10 de out. de 2016

Slotti: o traço interrompido



     
     Só agora, um mês exato, soube da morte em 02 de setembro de Sebastião Nozza Bielle Lotti, o meu amigo Tuíte, mais conhecido como Slotti, assinatura que dava aos seus trabalhos de artes plásticas. A notícia me chega hoje pela Revista Eletrônica “Chico´s” (nº 46, 22.09.2016), onde o poeta Antônio Jaime Soares fala dos contos de Slotti, que o artista tanto queria ver publicados. Ele chegou também a me mandar alguns desses contos, todos ótimos: além de grande artista plástico, Tuíte escrevia muito bem e tinha muita coisa pra contar. 
     O artigo dele que a “Chico´s” publica sobre o filme “Os dias com ele” é um texto emocionado e emocionante – pelo menos pra mim, que também fui/sou amigo (mesmo sem nos vermos há anos) do poeta e filósofo Carlos Henrique Escobar, atualmente auto-exilado num lugarejo perdido em Portugal. O filme que, como o Tuíte, também eu vi há alguns meses no Canal Brasil, é uma grande homenagem que a diretora Maria Clara Escobar, filha do filósofo, faz a seu pai. Eu e Escobar lançamos juntos livros de poemas na Ipanema dos anos 1970. Lembro-me que nossos livros foram impressos numa gráfica de Petrópolis e subíamos a serra para revisões pelo menos uma vez por semana – filosofando sobre poesia e política naqueles tempos de brutal repressão. Eu passei mais ou menos incólume por uma prisão, vamos dizer, “leve”, sem levar porrada – se se pode chamar de “leve” uma prisão no DOI-CODI dos tempos de Médici. Mas Escobar, não: ele acabou sendo barbaramente torturado. 
     Tuíte pouco saía nos últimos tempos, tomado por um enfisema, esse mal tenebroso que levou também há poucos anos nosso amigo Afonso Vieira, o Afonsinho. Nós nos telefonávamos às vezes – e lembro que quando organizei um número especial do Suplemento  Literário do Minas Gerais sobre Cataguases, em 2013, o chamei para ilustrar alguns poemas de minha prima e sua grande amiga, a poeta Lecy Delfim Vieira, que também já se foi (Gente, toda a nossa gente “está-se-indo”!). Tuíte vinha de uma internação, mas se entusiasmou e me disse que, mesmo respirando com grande dificuldade, ia fazer o possível para “mandar alguma coisa”, pois adorava a Lecy. Mas, ao me ligar tempos depois, dizendo que estava começando a fazer as ilustrações, a edição já estava fechada e mesmo os poemas da Lecy não puderam sair por falta de espaço. Não sei se ele terminou as ilustrações. Quem sabe não estão entre os guardados que deve ter deixado?
     Vou sentir saudade do artista plástico Slotti sempre que olhar para seus quadros; e do escritor, sempre que ler seus contos. Antônio Jaime diz que a família está disposta a publicá-los e “está somente dando um tempo, até passar o choque”. Mas vou sentir uma saudade maior mesmo é de meu amigo Tuíte, que não verei nunca mais. Em sua homenagem, volto a publicar a seguir uma crônica que se encontra em meu livro “Há Controvérsias-1”, de 2009, escrita quando da inauguração de sua mostra “Cabeças Cortadas”, na sala de exposições da Caixa Econômica, no Rio. Mas, antes, assino embaixo o que Antônio Jaime escreveu no “Chico´s” sobre ele: “minha agenda de amigos, pouco a pouco, vai ficando desfalcada, cada vez menos gente para aquele papo “sem meias-patacas”, como dizia Fábio Leite (irmão da cantora Maria Alcina), um dos que se foram. Jorge Napoleão foi outro. Amigo só tem um defeito: morrer antes da gente – disse alguém, creio que da equipe do finado jornal Pasquim”. 


