23 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 3

O prazer do poema




Em seu poema “Uma voz”, diz Ferreira Gullar: “Sua voz quando ela canta/ me lembra um pássaro mas/ não um pássaro cantando/ lembra um pássaro voando”. O belo é uma alegria eterna – digo eu, numa tradução apressada do verso famoso de John Keats (1795-1821): a thing of beauty is a joy forever. Em “O prazer do poema”, antologia lançada em 2014, Gullar desfila todo um rol de poetas e poemas, daqui e dacolá, que o fascinaram ao longo da vida. Na introdução, ele escreve: “o propósito declarado é oferecer o poema como puro prazer de leitura e deslumbramento”. E cita o verso de Keats numa tradução literal, prosaica, um pouco mais apressada que a minha, sem preservar o ritmo e a métrica do poeta inglês: “uma coisa bela é uma alegria para sempre”. E afirma ainda: “todo poema só cumpre sua função quando a sua leitura resulta em prazer estético”.
 Prazer estético é sem dúvida o que me proporciona o seu poema “Uma voz”. Um poema “mais-que-perfeito”, com a surpresa, o inesperado dessa voz que lembra a beleza de um pássaro voando. Ritmado em redondilha maior, o poema pertence ao livro “Dentro da Noite Veloz” (1962/1975) e é dedicado à grande cantora lírica Maria Lúcia Godoy. Tendo entre seus “fãs de carteirinha” ninguém menos que o então presidente Juscelino Kubitschek, a soprano mineira Maria Lúcia ostenta – entre suas muitas glórias – a proeza de ser “a voz que deu voz” da melhor forma à Bachiana nº 5 de Villa-Lobos. Convidada especial de Juscelino, era dela a “voz maviosa” que se ouviu no Planalto Central em 1960, quando da inauguração de Brasília.
“La Godoy” – como sempre a chamei, brincando/reverenciando –, minha amiga Maria Lúcia, que não vejo há tempos, sempre se recorda com grande orgulho do belo poema que Gullar lhe dedicou. Ela ia dizer – para minha grande honra – alguns dos poemas de meu livro mais recente, “o mar de outrora & poemas de agora”, quando do lançamento em Belo Horizonte, em 2014, mas não pôde ir devido a uma forte gripe. De lá pra cá não mais nos vimos, mas soube que “La Godoy” recebeu em setembro último, do alto de seus 92 anos, o título de Doutor Honoris Causa da UFMG. Mais que merecido.
Mas o papo é sobre Gullar. Então, vamos lá. Com rima & tudo. Numa tarde de 1980 fui até a Biblioteca do Banco do Brasil (hoje no CCBB/Rio), então localizada no mesmo prédio da Av. Presidente Vargas onde eu era um dos redatores da Revista Cacex. Passava sempre por lá, para alguma pesquisa e também para papear com meu amigo, o poeta e hoje grande e irreverente sonetista Glauco Mattoso – então editor do ousado e abusado “Jornal Dobrasil” –, que lá trabalhava e ainda não fora totalmente tomado pelo glaucoma (daí seu pseudônimo) que o cegaria poucos anos depois. Glauco perguntou se eu ia ao lançamento do livro do Gullar, numa livraria das proximidades. Não sabia, mas logo combinamos de ir juntos.
“O anjo é grave/ agora./ Começo a esperar a morte”.// (...) “Onde jorrara a fonte, jorrara/ a fome. Onde jorrara/ a morte, jorrara/ a fonte. Aqui/ jorrara a fonte”.// O livro que estava sendo lançado era a reunião de poemas de Gullar, “Toda Poesia”, um abrangente balanço de sua obra poética até então, que abria com um prefácio altamente elogioso de Sérgio Buarque de Hollanda: “De Ferreira Gullar pôde escrever Vinicius de Moraes que é o último grande poeta brasileiro. Parece-me a mim, além disso, que, exceção de algumas peças de Mário de Andrade e também de Carlos Drummond de Andrade (mormente em Rosa do povo), é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje”. (...) “Para a singularidade e a importância de sua contribuição, só encontro comparável, no Brasil, a prosa de Guimarães Rosa”.
Tenho aqui em minha mesa o “Toda Poesia”, devidamente autografado por Gullar, com grande parte de seus poemas marcados, os mesmos que anteriormente já grifara em suas primeiras publicações, que possuo ainda hoje – de A Luta Corporal (1954) ao Na Vertigem do Dia (1975-1980). Hábito antigo esse meu, de destacar as pedras-de-toque dos poemas/textos de que gosto, ou que julgo importantes, e que conservo ainda agora. Aquelas palavras-chave – highlights, punti luminosi – que saltam de sua poética: tempo, tarde, bananas (podres, quase sempre): “Naquele canto/ em sombra/ da quitanda/ a tarde – o tempo/ o sol da tarde/ nas bananas virava mel/ (aliás/ mais água/ do que mel)/ na boca/ de Newton Ferreira/ a mesma/ tarde (de fachadas/ e espelhos)/ falava português/ e ria/ (na saliva)/ ou talvez/ não/ mas sem dúvida alguma/ se esvaía”.
