Show do trio Afonso/ Alessio/ Írio
com a Orquestra Pino Calvi
Nápoles/1976
Ano seguinte, 1966, Carlos
Sérgio foi prum apartamento no Leme (que nós dividiríamos tempos depois) e
Afonsinho e eu pra Copacabana, pro famigerado Edifício 200 da Rua Barata
Ribeiro. O 200 é o seguinte, bicho. Sabe, gente, é tanta coisa, tanta gente,
não dá pra contar ou cantar. Tanta coisa que a gente nem sabe ou quer mais
saber. Foi quando surgiu o Tião, que veio morar conosco. Quer dizer, um à época
bancário – este aqui – e dois bateras. Enquanto eu dormia, os dois tocavam pela
boates de Copa e dessa vida afora. Eu acordava com eles chegando,
cansadíssimos. Só nos falámos mesmo à noite quando, de volta do trabalho,
saíamos juntos: eu pra jantar, os dois ainda pra almoçar.
Pelo
apartamento do 200 passaram vários e vários músicos. Alguns “passavam de
passagem”, ficavam só dois, três dias; outros, até mesmo três meses, como
aconteceu com o Wagner Tizo, então um jovem pianista iniciante na noite. Muita
gente, tanta, tantos músicos: Martinho da Vila, os também bateristas Robertinho
Silva, o saudoso Milton Banana, João Batista Stockler (meu querido amigo
Juquinha, que também já se foi – o baterista que acompanhou João Gilberto e Tom
Jobim no emblemático álbum inicial da Bossa Nova, o Canção do Amor Demais, além de ter sido parceiro de Tom em sua
primeira canção, Faz uma Semana), o
pianista Paulinho Cego (onde andará?), o guitarrista Írio de Paula, Djavan e
outros e outros. Até mesmo o atazanado saxofonista e arranjador Tranka (cadê
você?), que fez ali mesmo, na sala, o arranjo para uma canção que o Martinho da
Vila iria colocar num dos festivais da época (detalhe: Martinho
preocupadíssimo, pois o violão onde o Tranka fazia o arranjo tinha uma corda a
menos). Nosso apartamento parecia mesmo um estúdio. De malucos – e mais que
talentosos.
Eu chegava
de terno do trabalho e era um corpo estranho. Lembro que o baterista Milton
Banana sempre me perguntava pelas cotações, pois achava que eu era um broker da Bolsa de Valores. Afonsinho,
Tião e eu mal segurávamos o riso (“hoje não foi nada bom, as ações estão em
queda”, dizia eu a sério). Um dia, faltou luz. Sexto andar, sem elevador. Showtime: hora de descer para o trabalho
nas boates. Paulinho Cego vira-se pro Afonsinho: “Segura aí nas minhas costas,
que hoje o Ceguinho é que vai conduzir a parada!”. É, não dá mesmo pra contar.
Vivenciamos ali quase tudo que meu amigo, o dramaturgo Paulinho Pontes, que
morava nas redondezas, iria contar depois em sua peça, “Um Edifício Chamado
200”. Houve um tempo, anos à frente, quando o Paulinho estava casado com a Bibi
Ferreira, em que eu ia muito à casa deles, junto com meus amigos paraibanos – o
compositor Marcus Vinicius, hoje maestro e arranjador, e o Waltinho Carvalho,
então estudante da Esdi e agora fotógrafo e cineasta de merecida fama. Às vezes
me pergunto: será que muitas daquelas inacreditáveis histórias do 200 que eu
contava não teriam servido como motivação para o Paulinho Pontes escrever sua
peça?
Mas, voltemos ao Afonsinho. Sozinho,
ele era uma bateria em sua plenitude. Com uma levada que substituía toda a
bateria de uma Escola de Samba. Morando juntos, às vezes eu o acompanhava e assistia
aos shows. De todos, lembro particularmente de um com a Elza Soares e os
Originais do Samba, que na época contava com Almir Guineto e o Mussum
pré-Trapalhões no reco-reco. Foi uma temporada num teatro do final do Leblon e
a bateria-escola-de-samba do Afonsinho quase abafava o Samba dos Originais. Vi
o show várias vezes – tantas que lá pelas tantas nem entrava mais no teatro. Esperava
o meu amigo num boteco em frente. Eu e o Mané Garrincha que, por sua vez,
esperava a Elza.
