“Na realidade, sempre fui um trem meio diferente, sabe? Ainda adolescente resolvi rasgar a roupa, desgrenhei o cabelo, exagerei na maquiagem e sai na rua... Levei até cuspida na cara. – Eu quero é conviver! A grande arte não é viver, é conviver!”. Mulher Maravilha foi o título sugerido por um repórter que preparava sua biografia. Com aquele “criança” de sempre, marca registrada, ela rebateu de pronto: “Criança, que coisa mais prepotente. Maravilha era a Simone de Beauvoir”.
Russa reciclada na roça: de Leningrado a Itabira do Mato Dentro, terra de Carlos Drummond de Andrade, onde passa a morar aos seis anos. Muito tempo depois, já famosa e falante de vários idiomas (o grego como carro-chefe), ouve na voz do próprio poeta: – Elke, eu sou doido por você! “Quase caí de bunda, né? Imagina o Drummond dizer que é doido por mim.”. Elke foi escolhida pessoalmente por Humberto Mauro para estrelar o filme escrito por ele, A Noiva da Cidade (1978): “Humberto Mauro é dever de casa”, disse ela em entrevista de 2012 a André Martins Borges. “Falo dele para alguns jornalistas, e eles nunca ouviram falar, imagina! Fui criada na roça e em Volta Grande (onde o filme foi rodado) estava na roça, com pessoas da roça. O ritmo daquelas pessoas... eu não era uma estranha no ninho. Talvez seja isso que Humberto Mauro tenha lido em mim”.
“Estou lembrando hoje de uma contemporânea minha do Colégio Estadual de Minas Gerais” – escreveu n´O Estado de São Paulo meu amigo e primo distante (ele lá, eu cá), o cronista Humberto Werneck: “alta, loura de cabelos longos e lisos, linda. Com sua lourice, sua estatura, seu porte desempenado, chamava atenção também por ter nascido na Rússia. Discreta, bem comportada até onde a vista podia alcançar. Tinha a deliciosa manha de arregalar os olhos ao sorrir”.
Na madrugada da terça-feira, 16 de agosto, Elke Grunnupp (Leningrado, 1945 - Rio, 2016), a Elke Maravilha, foi “brincar de outra coisa”, como ela dizia ao se referir à morte. A gente se trombou algumas vezes nessa vida, e sempre de forma inusitada. Assim foi, se lhes apetece.
Havia um debate sobre cinema brasileiro na Faculdade de Filosofia de Cataguases e sua diretora, Marília Cerqueira, convidou a mim e ao cineasta Paulo Martins para compor a mesa. Era aí pelos meados dos anos 1970 e Marília me disse ter convidado também sua amiga Elke Maravilha, que viria do Rio para o debate. Não entendi bem o que a esfuziante Elke, que então brilhava com suas perucas & penduricalhos no Programa do Chacrinha, iria fazer num debate sobre cinema.
Realmente, não podia imaginar. Mas ela chegou e logo cativou a todos. E nos deixou – a mim, ao Paulo e a toda plateia – espantados com sua verve, sua espontaneidade, a inteligência de seus depoimentos, a sagacidade de suas opiniões absolutamente pessoais sobre filmes e momentos de nosso cinema que sequer suspeitávamos. Tudo com o largo sorriso explodindo alegria, o sorrir desconcertante daquela ElkErudita.
Era dia de semana e os bares e todos os lugares já estavam quase fechados quando o debate terminou. Fora isso, Elke preferia que a gente continuasse o papo, vamos dizer, “cinematográfico”, num lugar tranquilo. Dei ideia de esticarmos prum bar na vizinha Leopoldina, uma parada de ônibus na Rio-Bahia que funcionava 24 horas. Dito e feito. Lembro que nos esprememos num fusca – Paulo, Marília e mais alguém (quem?) no banco de trás; o motorista, eu e Elke no da frente – ela à vontade, pimpona que só ela.
Meia-noite já em meio. Nem bem sentamos no bar de Leopoldina, nem bem pedimos a primeira cerveja, quando para um ônibus que ia pro Nordeste e desce aquele mundão de gente. Não deu outra: quando viram a Elke, nem acreditaram. Com aquela risada de quem já se acostumara com aquilo, ela acabou dando autógrafos e mais autógrafos até que o ônibus partisse e logo chegasse outro e mais outro e mais outros autógrafos e mais outros. Nosso papo tranquilo ficou pra algum dia, quem sabe.
A gente se encontrou depois, quando eu e Elke dormimos juntos num noite em Volta Grande, ainda nos anos 1970. Quer dizer: juntos, mas separados, se é que me explico bem. Eu havia marcado um café da manhã com Humberto Mauro, para continuarmos uma entrevista que estava fazendo com ele. Na véspera, à noite, eu acabara de chegar do Rio e estava na casa do Joaquim Branco, em Cataguases, diagramando uma edição especial do Totem sobre Rosário Fusco. Foi quando apareceu a Marília Cerqueira e me disse que também iria pra Volta Grande no outro dia, para se encontrar com a Elke, que estava lá filmando A Noiva da Cidade.
Dessas coisas que só acontecem em Cataguases, ou comigo em meus tempos etílicos, disse que não só daria uma carona como, quem sabe, poderíamos ir naquela noite mesmo pra Volta Grande: afinal, meu compromisso com Mauro era de manhã cedo. Pois bem, a noite já ia alta quando chegamos à casa que fora alugada pela produção do filme em Volta Grande. Marília dormia no meu carro enquanto eu fiquei na cozinha bebendo (eu levara a garrafa de uísque iniciada em Cataguases) com o saudoso Bola, o eletricista da equipe.