 Slotti e Jorge Napoleão  :  saudosos artistas plásticos 

Glauber/Slotti
     Poucas pessoas são assim tão anos 60. Poucas ainda aquelas assim “ando meio desligado” como o Tuíte dos tempos do desbunde, o Sebastião Lotti de depois, esse Slotti de agora. Que ainda parece estar sempre “viajando”, com a mesma cara de antes, aquela que lembra mais Salvador Dali que o próprio. Surrealista como Dali – sem se desligar do figurativo ao longo de sua trajetória nesses últimos trinta anos, sem se distanciar da perfeição de suas máscaras – Slotti agora e aqui homenageia     Glauber Rocha com suas Cabezas Cortadas. “A função histórica do surrealismo no mundo hispano-americano oprimido foi aquela de ser instrumento para o pensamento em direção de uma liberação anárquica, a única possível”, Glauber dixit. 
    “Cabeças Cortadas”, esta mostra dos trabalhos atuais de Slotti (tenho até hoje em minha sala um quadro que ele me deu, “Trilogia da Terra”, um plano fechado dos pés de camponeses extraído do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber), nasceu do que ele chama de “minha indignação face ao que ainda não foi feito: a reforma agrária desejada em seu sentido mais objetivo”. Os Sem-Cabeça, os Sem-Terra. Tuíte-Slotti diz que os desenhos foram surgindo naturalmente, pois ele queria que as figuras brotassem sem se policiar quanto à forma. Quando saíam acadêmicos, acadêmicos ficavam. 
     De acordo com a emoção do momento, oscilavam entre figuras quase renascentistas e outras muito pelo contrário: absolutamente deformadas pela realidade, meio chegadas ao pop. “Pensei em terra, nos Sem-Terra. Surgiram imagens de Canudos, Lampião, essas imagens tão Glauber, tão do imaginário de Deus e o Diabo, filme que mexeu muito com minha cabeça nos anos 60”. Era o mesmo Glauber que nos anos 70 escrevia: “Cabezas Cortadas é um filme contra as ditaduras, é o funeral das ditaduras. Um encontro apocalíptico nas ruínas da civilização latino-americana, que desmonta todos os esquemas dramáticos do teatro e do cinema. O cinema do futuro será som, luz, delírio, aquela linha interrompida desde L’Âge d’ Or”.


aquela linha interrompida
    Conotação social, arte participante, aquele papo de engajamento. Parece um mundo antigo, efervescente e pleno de contradições, coisa defasada depois da queda do Muro de Berlim, das globalizações & outras mumunhas mais que nivelaram por baixo os anseios, como se refrigerassem nossas vidas. Quer dizer, nossas vidas em Ipanema. Porque, de resto, a coisa continua muito Minas Gerais, i.e., “está onde sempre esteve”. Estão aí os Sem-Terra e os Sem-Mesa. E Minas não surge aqui por acaso. Lá, como aqui, Slotti passou por álcool, drogas & amores mil. Mas amar, amar mesmo, só em Minas. O Rio de namorar: piração. Ipanema é sua praia, o mar desse mineiro de Miraí. De sua pequenina Miraí cujos códigos já transgredia aos 12 anos, naquele “Circo do Tuíte” onde era o trapezista, o diretor, o figurinista e principalmente o criador do strip-tease na roça: agreste, bucólico, corajoso – e precursor e pueril e patético.
     Os peitinhos de Lelena tinham somente 12 anos e ficavam de fora e eram como dois limõezinhos soltos enquanto Marlene cantava “Eva me leva/ pro Paraíso agora” e os meninos de Miraí, na faixa dos 14, se masturbavam num só delírio, num gozo conjunto e total. Os moleques gritavam em uníssono enquanto a Lelena do Lalá caía no picadeiro e saía rolando pra debaixo da cortina: o maior barato. Por razões mineiras, demandas matreiras e por isso mesmo óbvias, o “Circo do Tuíte” foi fechado e seu jovem trapezista – sem peitinhos, mas também com 12 aninhos – muda-se já com seus primeiros desenhos para a cidade grande. Quer dizer, a mais próxima: Cataguases, a Princesinha da Mata Mineira, que adota, elege e erige como cidade dos sonhos. Ou pelo menos trapézio para o mundo que desconheciansiava.
     Censurado no mato, censurado na praia. Na Ipanema dos anos 60, vamos encontrar o mineiro que inventou o strip-tease decorando as vitrines chiques do bairro, como aquelas da Bibba, um dos ícones fashion da década. A Bibba que lançava a moda mais up-to-date, as últimas vogas da swinging London, o que havia de mais “quente” na época. Tuíte, é claro, morava no Solar da Fossa, bicho. Pode crer. É isso aí, ali ao lado de todos aqueles artistas já meio conhecidos, aqueles Gil, aqueles Rogério Duarte, aqueles Caetano junto a quem sua timidez não deixava o papo se travar, perdão, se soltar. Ali no Solar lia Rimbaud e Jean Genet, mas ficava mesmo com o Livro Vermelho de Mao, ou “A Chinesa” do Godard, impressões fortes da juventude, aquela da Geração Paissandu. Sim, ele também estava lá, ô cara!
     “A arte é invenção, é o inconsciente do artista, o sonho, o imprevisto, a forma nova.”. Não por acaso, a frase é também de Glauber Rocha, o mesmo cara daquele “a política e a poesia são demais para um só homem: vão se esquecer de Lênin, mas não de Maiakovski”. Aquele “Glauber, profeta alado”, no dizer de Paulo Emílio Salles Gomes. Na Páscoa de 74, Tuíte utilizou alguns anjos na decoração da Bibba, ali na Maria Quitéria, onde hoje é o Empório 37 (ainda é?). Eram anjos de papelão, segurando um pássaro azul. Como os peitinhos da Lelena do Lalá, anjos de pauzinhos de fora, umas gracinhas. A repressão nada sabia do sexo dos anjos, nem podia. Os militares aplicaram o corretivo de praxe: fecharam a loja, cobriram anjos & vitrines com jornal e abriram processo de atentado ao pudor, o que deu a Tuíte seus 15 minutos de glória no Jornal Nacional, com direito a suítes em toda a mídia do país e até do exterior. Nunca se discutiu tanto o sexo dos anjos.
     Década de 60 sem Mauá não há. Slotti vai pra Mauá, a serra, e acaba no mar. Piração geral: meio desligado, troca as bolas e respectivas praias: achou que Mauá fosse a indefectível Praia de Mauá, permanentemente em estado de emergência. Ficou na lama durante um ano, chafurdando com os caranguejos e achou o maior barato, que nosso artista sempre foi de boa paz: “Mauá é ótimo. É uma estação onde D. Pedro parava, na Praia de Mauá, na Freguesia da Ajuda. A carruagem esperava e ele subia pra Petrópolis pela Estrada do Imperador.”. São de Mauá os anjos em ocre, com elementos terra, sempre a presença da terra, marcante nas paisagens tropicais, bucólicas. Mas eram também trabalhos impregnados pelo surrealismo. Nada de mar, marinas. A paixão de Slotti é a terra, o verde: flor, fruta, jamelão. Ainda Glauber Rocha: “O surrealismo para os povos latino-americanos é o tropicalismo”.

