 

“Na linha do horizonte pendurei tua saia/ E a minha mão pegou na tua contra-mão/ À sombra de uma dúvida eu dormi na praia/ E construí meu lar na casa do botão.” São estes os versos iniciais de Amor Nonsense, primeira de uma série de canções que Juca Chaves pretende fazer, criando o movimento de Música Nonsense no Brasil. E, naturalmente, ele será o único representante, criador e criatura: “Sozinho eu me imortalizo mais depressa. Se participasse de grupos, eu ficaria sendo somente mais um deles”.

Segundo ele, a música nonsense é inspirada em Juarez Machado, criador do desenho nonsense no Brasil. Juca é amigo de Juarez há muito tempo e acha que suas músicas têm muitas afinidades com o tipo de desenho feito por ele:  “Juarez desenha, por exemplo, muitos arcos-íris – e arco-íris é uma palavra que sempre cantei em minhas músicas. Apresentar Amor Nonsense na televisão é o próprio nonsense.

     Furo de jornal


Embora o nonsense  tenha surgido através de movimentos bem antigos, como o Surrealismo e o Dada, do princípio do século, a novidade trazida por Juca é que é a primeira vez que o nonsense é veiculado através da música. A melodia é uma marchinha e a jogada mesmo é na letra, que – embora sendo toda rimada e feita em falsos  dodecassílabos, de pés totalmente quebrados – no fundo não tem (e está e a intenção básica) o mínimo sentido.

O nonsense nasce da surpresa, da associação inesperada de palavras, que acaba produzindo efeitos de grande humor, como por exemplo nesses versos da música: “Levei meu olho mágico prum oculista/ do teu ponto de vista fiz ponto final/ no rabo do foguete eu encontrei tua pista/ e enchi de novidade o furo do jornal”.

E esse tipo de música só poderia partir mesmo do humor ferino de Juca Chaves, que define o nonsense como “uma maneira de não se dizer nada muito mais sabiamente do que se tem dito”.

Um clássico

     Quando comento sobre suas letras serem rimadas e (às vezes) metrificadas, Juca faz blague e solta uma de suas boutades:

– Eu mantenho uma tradição musical, embora procure evoluir poeticamente. É verdade que minhas letras são rimadas e  metrificadas. Mas que posso fazer? Eu sou um clássico.

– A minha salvação é que sou da classe média. Se fosse de família tradicional, eu não teria ouvido música clássica na infância e sim a do chicote dos escravos...

– Quando jovem, eu era um músico popular fracassado, era apenas um erudito...

– Após 10 anos pesquisando a música renascentista e fazendo música de câmara, voltei agora à música satírica e principalmente a fazer modinhas, gênero de que sempre gostei. Aliás, acho que as três grandes contribuições que os portugueses trouxeram para o Brasil foram a modinha, a mulata e Tostão no Vasco...

 

Vá Tomar Caju

O sucesso de Juca Chaves vem muito mais de seu talento verbal do que propriamente de suas músicas. E ele tem consciência disso:

  – O forte desse meu show Vá Tomar Caju são as piadas. Todas aplaudidíssimas. No intervalo, toco umas musiquinhas. E as palmas são as mais mixurucas possíveis. O povo gosta de rir, embora quase sempre esteja rindo de si mesmo. Quando digo que sou baixinho e traído, ele ri. Mas traídos e baixinhos é o que não falta nesta terra...

Vá Tomar Caju esteve em cartaz durante quatro meses no Teatro Casa Grande. A partir desta semana, Juca Chaves fará o show no Teatro Serrador. Naturalmente com o mesmo sucesso, com a mesma casa lotada. O espetáculo obedece ao mesmo esquema de one-man-show, já utilizado por Juca há vários anos. Mudam as piadas (“tenho um bom repertório”) ou as músicas, mas o esquema é o mesmo. Ele explica:

– Sou o único show-man no Brasil que faz um espetáculo inteiramente sozinho, sem diretor nem script pré-fixado. Não tenho nem um roteiro certo para as piadas: conto a que aparecer na hora. A verdade é que sou o artista brasileiro que tem o maior fã-clube masculino. Parece brincadeira, mas é verdade.  Os homens dizem “pois é, ele é baixinho e traído, eu não sou”. E caem na risada, quando estou me auto-gozando. Ah, é? Tá bom.