Era uma sexta-feira e o pessoal do filme fora pra Além Paraíba, à cata de algum baile, ou coisa que o valha. Só ficara a Elke, que tinha filmagem no outro dia cedo. Lá pelas tantas, Bola percebeu com toda a razão que, já meio encharcado de uísque, eu estava quase dormindo. Foi quando disse que no quarto da Elke havia uma cama sobrando. “Pô, Bola, deixa pra lá, disse eu com a voz pastosa, não vamos incomodar a Elke”.
Mas ele insistiu e acabamos batendo na porta. Elke abriu meio que dormindo e soltou aquele característico “Ô, criança, então entra!”. E voltou pra cama. Eu me ajeitei na outra cama e apaguei de vez. Quando acordei, Elke já tinha saído pra filmar e eu também saí apressado pro café da manhã com Mauro e Dona Bêbe. Até hoje não sei como consegui tomar aquele café com leite em meio a toda aquela ressaca.
Corta pros anos 1990. Vinte anos depois, eu vim a Cataguases para um Festival de Música e trouxe um casal de amigos, os poetas Cairo e Denizis Trindade, para fazerem uma performance durante a apresentação de minha música. Na volta pro Rio, Cairo lembrou-se que era dia do casamento (um dos) da Elke. O casal era muito amigo dela, que fora inclusive madrinha de seu casamento. Chegamos aí por volta de umas oito da noite ao pequeno apartamento de Elke no Leme – “caindo de kitsch”, absolutamente lotado, não só de convidados como coalhado de fotos nas paredes, aquelas paredes, como ela, também todas em rosa. O casamento começara às duas da tarde. Quem lá já estava, claro, era nossa amiga Marília Cerqueira que, quando me viu, foi logo gritando “Elke, Elke, olha quem está aqui, lembra daquela noite em Volta Grande?”.
De repente, me vi conversando com um cara com um turbante à la Arafat que me disse ter comprado em Berlim antes da queda do Muro & coisas & loisas talvez do Oriente Médio e de outras plagas – coisas, assim como loisas, que naturalmente não faço hoje a mínima ideia de quais sejam. Lembro que eu filmei nosso papo (Denizis levara sua câmera), mas essa fita se perdeu por aí. Sobraram trechos de outra, filmada naquela noite do casório pela Denizis. Lá pelas tantas, eu e Marília estávamos sentados no chão no quarto da Elke, quando aboletou-se ao nosso lado o noivo, um rapaz muito jovem, que me disse, assim como se falasse do calor, do mar azul e de outras amenidades: “Que mundo estranho! Sabe que eu já tive a Elke na ponta de minha mira? Eu era atirador de elite do exército e uma vez fui comandado a vigiá-la do alto de um prédio”.
“Nossa!”, pensei eu com meus parcos botões – na verdade, nenhum. “O que a Elke está fazendo com esse cara?”. O noivo saiu do quarto, Elke chegou e sentou-se ao nosso lado e ficamos falando qualquer coisa, assim sobre tudo, nada e amenidades afins. A madrugada rolando, aí pelas três, quatro, qualquer coisa assim. Ela sempre rindo muito, eu me perguntando aonde ia dar aquele casamento. De repente, assim sem mais nem menos, Elke trancou a cara e se levantou com suas botas cor-de-rosa, suas roupas idem, seus cílios, sua peruca ibidem, alta, muito alta, mais alta agora, quando eu a via em contra-plongée.
Abriu a porta do armário e começou a tirar roupas e mais roupas e, por fim, uma valise. Saiu do quarto e voltou em seguida com o noivo: “Pega tudo e some daqui, seu safado”. O que houve, o que não houve? Não sabíamos, não soubemos jamais. O noivo pegou tudo, jogou de qualquer jeito dentro da valise e sumiu cabisbaixo. Foi assim, como se não acontecesse, o dia-noite do simultâneo casamento-descasamento de Elke. Maravilha pura.
Em 1997, nas festividades do Centenário de Humberto Mauro em Cataguases, foram exibidos vários filmes do cineasta, sempre precedidos de um debate e sempre com o Edgar Cine-Teatro lotado, para surpresa do meu saudoso amigo Paulo Cesar Saraceni, que me disse ter chorado mais de uma vez durante a exibição de Ganga Bruta. Eu fui o apresentador e mediador desses debates, e me lembro que a Elke apresentou um deles junto comigo. Um par pura maravilha. Elke enorme como sempre, do alto de suas botas estilo chacrete, bem-humoradíssima, o eterno sorriso largo e solto. Eu, recolhido à humildade de meus parcos metro e sessenta e quatro acima do nível do mar, meu recorde até então e até hoje. Mas também descontraído: brincávamos com a plateia como se estivéssemos em casa.
E tivemos que brincar por um bom tempo, descontrair também o (in)distinto público (os spots impediam que o enxergássemos bem), aguardando a atriz Bete Mendes, atrasadíssima para o debate daquela noite. Foi quando nos informaram que ela estava numa cachoeira das redondezas, daí o atraso. Elke deu uma risada e uma píccola alfinetada: “Pois é, já que é Centenário do Humberto Mauro, ela levou a sério a máxima dele: “Cinema é cachoeira”. O público caiu na risada. Foi a última vez em que estive com ela.
Um comentário:
Sensacional!
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