e retomada
     Meio desligado sim, mas em termos. Às vezes, um rebelde, antenado no acontecimento, participante. Aquele mesmo que foi preso durante o movimento estudantil, distribuindo panfletos de sua própria lavra & fabricação em plena Cinelândia. Um jovem indignado com a ditadura, trancafiado no Regimento de Cavalaria Caetano de Farias, ali onde aquele velhinho, perdão, aquele velho milico safado, pisava em seus pés e repisava, olhando fixo em seus olhos com aquele idiotal sorriso de desprezo: “Compositor, né?!!!”. Não era, apesar dos cabelos compridos. Mas guardou para sempre a humilhação. A mesma que devolve agora, nessa retomada da linha de protesto, aquela interrompida.
     De Miraí a Cataguases, de Ipanema a Mauá, dali a Pedra de Guaratiba, onde participa da Associação de Artistas locais, de Teresópolis a Anápolis, a Brasília. E de novo morando em Cataguases, não se sabe até quando, e agora e novamente em Ipanema. Trinta anos de Tuíte esta noite. Do expressionismo ao abstrato, é árido o mundo para esses olhos de espantalho. A expressão do que Slotti vê, o que sai de dentro si – porque quem de dentro de si não sai, bem o sabeis, vai morrer sem amar ninguém. A figura sempre predominando em todas as fases, o traço perfeito, marca, assinatura. A força, o impacto extraordinário desses olhos atônitos, semi-esbugalhados, que fixam o acaso. Muitas vezes o ocaso. 
     Mesmo quando se fragmentam, as figuras não são aleatórias: antes resultam de uma composição pré-moldada na memória. Um amálgama de vários matizes, tons de terra e violeta. Ocre. Verde, amarelo. Esta paleta tão tropical, tão Bandeira do Brasil. A Padroeira que veio impávida & coroada. Puro kitsch. Lona, arte povera. Desenhos & óleos, aquarelas, nanquim, estandartes. Esses estandartes tão marcantes em Deus e o Diabo, em Cabezas Cortadas. O amarelo, o vermelho tão Glauber/Rogério Duarte, a ressoar: “Não me exijam coerência. Não tenho resposta na boca para todas as coisas. Sou um artista, portanto meu processo é um processo dialético entre o fluxo do inconsciente e minha razão dialética. Assim, posso mudar a qualquer momento. Eu não tenho medo de criar, se tiver engenho e arte vou em frente. E é necessário não ser babaca, pois a babaquice é o maior inimigo do artista”.







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