– A verdade é que este esquema deu certo. E não vou mudá-lo, que não sou bobo. E no meio da coisa, acabo fazendo com que eles ouçam minhas músicas de câmara, o que é importante.

Naturalmente, existem os despeitados, que dizem já ter ouvido essa ou aquela piada. Não ligo a mínima pra isso. Piada não tem autor, é como mulher no Bateau: não é de ninguém.

 

 

Amor Nonsense

Na linha do horizonte pendurei sua saia

E a minha mão pegou na tua contramão

À sombra de uma dúvida eu dormi na praia

E construí meu lar na casa do botão.

 

Levei meu olho mágico prum oculista

Do teu ponto de vista fiz ponto final

No rabo do foguete eu encostei tua pista

E enchi de novidade o furo do jornal.

 

Oh Léa, que ideia,

Da lâmpada apaguei a luz

No teu dedo em segredo

A aliança do progresso eu pus

 

Mandei pintar o sete por Juarez Machado

Adormeci meu braço no leito do rio

Curei este soneto que tem pé quebrado

Tomei um caldo verde com sabor de anil

 

Fiquei a ouvir estrelas no céu de tua boca

Com a vela de meu barco iluminei o mar

Num disco de fricção gravei minha voz tão rouca

E derrubei a tarde com golpes de ar

 

Oh Léa, que ideia...

 

Ronaldo Werneck

UH-REVISTA/CAPA

Rio, 02.05.72

 

 

 


 


12 de jan. de 2023

A Rainha se curva em reverencia ao Rei

No vídeo do jogo de 1963, a fantástica tabelinha 
Pelé-Coutinho-Pelé

O homem que salta de dentro do atleta.

“O mito é o nada que é tudo“, escreveu um dia o poeta Fernando Pessoa. E como nada somos, com bem o sabeis – e só não sabem aqueles que bradavam ou ainda bradam pelo “mito falso e fujão”–, fiquemos com nossos mitos do gramado e com o que de humano cada um deles traz dentro de si. “Morreu, aos 82 anos, Edson Arantes do Nascimento – disse Juca Kfouri em artigo na Folha de S.Paulo de 30.12.2022 –, um homem igual a qualquer outro, com qualidades e defeitos. (...) E consta que morreu nesta quinta-feira (29), também aos 82 anos, Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos”. E Kfouri concluía seu longo e bem sacado texto: “É de se lamentar que, neste ponto, seja obrigatório informar a quem veio até aqui, que não, não é verdade que Pelé tenha morrido. Quem morreu foi o Edson”.

E com Pelé interpretando Pelé, como só ele sabia, adversário não havia” – escrevia eu, comentando a Copa de 1998 na França, mas me remetendo à Copa de 1970, aquela do México: Brasil Tricampeão. Mitos como Pelé, sobre quem eu pensava não haver mais nada a ser dito. Mas o Chico Buarque, que estava em Paris, cobrindo a Copa pro Globo, conseguiu uma novidade: “A impulsão com que Pelé celebrava o gol chegava a superar aquela, já extraordinária, com que subira para cabecear. Era como se, na celebração do gol, o homem saltasse de dentro do atleta”. O homem que salta de dentro do atleta: que imagem mais perfeita do futebol alegria, do futebol-arte, do futebol-poesia.  

 Um futebol de poesia”: era como anunciava o poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini ao escrever sobre a vitória do Brasil contra a Itália na final da Copa do México, em 1970. Publicado no jornal Il Giorno, em 03 de janeiro de 1971, o artigo de Pasolini girava em torno da dicotomia “futebol de prosa e futebol de poesia” – e tinha lances como: “Em futebol há momentos que são exclusivamente poéticos: são os momentos do gol. Cada gol é sempre uma invenção, é sempre uma perturbação do código: todo gol é fulguração, espanto e irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética”.

