Otelo & Elisa: comeu comeste, como.
Como?
Enquanto
Otelo nos olha com aquela cara safada de Grande Otelo, Elisa Lucinda continua
aí, toda lampeira, sentadinha em meu colo. Otelo vem por aí, logo à frente. A
história do Botanic – aquela do “não vou porque você não vai querer me comer” da crônica anterior – rendeu e rende
gargalhadas até agora entre os poetas que presenciaram a cena. Ainda hoje, de
repente, algum deles me pergunta: “então, comeu?”. Há controvérsias, como (como?)
em tudo. Mas é essa Elisa de brilhantes insights
que não vou esquecer jamais. Ela acabou indo lá em casa, e muitas vezes:
ficamos amigos e nos víamos sempre naqueles meados dos anos 1990.
Elisa
aparecia de quando em quando em minha sala do CCBB e pegava carona comigo pra
Copacabana, onde também morava. Lia para mim seus poemas, pedia opinião (quem
sou eu?), trocávamos ideias. Um dia, apareceu lá em casa com uma peça de teatro
chamada “Deus”, um texto de grande força e, vamos dizer, “manemolência”. Disse
que falara com o Grande Otelo e que ele topara fazer o papel do próprio, quer
dizer, de Deus. Disse ainda que o Grande Otelo nos convidara, a ela e a mim,
para um almoço em sua casa, para falarmos sobre a peça. Dito e feito.
Não
carece aqui falar de minha imensa admiração por “Grande Otelo”, nome dado pelo
cineasta Orson Welles ao pequeno-grande ator mineiro Sebastião Prata. Eu já o
conhecera pessoalmente quando de uma exposição sobre ele, que fizemos no CCBB.
E onde mais uma vez não deixei de me espantar com sua grandeza, e também e até
com a grandeza do rol de seus admiradores.
Conversava
um dia com Grande Otelo na rotunda do CCBB quando vi passar Fayga Ostrower, a
grande gravurista, que expunha no segundo pavimento. Ao me ver com Otelo, Fayga
acenou pra mim, me chamando. Ao me aproximar, pediu para que eu a apresentasse
a ele, pois era sua fã desde muito tempo. Otelo não a conhecia, mas deu um
grande abraço em Fayga, meio que me perguntado com os olhos quem era ela. E eu
admirado pelo fascínio da grande Fayga pelo “pequeno” Otelo. Corta para.
Sábado
pela manhã, casa de Grande Otelo em Copacabana. Manhã mesmo, pouco depois de dez
horas. Elisa me disse que Otelo marcara o almoço para onze horas. Não entendi o
porquê daquele horário. Calor carioca, Otelo nos recebeu de bermudas e sem
camisa. E logo voltou pro fogão, que era ele mesmo quem estava preparando o
almoço. Cozinhava enquanto me dizia, muito gracinha, que era feijão de
Uberlândia (sua terra natal), em minha homenagem, coisa de mineiros.
Então,
já sentados à mesa, lá estávamos nós e o (ótimo!) feijão de Otelo: Elisa, ele,
eu e um de seus filhos (como é mesmo o nome?), que iria dirigir a peça da
Elisa. Foi quando perguntei o porquê daquele almoço tão cedo. Pra quê! Otelo
disse que, ao contrário daquele que estava sentado à mesa – e que sem dúvida
iria dirigir muito bem a peça da Elisa – tinha outro filho que estava sem
trabalho. Ele levantara cedo naquela manhã, “pois tive que ir ao Jardim
Zoológico arrumar emprego pro meu filho”.
Ops!
Otelo estava sentado à minha frente, de bermudas, sem camisa, os cabelos
desgrenhados, o próprio Macunaíma. Levei um susto, e não entendi nada. Até que
ele, o “Deus da Elisa”, completou: “Sou amigo do diretor do Zoológico e fui
pedir emprego de escriturário pro meu filho”. Ah, bom, pensei. E nada mais se disse,
ou foi falado, of course.
Deus
não deu certo. Nem sempre dá. Otelo já se retirou de cena e acho mesmo que “Deus”
anda inédito até hoje. Mas, Elisa não. De lá pra cá, a moça deslanchou, se é
que podemos chamar assim, pois Elisa já nasceu deslanchada. Ou em fase de total
deslanchamento. Poeta, autora, atriz de cinema e telenovelas, cantora e
criadora da “Casa-Poema”, ela tem vários livros publicados, vários espetáculos
de sucesso. Elisa não para e, por isso mesmo, está aí ainda o “Parem de falar
mal da rotina”, possivelmente seu espetáculo mais bem apanhado, onde ela solta
sua verve e atua com a autoridade de quem conhece seu métier, de quem solta-se
no palco como se andasse na rua.
E
foi numa das apresentações desse espetáculo que ela me deixou meio ou
totalmente sem graça num teatro do Leblon, tempos atrás. Eu me sentara numa das
primeiras fileiras e naturalmente ela me viu lá do palco. Pois bem, quando dos
agradecimentos, o primeiro nome que ela citou foi o meu: “Quero registrar a
presença do poeta meu amigo Ronaldo Werneck”. O teatro lotado, eu envergonhado.
Não precisava, Elisa, não precisava.
É,
ando com saudades de minha amiga, de sua alegria, seu impressionante bom-humor.
Pego na estante um de seus livros, ao acaso: “O Semelhante”, de 1996. E me
surpreendo com a enigmática dedicatória (não me lembrava mais): “Ronaldo, meu
amor de carnavais árduos, belos e de jardins de rimas boas. Quero as
amendoeiras, quero tomar sopa no Nogueira. Quero o verso eterno nosso. Beijos,
Elisa”. O “Nogueira” era nosso bar, é certo: “a salvação da madrugada”, ali na
Viveiros de Castro, nas proximidades da famigerada Prado Júnior, no Baixo Copa.
Mas, o meu amor de carnavais árduos, belos? As amendoeiras? Talvez apenas rimas
boas com o velho Nogueira, quem sabe?
Quem
sabe, sabe, é verdade. Conhece bem, como é gostoso gostar de alguém. Ai,
morena, deixa eu gostar de você – já dizia a velha marchinha carnavalesca. Mas
fica para sempre a pergunta e sua controversa resposta que nunca houve: “Então,
Ronaldo, e a Elisa – comeu?”. Como? – perguntaria, meio que respondendo, meu
grande e querido poeta Jorge de Lima, naqueles versos eternos de “Invenção de
Orfeu”: “comeu, comeste, como”. Como, Elisa? Como.
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