A tarde, o mar, a morte
A tarde, aquela tarde que se fixa numa “fotografia aérea”, de certa forma antecipadora da atmosfera coloquial do Poema Sujo: “Eu devo ter ouvido aquela tarde/ um avião passar sobre a cidade/ aberta como a palma da mão/ entre palmeiras/ e mangues/ vazando no mar o sangue de seus rios/ as horas/ do dia tropical/ aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos/ no jardim/ eu devo ter ouvido/ aquela tarde/ em meu quarto/ na sala/ no terraço/ ao lado do quintal?/ o avião passar sobre a cidade/ geograficamente/ desdobrada”.// “(...) o ronco do motor enquanto lia/ e ouvia/ a conversa da família na varanda/ dentro daquela tarde/ que era clara/ e para sempre perdida// “(...) meu rosto agora/ sobrevoa/ sem barulho/ essa fotografia aérea./ Aqui está/ num papel/ a cidade que houve/ (e não me ouve)/ com suas águas e seus mangues/ aqui está/ (no papel)/ uma tarde que houve/ com suas ruas e casas/ uma tarde/ com seus espelhos/ e vozes (voadas/ na poeira)/ uma tarde que houve numa cidade/ aqui está/ no papel que (se quisermos) podemos rasgar”.
Ou o mar, o mar ainda. O mar de sempre, recorrente em Gullar. Mar sem rima: “Vê o céu. Mais/ que azul, ele é o nosso/ sucessivo morrer. Ácido/ céu”.// “(...) Despreza o mar acessível/ que nas praias se entrega, e/ o das galeras de susto; despreza o mar/ que amas, e só assim, terás/ o exato inviolável/ mar autêntico!// (...) Eu ouço o mar; sopro, caminho na folhagem./ Mirar-nos límpidos no susto das águas escondidas!,/ a alegria debaixo das palavras”// (...) o mar buzina/ voz de ostra garganta dos séculos fósseis/ corneta perdida/ o que nos diz essa voz de cal?// (...) Beleza oh pura pura/ o que te ofereço? O auriverde pendão da minha terra?”.
A tarde e o mar (l´éternité de Rimbaud, quem sabe?) se reencontram nesse pungente poema que bate “no clarão da lembrança” (não por acaso tem a “Memória” como título) e que passo a vocês, intacto:  “menino no capinzal/ caminha/ nesta tarde e em outra / havida// Entre aurora e mata-pastos/ vai, pisa/ nas ervas mortas ontem/ e vivas hoje/ e revividas no clarão da lembrança// E há qualquer coisa azul que o ilumina/ e que não vem do céu, e se não vem do chão, vem/ decerto do mar batendo noutra tarde/ e no meu corpo agora/ – um mar defunto que se acende na carne/ como noutras vezes se acende o sabor/ de um fruta/ ou a suja luz dos perfumes da vida/ ah vida!”.
Num dos poemas de “Dentro da noite veloz”, publicado em 1975, Gullar como que previa o decorrer de sua morte: “Se morro/ o universo se apaga como se apagam/ as coisas deste quarto/ se apago a lâmpada:/ os sapatos-da-ásia, as camisas/ e guerras na cadeira, o paletó-/ dos-andes,/ bilhões de quatrilhões de seres/ e de sóis/ morrem comigo.// Ou não:/ o sol voltará a marcar/ este mesmo ponto do assoalho/ onde esteve meu pé;/ deste quarto/ ouvirás o barulho dos ônibus na rua;/ uma nova cidade/ surgirá de dentro desta/ como a árvore da árvore. // Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens/ a mesma história que eu leio, comovido”.
 Ao que parece, este poema foi feito depois, ou logo depois, do Poema Sujo, e traz embutido um conceito (“árvore dentro da árvore”) que Gullar foi buscar numa leitura que fez, ainda no Chile, de um livro de Lenin. Isso antes do surgimento do Poema Sujo, que aconteceu em Buenos Aires. Ao comentar sobre a feitura de seu longo poema, na gravação que fez em 2015 no Instituto Moreira Salles, Gullar lembrou-se do livro de Lenin e de quando este citava Hegel, quando o filósofo alemão abordava a relação entre particular e universal, dizendo que “a árvore está no ramo da árvore”.
     E Gullar só foi entender o significado disso mais tarde, já na Argentina. E acabou, em setembro de 1975, partindo do conceito para elaborar o fecho (que estava “travado” há quase um mês) do Poema Sujo, que foi escrito entre os meses de maio e outubro daquele ano: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ (...)/ mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa/ o homem, por exemplo, não está na cidade/ como uma árvore está/ em qualquer outra/ nem como uma árvore/ está em qualquer uma de suas folhas”. Interessante ainda nos lembrarmos que, vinte anos antes de saber da “árvore hegeliana”, Gullar já registrava a palavra árvore solta de seu significado árvore, a palavra em plena autonomia, “árvore-árvore”, como no famoso poema concreto dos anos 1950:
árvore

