16 de dez. de 2014
O dia em que não comi Elisa Lucinda
Ah,
sim, a foto aí de cima. Aconteceu também durante o lançamento de um de meus
livros no Rio de Janeiro. Elisa chegou e abafou de uma sentada só.
Literalmente: sentada no meu colo, com quem não quer nada, para espanto do (in)distinto
público, pede um autógrafo: “Com carinho, please!”
Essa a Elisa, essa Elisa! Mas voltemos ao Felica, onde Elisa aconteceu como
ninguém. E olha que era uma edição com destacados nomes literários: o poeta
Chacal, o artista plástico e romancista Elias Fajardo, o poeta angolano Ondjak,
o poeta e artista plástico Guerá Fernandes, a prosadora Ana Paula Maia, os
escritores cataguasenses José Geraldo Gouvêa e Marcelo Benini, o romancista e
cineasta húngaro (e meu grande amigo) Miklós Palluch, a jornalista Sabrina Abreu
e o grande escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós.
Falha
minha, não conhecia nem o Bartolomeu nem sua literatura. Fiquei fascinado com
sua exposição, com seu jeito tranquilo de colocar as coisas mais inesperadas,
assim pausadamente, como quem respira. Saímos para jantar e Bartolomeu
continuou a falar com aquela calma mineira, baixinho, como se segredasse. Aos
poucos, percebemos ter vários amigos em comum, e nos surpreendemos por ainda
não nos termos conhecido. Eu estava para ir a Belo Horizonte, e ficamos de nos
encontrar novamente. Qual o quê! Pouco tempo depois fui surpreendido com a
notícia de sua morte. Achei e perdi um grande amigo que não tinha.
Em
outras noites do Festival, saímos com o Chacal, o Ondjak, o Miklós, o Marcelo
Benini, pra tomar uns “drinques finos”, aquela bebida plural e refrescante que
inventei há tempos, regada a água tônica & guaraná. Quer dizer, eu com meus
drinques finos e a turminha mandando ver nos variados álcoois que fluem das
noitadas cataguasenses. O Felica (evoé, Geraldo!), nos proporcionava isso
(acabou por quê?): uma oportunidade de reencontrarmos velhos amigos e
conhecermos outros, essa gente toda “ligada” no ofício de escrever. Lembro
também de prolongados papos noite adentro com dois outros amigos (nesse ou em
outro Felica?) – o jornalista e escritor Carlos Herculano Lopes, de Belo
Horizonte, e o poeta Nicolas Behr, de Brasília.
“Epa,
a crônica já vai em meio e nada da Elisa nela entrar. Vem cá, Elisa, entra ou
deixe que o outro entre agora, nessa Penetração
do Poema das Sete Faces: “Ele entrou em mim sem cerimônia/ Meu amigo seu
poema em mim se estabeleceu/ Na primeira fala eu já falava como se fosse meu/ O
poema só existe quando pode ser do outro/ Quando cabe na vida do outro/ Sem
serventia não há poesia, não poeta não há nada”. Não sei bem se foi esse ou o
outro ou um dos muitos outros o poema que Elisa soltou na tevê, em pleno Almoço
com as Estrelas, com a não menos Angélica, aquela que vaivém de táxi.
Não
se fala poema na Globo – bem o sabeis, ó leitores meus – e Elisa tava-que-tava pra soltar um dos seus
em meio à entrevista com a Angélica. Lá pelas tantas, ela aproveita a deixa de
uma pergunta e manda bala num poema inteirinho (foi esse, não foi esse?) antes
que, atônita, a apresentadora pudesse sequer abrir a boca. Assim narrava Elisa aqui
em Cataguases, no palco daquele Felica, quando alguém da plateia perguntou: “E
a Angélica, como ficou”. Resposta de bate-pronto, num saque-sagaz: “Loura”.
Essa
a Elisa que nos surpreende sempre e faísca no esplendor do disse-me-disse de
sua bela mulatice, os olhos verde-esmeralda refulgindo de inteligência,
matreiros brilhantes. A Elisa que quase me atropela numa tarde de Ipanema,
início do século. Vinha eu distraído pela calçada da Avenida Atlântica quando, ao
dobrar uma esquina, corto um dobrado para me desviar de uma bicicleta veloz que
só ela. Era Lucinda de byke, as coxas luzindo num shortinho, saltitantes. “Ronaldo!”.
“Pô, Elisa, que susto! Que treco é esse agora, de bicicleta?”. “Liga, não, é
que estou em plena fase fitness”.
Nós
nos conhecemos numa noitada carioca num bar da Pacheco Leão, no Jardim
Botânico, o Botanic – refúgio de poetas de vários quilates, que ali se
apresentavam, falavam seus poemas e falavam, falavam. Lá aconteceram vários dos
shows do Blues Etílicos e dos Camalões, o grupo comandado pelo então poeta Pedro
Bial e outros menos votados. No Botanic, vi em cena figuras inesperadas a
declamar, como a apresentadora de tevê Leila Cordeiro, que lançava livro de
poemas, ou a poeta e performer Crika Ohana (irmã da Cláudia), que acabara de
fazer um happening, desfilando nua pela redação do Jornal do Brasil.
