24 de ago. de 2015

2 - O show que não houve: chuva, chope e salame

      show do trio Afonso/ Alessio/ Írio    Auditório da RAI – Roma/1976




    Rosário Fusco tinha razão: o que ficou mesmo na lembrança de minhas histórias com o Afonsinho foi o inesperado, nossas pequenas maluquices, nossos porres homéricos, quando ainda se tomavam porres e ainda se dizia homéricos. Como homérico foi aquele imbróglio quando Afonsinho arrumou de tocar num Clube da Zona Norte. Era para fazer a abertura de um show do Martinho da Vila em Campo Grande, num tempo sem GPS e nem sequer Campo Grande, eu acho. Nem mesmo, quem sabe?, Martinho da Vila. Pudera: era 1965 e aquilo era muito, muito longe. Nós morávamos numa pensão na Praia de Botafogo e, como quase sempre, fomos juntos em busca dos músicos num velho táxi americano, dos grandões, acho que um Chevrolet daqueles mafiosos dos anos 1940. 
   Lembro de termos apanhado o baixista na Tijuca – qual era mesmo o nome? Um negão gordo e risonho. Atenção, periferia, nada de “afrodescendente”: era “negão” mesmo, como dizíamos nos anos 1960, absolutamente incorretos e sem qualquer resquício de culpa. Ele sentou ao meu lado no banco de trás e sentou junto seu enorme contrabaixo: um par perfeito, ele e seu instrumento. E fomos Avenida Brasil afora rumo a Campo Grande. Só que havia uma conexão Bangu, que o taxista não sabia. Era para pegar o Írio, o grande guitarrista Írio de Paula, que logo depois iria para Roma com o Afonsinho e a Elza Soares e lá ficou até hoje, fazendo enorme sucesso com aquele seu jeitão Jimmy Hendrix. Todos a bordo – agora Afonsinho, eu e o taxista na frente; atrás, Írio e sua guitarra, o baixista e seu baixo; no porta-malas, toda a parafernália da bateria –, o táxi rolou novamente pela Avenida Brasil até Campo Grande. Já era pra mais de desoras quando chegamos – e nada de acharmos o tal Clube. 
    O endereço “não batia”. Com muito custo, encontramos um desgarrado da noite que nos indicou o lugar. Surpresa: o Clube estava fechado, só um vigia que disse não saber de show nem de “Martinho da Vila nenhum”. E decepção: tivemos que dar meia-volta ou uma grande volta de volta de Campo Grande. Num tempo sem celular, não havia sequer orelhão por perto, e o Afonsinho não teve como falar com o produtor do show. Era noite de sábado e os músicos, Afonsinho inclusive, tocavam em boates de Copacabana e haviam “mandado o Lima” – a velha gíria pra dizer que não iam, mas mandavam “o Lima”; na verdade, um inexistente substituto. Mas, dessa vez, haviam mandado mesmo: tanto que agora estavam preocupados em como pagar os colegas que foram em seus lugares. 
     Bandeira baixa desde que saímos de Botafogo, preço tratado por corrida, o táxi rolava agora cabisbaixo, pois de bandeira baixa e cabisbaixos estávamos todos nós, até mesmo o taxista, talvez preocupado com seu pagamento. E ele ainda precisou, meio a contragosto, se desviar de novo da rota para levar o Írio em Bangu. Ao nos despedirmos, Afonsinho disse pro Írio que não se preocu-passe, nem ele nem o baixista, pois o cachê combinado iria ser pago, nem que ele tirasse do próprio bolso. Mais uma meia hora, e uns três “nens” depois, e já deixávamos o baixista e seu baixo na Tijuca (ele ainda nos convidou para descermos para um café, o que achamos “de bom alvitre” não aceitar, dada a cara de poucos amigos de nosso taxista). 
     Mais uns quinze minutos e estávamos na porta da pensão em Botafogo. Quando o taxista deu o preço, acima do combinado (“sabe como é, tive que ir e voltar a Bangu, fora do nosso caminho”), levamos um susto. O táxi ia ser pago com o dinheiro do cachê, que não rolou. Juntamos os caraminguás e mesmo assim ficou faltando. Foi quando me lembrei do nosso amigo, Carlos Sérgio Bittencourt, que morava conosco na pensão. O futuro dramaturgo foi quem nos salvou, inteirando a grana do táxi. Ufa! Uma aventura, mesmo decepcionante como essa, a gente não esquece, não é mesmo? 
     Na sequência das “pequenas e inesquecíveis maluquices” vividas por mim e pelo Afonsinho, chega a vez do primeiro dos imbatíveis “porres negros”. Deu-se que ficamos sem cigarro no meio de uma noite de domingo. Morávamos ainda na pensão da Praia de Botafogo: Afonsinho, Carlos Sérgio e eu. O papo estava bom, mas nossos cigarros haviam acabado e nos anos 1960 sem cigarro nada funcionava. Descemos eu e Afonsinho rumo ao bar ao lado do Cine Ópera, quatro prédios após a nossa pensão. Mal compramos os cigarros começou a chuviscar e resolvemos tomar um chope. Afinal, quem não está na chuva é mesmo pra não se molhar, não é mesmo? A chuva foi descendo mais forte, os chopes e nosso papo também. 
     Foi então que o bar fechou, bem pra lá de meia-noite. E agora? A chuva chovia choverando (evoé, Oswald de Andrade!) por todo o Rio. Voltar pra pensão era chover no molhado. Era preciso alguma coisa mais forte, mais quente, quem sabe um conhaque com mel, mortífero anti-gripal de toda a gente? Lembrei-me de um botequim que costumava ficar aberto na rua Voluntários, quase esquina com a Praia. Vencemos as três quadras até lá enfrentando com galhardia os pingos de chuva em nossos rostos, e navegando em meio a uma ainda incipiente enxurrada. O botequim estava aberto. Saravá! Sentamos nos banquinhos do balcão e comandamos duas batidas de limão para recomeço dos trabalhos. A chuva chovendo forte lá fora. Solidão apavora. Não, Afonsinho, o samba ainda vai nascer, mas já estamos juntos, copos na mão, tamborim na marcação. 
     De repente, senta-se a meu lado um simpático e bem-falante negão (volto a repetir: não, não era um hoje “afrodescendente”, mas um velho negão anos 1960). Papo vem, papo vai, ele me conta que andou trabalhando em cinema, às vezes ainda trabalhava como maquinista. E disse, pra meu espanto, que estava nas filmagens de Os Cafajestes, naquela cena do nu frontal da Norma Bengell. E começou a contar detalhes das filmagens, daquele famoso travelling circular na praia de Cabo Frio: “na verdade a câmera estava em cima de um jipe, que rodava na areia em volta da Norma e...”. Aí ele sumia por uns bons minutos. Logo reaparecia: “...e então ela peladona e...”. E o negão sumia de novo. Eu imaginei que ele estava indo ao banheiro, mas desconfiei que era banheiro demais pra tão pouco tempo. Virei-me pro Afonsinho: “Que diabos faz esse negão, que some assim no meio do papo?”. 
    Chope e mais chope, o banheiro me chama. Desço do banquinho e sinto a água subindo pelas canelas: o botequim já tinha mais água que o Rio Pomba . Ressurge súbito o negão e me diz que está faturando uma nota empurrando vários carros inundados pela enchente na Voluntários (“coisa de cinco merréis cada empurrada, bicho!”). Só aí nos demos conta do caos. Amanhece, a chuva esmaece. Convoco o Afonsinho para uma retirada estratégica. E lá vamos nós, praia de Botafogo afora, água nas canelas. Paramos num padaria da Visconde de Ouro Preto: afinal era hora do café da manhã. 
     