E Pasolini continuava: “O melhor goleador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. (...) Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores goleadores? Os brasileiros. Portanto, seu futebol é um futebol de poesia: de fato, todo ele está baseado no drible e no gol. (...) Se o drible e o gol são os momentos individualistas-poéticos do futebol, é por isso que o futebol brasileiro é um futebol de poesia. Sem fazer diferença de valor, mas em sentido puramente técnico, no México a prosa estetizante italiana foi vencida pela poesia brasileira”. E, no futebol, complemento eu agora o artigo de Pasolini, a poesia brasileira esteve sempre representada por Pelé. 

O Rei e Ela

Pelé, Brigitte Bardot mais eu. Era assim que durante muito tempo falava para amigos & quejandos quando perguntado sobre o dia do meu aniversário. Nós três de outubro, 23. Mas não sei bem como nem por que colocava Brigitte nesse trio, já que ela na verdade nasceu em 28 de setembro de 1934. Devo ter lido errado em algum lugar e Brigitte, estrela guia, ficou nos acompanhando em vários aniversários ao longo dos anos. Pelé, não. Pelé, sim: 23 de outubro de 1940, exatos três anos antes de mim. Um jornalista desses mais exaltados chegou a sugerir que a partir de agora o 23 de outubro seja sacramentado como o Dia de São Pelé. Não vou a tanto, mas bem que o Rei santista podia também figurar entre tantos outros reis e santos. Assim como escreveu Nelson Rodrigues em 1958, ao saudar o jovem Pelé: “Verdadeiro garoto, meu personagem, anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um Rei, Não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”.

 

 A abertura deste tópico fica assim, como abertura mesmo, para falarmos dele, Pelé, antes de darmos um rápido corte e chegarmos numa tarde de 1991 à plateia do Teatro I do CCBB/Rio. Ali estou eu a conversar com a atriz Fernanda Montenegro, enquanto sua filha Fernanda Torres é ensaiada no palco por Geraldo Thomas, diretor do espetáculo The Flash and Crash Days, estrelado pelas duas, a estrear dias depois. Eu acabara de entrevistar a Fernanda para um vídeo que faria sobre a peça, a exemplo de outros tantos que fiz naqueles tempos do CCBB. Lembrei à Fernanda que já havíamos nos encontrado há quase vinte anos, lá pelos inícios dos anos 1970, quando a entrevistei no Teatro da Maison de France na época em que protagonizava a peça de Louis Verneuil, O amante de Madame Vidal, traduzida por Millôr Fernandes, com direção de seu marido Fernando Torres. Ela se recordou da nossa entrevista e da peça, de grande sucesso e longa temporada. 

Mas a Fernanda que conheci naquele dia na Maison de France era uma atriz séria, compenetrada, voltada para o fazer de seu ofício. Agora, não. Essa Fernanda que está ao meu lado é uma pessoa descontraída, que deixa antever o seu bom-humor, sinal de sua sagacidade, de sua inteligência. Finda a entrevista, câmera e microfone desligados, é tempo de se soltar, de falar como admirava o trabalho de Gerald, como confiava nele, como se submetia ao seu comando, quase sem pensar.

Dias depois, noite de estreia, eu conversava nos bastidores com Paulo José e  Ziraldo (sua filha, Daniela Thomas, era a cenógrafa do espetáculo). Disse Ziraldo: “não entendi nada, mas essa movimentação dos atores, essa iluminação que só o Gerald sabe fazer, isso sim, você sente que é teatro, que tem a força do teatro”.   E, voltando à Fernanda: além do Gerald ela começa agora a elencar outras admirações as mais diversas, do marido Fernando Torres a Sérgio Britto, de Chico Buarque a Caetano Veloso. De repente, Fernanda para e diz muito séria, para minha total surpresa: “Olha, mas quem eu admiro mesmo é o Pelé. O Rei Pelé”.  

