“De frio e fome/ cobertos apenas pela chuva/ eles morrem às dezenas,/ vindos do país do nada/ para o nada caminhando” – escreve Joaquim Branco na abertura de seu poema “Refugiados”, que dá título a esse novo e belo livro do poeta cataguasense. Não foi à toa que Platão expulsou os poetas da República, deixou-os fora do Banquete. Quando conscientes, poetas são perigosos. Poetas apontam o caos do cotidiano. Poetas são refugiados do sistema. Poetas são refugiados até mesmo da literatura.
E
refugiados podem um dia insurgir, recusar, rebelar-se contra as injustiças: “Caminham em paralelas/ para o
infinito ou para a morte/
sobre os trilhos que os libertem/ da difícil batalha contra a sorte". Exatamente como
fazem os poetas da recusa, antenados com o mundo à sua volta. Não só com poemas
participantes, de protesto, como com aqueles outros, os poemas visionários,
antecipadores, que vão de encontro à arte tradicional. Nada mais são que também
refugiados esses poetas que fabricam seus poemas de recusa.
“Braço
que acusa o acaso”, escreveu Augusto de Campos em sua elegia para o poeta Mário
Faustino, o ´aeromorto´. O mesmo Augusto que nos diz em seu livro “Poesia da
Recusa” (Ed. Perspectiva, 2006): “Em defesa de Mallarmé, afirmou
Valéry, certa vez, que o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se
opera por meio de recusas. A melhor poesia que se praticou em nosso tempo
passou por esse crivo. Da recusa estética (Mallarmé) à recusa ética
(Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa poesia,
baluarte contra o fácil”.
E
Augusto se estende em seu rol de recusas: “A maioria das pessoas quer o consolo do
entretenimento, arte fácil e descartável para descansar a cabeça, ‘esquecer da
vida’, e não para problematizar-se. O que quer, afinal, Mallarmé,
com tantos enigmas? Conhecer-se. Romper os limites da linguagem para
compreender e exprimir melhor as angústias humanas diante do enigma supremo da
vida e da morte. Revitalizar a própria linguagem, dando-lhe um sentido mais
puro”.
Exatamente o que
quis e quer Joaquim Branco em seus longos anos de ofício literário. Nós nos
conhecemos – melhor, nos aproximamos e começamos a trocar ideias e dar início à
fabricação de nossos projetos literários – lá nos longes de uma Cataguases dos
anos 1960. Uma amizade que se solidifica a cada minuto, que é também (evoé,
Cassiano Ricardo!) “um século XX”, já devidamente extrapolada para este século
XXI.
E conhecer o homem,
o amigo Joaquim Branco, é conhecer um ser em toda a sua dignidade, um
intelectual íntegro, é saber das “recusas” representadas por seus trabalhos –
da qualidade, da coerência de sua obra que se perpetua em sua já longa
trajetória. É saber de suas incursões pelos vários movimentos que foram surgindo
– concretismo, práxis, poema processo, poema postal, poema visual – que
demonstraram o poeta atento ao seu tempo.
E essa
“curiosidade” – impressa na produção de poemas que remetem a esses movimentos, como
os que se encontram em seu novo livro, com suas artesanias & artimanhas de
expressiva visualidade – me faz lembrar as investidas do citado Cassiano: exatamente
como o Joaquim de hoje, um poeta já de “longo curso”, que também participou
ativamente dos movimentos da poesia concreta e da poesia práxis, antes de criar
os seus linossignos.
“Refugiados” revela
novíssimos poemas, grande parte escritos em 2017, e traz uma bela capa idealizada
pela filha do poeta, Natália Tinoco – que imprimiu ótimo tratamento na foto dos
refugiados, alguma coisa meio “flou”, impressionante,
como se suas almas pairassem sobre eles. O livro demonstra mais uma vez a vitalidade de Joaquim
Branco – a quase magia de perpassar pelos vários momentos atravessados pela
vanguarda nas últimas décadas sem perder a autenticidade, sem se deixar levar
por aqueles falsos criadores de meras cópias, de simples pastiches.
Esses poemas, como
sempre tonificados por instigantes pedras-de-toque, têm sua marca, sua
assinatura, essa dicção própria e sempre inovadora que há muito tempo me
fascina. Às vezes seus versos brancos e
livres podem nos lembrar alguma coisa dos primórdios do modernismo, mas logo
percebemos terem a chancela inconfundível dos versos “branco Joaquim”,
articulados por harmônicos enjambements.
Em 1939, ao perder
seu grande amigo, o poeta inglês W.H. Auden escreveu Funeral Blues, uma
das mais belas elegias de todos os tempos, que ficou mais conhecida pelo filme
“Quatro Casamentos e um Funeral”. Na ótima tradução de Nelson Ascher,
transcrevo os dois derradeiros quartetos, e logo digo o porquê: “Era
meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto/ viveu,
meus dias úteis, meu fim-de-semana,/ meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;/
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.// É hora de apagar estrelas
— são molestas —/ guardar a lua,
desmontar o sol brilhante,/
de despejar o
mar, jogar fora as florestas,/ pois nada
mais há de dar certo doravante”.
E agora sim, o porquê da citação de Funeral Blues: em 2014, Joaquim
Branco perde sua esposa e logo escreve uma também pungente elegia, “Folhas
Caídas”, que se encontra nesse livro “Refugiados”. Ele parte da canção popular
“Se essa rua fosse minha”, mas inverte o sentido satírico, parodístico, produzindo
versos de extrema delicadeza, de intensa comoção. Um poema pautado pela perda,
mas que não acena para “apagar estrelas” como o de Auden – antes sinaliza para
o súbito acender de uma nova estrela, pelo ascender da amada que partiu.
Termino com esse tocante poema de Joaquim Branco para Sonia Regina, comovido
como da primeira vez que o li:
FOLHAS CAÍDAS
Na via-crucis desta
rua
mora um anjo que se
chama Sonidão.
Se eu pudesse eu
mandava ladrilhar
seus passos para que
ficassem
na terra que os viu
passar.
Na via-láctea do
sonho, uma estrela
no céu da tarde se
fez
além de Órion
e vai brilhar pela
primeira vez
no voo orbital do
Sol.
Na via-férrea deste
outono
– entre folhas
caídas –
uma entre mil outras
renasce,
como se o céu se abrisse
para não deixá-la
cair
(injustamente)
para sempre
na impossibilidade
do não-ser.
Ronaldo Werneck
Cataguases,
09.08.17
“Refugiados”, de Joaquim Branco
Editora do Autor, 61 pp
Cataguases MG, 2017
R$ 20,00
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