Sanduíches de pão com salame nas mãos, calças arregaçadas, água nas canelas, caminhamos impávidos rumo à pensão. Bem verdade que às vezes um sanduíche caía em meio à enxurrada, mas nós o recuperávamos com impassível classe. Eis que chegamos. Havia uma escada que levava da rua à porta principal. A enchente tomara bem mais da metade dos degraus. Foi quando avistamos lá no alto o Carlos Sérgio, de terno, pronto para o trabalho, espremido entre algumas pensionistas, dignas funcionárias de algum órgão público. Todo mundo sem poder sair para o trabalho, todo mundo olhando enviesado pra mim e pro Afonsinho, nós dois atônitos, sanduíches de pão com salame equilibrando-se nas mãos trêmulas. 
     Do alto de seu terno, Carlos Sérgio nos deu um pito: “É uma catástrofe, tem gente morrendo, o Rio está inundado, a enchente impede qualquer um de trabalhar e vocês chegam assim, completamente bêbados em plena manhã de segunda-feira!”. Eu e Afonsinho desmontamos em nossas camas enquanto o Rio era inundado por outro rio: imenso e imundo. E percebemos então – moços bem-comportados de Minas Gerais – que havíamos perdido o cartaz com as senhoras funcionárias públicas. Nada mais de paparicos. Nada mais de ovos extras nas refeições. Nada de goiabada.
Continua na próxima semana