Vamos e
venhamos – mas não muito rápido, senão o barco balan-balançando balança todo
pra lá e pra cá e ficamos definitivamente borrachos: enquanto eu bebia um ou
outro modesto uisquinho, o Mané derramava sucessivos copos de conhaque. Copos
mesmo, daqueles americanos, dos grandes. Nunca vi coisa igual. Final do show,
atravessávamos a rua para “pegar o pessoal” – o Mané impávido, como se tivesse
bebido guaraná. Ufa! Anos, muitos anos depois, eu o veria entrar num botequim
de Laranjeiras, nove da manhã, o rosto inchado, os olhos que não olhavam mais
para nada. Mané nem me viu: sem condições. Virou num só lance uns três copos de
conhaque, daqueles de sempre, e saiu cambaleando pela calçada, as tortas pernas
trôpegas. Nunca mais o vi.
Pois é, o
Mané Garrincha, companheiro do Afonsinho em várias peladas romanas, ao lado do mesmo
Chico Buarque com quem meu amigo gravou, na Roma dos anos 1970, um disco
antológico, Per un pugno di samba, com
a Orquestra de Ennio Morricone. No encarte, diz o produtor Sergio Bardotti,
também autor das versões das letras do Chico pro italiano (faço aqui uma
tradução apressada do final do texto de Bardotti): “É provavelmente (o disco) o menos comercial, o menos
vendável, o menos “gosto médio” que jamais produzi, mas quem ainda tem um tico
de sensibilidade nos ouvidos, quem resistiu ao assalto de baterias e guitarras
a 400 decibéis, o amará como nós que o fizemos, como a dona música bem o
manda.”
A bateria
de Afonsinho (il bambino Affonso,
como está nos créditos do encarte) permeia quase todas as faixas na base da
vassourinha, assim meio cool, segurando
sóbrio a “cozinha” pra voz de Chico (como queria Sergio Bardotti). Quase,
porque em Sogno di um carnevale
(“Sonho de um Carnaval”) e Ora dico sul
serio (“Agora falando sério”) il
bambino se solta e manda ver como num prenúncio de suas melhores
performances, que ainda estavam por vir. É um belo disco esse do Afonsinho
acompanhando Morricone & Chico Buarque, o mesmo Chico que faria bem mais
tarde a canção “Futebol”, aquela que termina com “Para Mané, para Didi, para Pagão,
para Pelé e Canhoteiro”.
Pagão, do
Santos, e Canhoteiro, do São Paulo, eram ídolos do menino Chico Buarque. Tempos
depois, canção pronta e já famosa, Pagão chegou a jogar uma partida no Politheama,
o time do Chico. Mané, Didi e Pelé, vocês sabem quem são, ou não? Pelé, pois é.
Ninguém acredita, e nem mesmo sei como eu e Afonsinho fomos parar na
arquibancada do Maracanã, atrás das redes do goleiro Andrada, do Vasco, naquela
noite de uma quarta-feira de 1969, quando o santista Pelé faria seu milésimo
gol. Apesar de flamenguistas, nós só íamos ao Maracanã quando Pelé jogava, e mesmo
assim muito raramente. Mas estávamos lá, atrás daquele gol, o Andrada quase
pegando o pênalti cobrado por Pelé. Explodir de flashes, foguetes, gritos de gol
– e nós, como sempre, testemunhas “auriculares” dessa e de outras histórias.
Mas, antes,
houve o segundo “porre negro”. Ainda a falta de cigarro na madrugada. Já morava
no Leme: desci e peguei o carro, o nosso Gordini, o imbatível bólido que, além
do apartamento, também dividia com o Carlos Sérgio. Mal liguei o Gordini,
lembrei-me que podia ir a pé, pois o Bar do Careca, a salvação da madrugada, ficava
logo ali, no início do Leme. Mas chuviscava, e bateu preguiça. Nem bem passei a
terceira e já chegava ao bar, ao lado das boates onde fervilhavam os jovens
músicos da época – do Chico Buarque, que fazia show com a Odete Lara no Arpège,
ao pessoal do Grupo Manifesto, Gutemberg Guarabira & Cia. Todos saíam das
boates e terminavam a noite no Careca.
Nem bem
cheguei, o Afonsinho e sua bateria desceram de um táxi, vindos de um baile na
Zona Norte. Um encontro desses, assim na madrugada, merecia um chope, né mesmo?
Uns dez chopes depois, resolvi dar uma carona pro meu amigo e sua bateria. Nem
bem entramos no carro e perguntei (de onde fui tirar isso?) se ele já tinha ido
alguma vez ao Cristo Redentor. Pois é, nós morávamos no Rio há uns quatro anos
e nunca subimos ao Corcovado – “o Redentor, que lindo”, da canção do Tom . “Ora, ora,
Afonsinho, então vamos lá”. E fomos, em meio à chuva, os chopes ainda
chacoalhando em nós. No final do Cosme Velho, paramos numa padaria, o dia já querendo
vir, e compramos uma garrafa de Fogo Paulista. Até hoje, só de ouvir esse nome
já me sinto meio nauseado.