Certa
noite, nem bem eu me apresentara quando alguém me disse que gostara não só de
meus poemas como do meu jeito de dizer. Dito assim, com esses dizeres e esses
gostares, tudo muito me agradou – principalmente vindo daquela figura pós-
existencialista, com piteira e boina à la Juliette Greco. Era a atriz e
romancista Ana Miranda. Eu lera ainda há pouco o seu livro “Boca do Inferno”, e
ficara impressionado com a pesquisa e a beleza do texto. Adorei o elogio, não
há como negar. Meu amigo, o compositor Carlinhos Vergueiro, estava comigo
naquela noite. Dia seguinte, treino do famigerado Politheama, ele disse pro
Chico Buarque que conhecera a Ana. Chico rebateu de pronto: “é uma grande
romancista, gosto muito do que escreve”. Assino embaixo, quer dizer, aqui do
lado. Nunca mais a vi. Há alguns anos, em Fortaleza, li num jornal de domingo
uma ótima crônica de Ana Miranda. Soube, por amigos cearenses, que ela voltara
pra lá. Será que ainda lá está?
Mas,
no Botanic, conheci mesmo foram muitas e muitas poetas, e com algumas fiz bela
amizade, como Solange Padilha e Marly de Oliveira. Convidado por suas
organizadoras – Rachel Gutierrez, Maria Helena Kühner, Helena Rocha –, acabei
participando do livro “Mulheres (in) Versos”, antologia onde Affonso Romano de
SantAnna, Geraldinho Carneiro e eu éramos os únicos “Homens (in) Versos”. Foi
lá que certa noite vi um show com canções francesas do travesti Valéria, a
“Divina Valéria”, onde ela naturalmente cantava La Vie en Rose. Eu estava no
balcão conversando com Cecília, a dona do Botanic, e com a escritora e filósofa
Rachel Gutierrez, hoje minha grande amiga. Lembro-me que eu e Rachel “acompanhamos”
Valéria como se fôssemos a Piaf. Quer dizer, a Rachel, que é pianista de
formação clássica (em Viena). Eu me limitei a desafinar com grande classe.
Depois
do show, Valéria sentou-se ao meu lado e engatamos uma conversa que durou noite
adentro, a Divina sempre com histórias e mais histórias que “vou te contar”. Rachel
Gutierrez já saíra quando, lá pelas tantas, apareceu ninguém menos que Rose
Rondelli, a vedete do Carlos Machado e Certinha do Lalau, que foi casada com o
Chico Anysio e foi também uma das obsessões, vamos dizer, “manuais” de minha
adolescência. Fechamos o Bar. As “meninas” pediram carona e vocês não imaginam
a emoção deste escriba ao conduzir “La Rondelli” pela noite do Rio.
Falei
então pra ela de minha “adoração adolescente” e ela entreabriu (entreabriu?
Será mesmo que entreabriu?) aquele sorriso que eu conhecia das revistas de
antigamente, os cabelos curtinhos que nem os da Jean Seberg do Acossado de Godard. Rose ficou numa rua
do Leblon e levei Valéria até Copacabana. O que então Valéria me contou sobre
figurões da política e do sowbiz não está no gibi, mas faria a festa de outras revistas,
aquelas que primam pela fofoca. Ela saltou dizendo que estava pra fazer um show
que iria arrasar e que eu “já estava convidado”. Nunca mais vi a Divina. La
Rondelli, muito menos.
Foi
também num Botanic lotado (não era lá muita vantagem: pelo tamanho, o Botanic
era mais chegado num pocket-show) que
apresentei o espetáculo (?) “Tônica com Guaraná”, com poemeus & canções de tutti quanti, acompanhado pela cantora Eduarda
Fadini e por um trio da pesada sob o comando do tecladista Sérgio Botto, com
direito a Afonso Vieira na batera. Havia também um quarteto de back in vocals muito gracinha, que
mandou ver num belíssimo “A História de Lily Braun” (como era mesmo o nome das
meninas?) e, ainda, voz & violão de meu amigo Roberto Kimura.
E
foi lá e ainda lá que vi Elisa Lucinda pela primeira vez, falando com grande
verve um de seus enormes poemas. Fiquei fascinado com aquilo tudo, a mulata, os
verdes olhos, a voz rouca, o soar de seu poema-espanto. Também eu falara antes
alguns de meus poemas e, acabada sua apresentação, Elisa sentou-se em minha mesa.
Mal chegamos a ser apresentados e logo elogiei sua bela performance. Ela
devolveu os elogios, dizendo que também gostara de meus poemas. E adiantou:
“Quem sabe a gente não se reúne e faz uma apresentação juntos?”. Eu disse que
sim, que era uma boa ideia. Quem sabe ela não iria lá em casa pra gente
ensaiar?
Elisa
ficou séria: “Ah, Ronaldo, não vou na sua casa, não”. “Mas, Elisa, por que
não?”. Ela então mandou essa: “Não vou não, porque você vai querer me comer”. Surpreso,
eu disse: “O que é isso, Elisa?”. Aí, ela soltou aquele sorriso de quem me
pegara pelo pé: “Ah, não? Você não vai querer me comer? Então é que não vou
mesmo. O que vou fazer lá, se você não vai me comer?”. Pano rápido, com muitas
risadas.
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