árvore
árvore
árvore


Contexto histórico
            Poemas de participação social, de um pensar sobre o mundo, de um situar-se no “contexto histórico”, como se dizia na época, permeiam “Toda Poesia”, toda a vida: “Não se trata do poema e sim do homem/ e sua vida//(...) // Não se trata do poema e sim da fome/ de vida,/ o sôfrego pulsar entre constelações/ e embrulhos, entre engulhos./ Alguns viajam/ vão/ a Nova York, a Santiago/ do Chile. Outros ficam/ mesmo na Rua da Alfândega, detrás/ de balcões e guichês./ Todos te buscam, facho/de vida, escuro e claro”.// “(...) Vista do alto,/ com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade/ é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém./ Mas vista/ de perto/ revela o seu túrbido presente, sua/ carnadura de pânico; as/ pessoas que vão e veem// (...) // São pessoas que passam sem falar/ e estão cheias de vozes/ e ruínas. És Antônio?/ És Francisco? És Mariana?/ Onde escondeste o verde/ clarão dos dias/ Onde/ escondeste a vida/ que em teu olhar se apaga mal se acende?// (...) Mas, dentro, no coração, eu sei,/ a vida bate./ Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,/ sob as penas da lei,/ em teu pulso,/ a vida bate./ E é essa clandestina esperança/ misturada ao sal do mar/ que me sustenta/ esta tarde/ debruçada à janela de meu quarto em Ipanema/ na América Latina.
Ou ainda, nesse outro poema-constatação: “Onde está/ a poesia? Indaga-se/ por toda a parte. E a poesia/ vai à esquina comprar jornal.// Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire./ Exegetas desmontam a máquina da linguagem./ A poesia ri.// (...) Poesia – dever a vida com palavras?/ Não – libertá-las,/ fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-/ esia – falar/ o dia/ acendê-lo do pó/ abri-lo/ como carne em cada sílaba, de-/ flagrá-lo/ como bala em cada não/ como arma em cada mão// E súbito da calçada sobe/ e explode/ junto ao meu rosto do pás-/ saro? O pás-/ Como chamá-lo? Pombo? Prombo? Como?/ Ele/ bicava o chão há pouco/ era um pombo mas/ súbito explode/ em ajas brulhos zules bulha zalas/ e foge!/ como chamá-lo? Pombo? Não:/ poesia/ paixão/ revolução”.
“O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,/ relógio de lilases, concretismo/ neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,/ que a vida/ eu a compro à vista aos donos do mundo./ Ao peso dos impostos, o verso sufoca,/ a poesia agora responde a inquérito policial militar.//Digo adeus à ilusão/ mas não ao mundo. Mas não à vida,/ meu reduto e meu reino./ Do salário injusto,/ da punição injusta, /da humilhação, da tortura, /do terror,/ retiramos algo e com ele construímos um artefato/ um poema/ uma bandeira”.


Continua na próxima semana

2 comentários:

Anônimo disse...


Beleza, Werneck, mas discordo do trecho
“De Ferreira Gullar pôde escrever Vinicius de Moraes que é o último grande poeta brasileiro. Parece-me a mim, além disso, que, exceção de algumas peças de Mário de Andrade e também de Carlos Drummond de Andrade (mormente em Rosa do povo), é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje”. (...) “Para a singularidade e a importância de sua contribuição, só encontro comparável, no Brasil, a prosa de Guimarães Rosa”.
Se é assim, o que é a tua própria poesia, Werneck? E a de Affonso Romano de Sant´Anna? E a de Alexandre Guarnieri?

W. J. Solha

fernanda lopes disse...

Os poemas de Ferreira Gullar são indiscutíveis!