Na subida,
Fogo Paulista rolando, o Gordini ia também rolando na pista molhada, em meio a
curvas e mais curvas (pra quê tanta curva, meu Cristo?) – e nada do Redentor
surgir. Lá pelas tantas, o Gordini deu uma rabeada, pura imperícia de motorista
iniciante, e Afonsinho se assustou. Tudo bem, eu disse: tamo subindo, mas já tô
testando o freio pra descida. Não sei se Afonsinho acreditou na tirada
surrealista, mas lá fomos nós até el
cumbre del Corcovado. Nem bem os faróis bateram no platô vi dois fuscas e
um punhado de gente estranha parecendo dividir drogas, roubo, coisas da
malandragem. Reduzi o bólido num só lance, dei meia volta e desci desabalado.
Pelo
retrovisor, vi os fuscais faróis dos dois fuscas (o)fuscando ensandecidos atrás
de nós. Não sei mais como fiz todas aquelas curvas, o coração aos saltos. Num
lance de sorte, dobrei numa estrada vicinal. Os dois fuscas sumiram do
retrovisor. Parecia perseguição de cinema. E não era? Como os fuscas, também o porre
passou. Percebi que estávamos em Santa Teresa. Pegamos alguma outra descida, ainda
meio perdidos, e nos vimos nas proximidades da Avenida Brasil. Levado pelos fuscas,
o susto sumiu. Ufa!
Virei pro
Afonsinho, mais branco que eu devia estar, e soltei de uma só vez: “vamos pra
Vila da Penha fazer uma surpresa pra Marilda”. Acho que esse era o nome da
sobrinha do pianista que tocava com ele, e que eu andava meio que namorando. Na
Vila da Penha, deixei o Afonsinho num boteco e bati na casa da moça. Ela estava
saindo pra missa das sete e me olhou assustada, pois eu estava mesmo de
assustar. Mal me cumprimentou e partiu a passos firmes pra igreja. Eu voltei
pro boteco, pedimos um pão com salame e uma cerveja pra rebater. Fim de noite,
de susto, de “Redentor, que lindo”, de namoro infindo. Pão com salame parecia
ser o “gran finale” de todos nossos porres.
Continua na próxima
semana
2 comentários:
Sarava!
Poizé, rapaz... foi o Tião quem me apresentou o Afonsinho...
Ele estava voltando da Italia. estava com método, escrito por ele, de bateria.
Ai a gente fez varias farras otimas!
Mas têve um dia que ele me chamou pra ir la na casa do Juquinha, ali, colado
no Luna Bar do Leblon, onde a gente anoitecia e madrugava, quase todos os dias.
Depois que vim pra França, ainda falei, com ele virtualmente e la no myspace.
Passou para o Ponto das Saudades, esta Arvore que nunca para de crescer.
Saudadona, né?
Abraços
Heitor de Pedra Azul
* Ah! Na nite de 4 de dezembro de 2015 vamos reunir o povo la no Salsa&Cebolinha,
ali na Lapa, Av. Gomes Freire, quase em frente à TV - E. Ta marcado!
Parabéns! Saude!
Saravando...
Assim como os rios correm,
As estações renovam as cores da vida.
Uma bela manhã, um meio-dia preguiçosos,
Uma tarde morna...
Uma noite fêmea.
Queria o mundo agradar a paz,
Nos enterrar na solidão de um infinito sem fronteiras,
Onde o calabouço eternizasse o medo de ser.
Isto sem ter o desdobramento da eterna idade!
Nada é motivo pra dormir.
O sono leva aos sonhos...
E sonhar sonhando é como viver vivendo.
A realidade é, quase muda.
Mas, às vêzes, não pega.
Temos que nos recorrer à semente,
Ou revoltar ao canteiro nativo.
O jardim é sempre o mesmo.
Esta lua cheia ou nova
Que nos distancia, ou nos aproxima
A espera dos nossos abreijos sensuais
Nos cantos dos nossos encantos,
Nunca têve rumo, ou tempo.
Tudo é musica sem barras divisorias,
Nem ritmo certo.
Cada um soluça espontaneamente
E a poesia abre a Prima Vera!
Abraços
Heitor De Pedra Azul
Saint-Julien-les-Villas, 19/03/2015. França (Direitos autorais SACEM
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