Foi quando, tomado por súbito entusiasmo – e para espanto total da Fernanda –, levantei-me entre as poltronas e, em pé no corredor do teatro, tentei “narrar ao vivo” – em meio a chutes e cabeçadas no ar – a cena do inacreditável lance Pelé-Coutinho que vi no Maracanã numa noite de 1963, durante a decisão do Campeonato Brasileiro de 1962, com o time do Santos dando de cinco a zero no Botafogo.

Da rua da Grama à grama do Maracanã

Foi assim. Trabalhávamos num Banco, eu e um amigo botafoguense, e morávamos numa pensão da rua da Grama, em Leopoldina. Era a tarde de 2 de abril de 1963 e ele, botafoguense doente,  perguntou se eu topava irmos ao Rio assistir à final de Santos x Botafogo naquela noite. Sequer titubeei. Nunca vira Pelé jogar, o que só aconteceria com mais assiduidade quando me mudei para o Rio em 1965, assistindo a lances memoráveis no Maracanã, inclusive o gol-1000, aquele de pênalti, quando eu estava na arquibancada atrás do gol do arqueiro Andrada do Vasco.   Mas era, sempre fui, mais Pelé que santista ou qualquer outro time, com o perdão do meu Flamengo. E foi então que partimos num ônibus Rio-Bahia afora. Da rua da Grama para a grama do Maracanã. 

Pelé faz seu segundo gol naquele arrasador 5x0 contra o Botafogo

Nunca uma viagem valeu tanto a pena. Maracanã lotado, inclusive com a presença mais que anunciada de dois astronautas russos. Aquele acender incessante de fósforos e isqueiros, a arquibancada piscando que nem milhões de vagalumes e a grama, a verde, sacrossanta, iluminada grama onde pisavam nossos ídolos. No Botafogo, havia Garrincha, Nilton Santos, Manga, Amarildo, Zagallo e até Jairzinho. No time do Santos, aquele ataque endiabrado: Dorval (que faria um gol), Mengálvio, Coutinho (1 gol), Pelé (dois gols) e Pepe (1 gol).  Final: Santos 5 x 0 Botafogo, naquele que os cronistas hiperbólicos classificaram como “o maior jogo do mundo”.

Mas, e o lance, o lance Pelé-Coutinho que eu “narrei” pra Fernanda naquela tarde do CCBB? Não dá pra contar, só pra encenar, se é que me explico bem. Vamos lá, se é que consigo recuperar em palavras o que vi e descrevi pra Fernanda. Deu-se que Pelé estava na lateral direita, próximo da linha do corner, acossado pelo grande Nilton Santos. Foi quando ele saiu correndo em direção ao zagueiro e à grande área, mas deixou a bola pra trás. Nilton balançou o corpo sem entender, sem saber se seguia Pelé ou ia em direção à bola, que ficara lá na lateral. Foi quando Coutinho veio de trás em disparada, passou por Nilton, chegou até a bola que ficara na lateral e num átimo – sim, num átimo! – cruzou para Pelé que, já na pequena área, cabeceou para dentro das redes de Manga, um Manga também atônito com tudo aquilo. Um lance, um relance de dois gênios entrosadíssimos. O Maracanã veio abaixo e gritava comigo: Pelé! – inclusive meu botafoguense amigo.  Pelé! Pelé! Pois é.

Assim foi que parei minha trôpega, mas entusiasmada encenação entre os sorrisos e aplausos de Fernanda Montenegro.  Disse pra ela que nunca mais me esqueci daquela primeira vez que vi Pelé jogar.  Faço minhas as palavras do jornalista João Máximo: “Pelé alcançou o que se supunha impossível: a perfeição. Seu futebol era uma combinação de técnica e beleza, arte e magia, soma de virtudes que fizeram orgulhar-se dele um país com poucos motivos de orgulho”. Rainha dos palcos, nada mais justo que Fernanda Montenegro se curvasse em reverência à arte e magia do Rei do Futebol.