5 de jul. de 2018

Na Toscana e em Paris: Cendrars & dos Passos


Logo após o fim de semana em que assistimos ao show de Caetano com seus filhos em Juiz de Fora e ao Rei da Vela no Rio, Patrícia e eu voamos pra Londres, na segunda-feira, 23 de abril, início de um giro pelas Oropas. Pintou a primavera, pintou sol e vento no Hyde Park, pintou poema:

             o sol no hyde park


Lá em Londres vez em quando me sentia                     longe daqui
(Gilberto Gil)


um só sol de soslaio havia assim
havia um vento só um vento que cortava
um só vento que vinha e ali só havia

vinha ventando lá de paddington station
encanava em sussex garden vento dobrando
de novo na bayswater road em vendaval

esse vento fortíssimo que nos levava
pra lá pra cá pra lá pro sol de hyde park
como gil para os verdes gramados de lá

como em antonioni num longo blow-up
paisagem que se amplia em desencontro
sol que cega de luz e ver de tanto verde

nada de vento aqui só sol e claridade
a primavera invade o sol de hyde park
o verde o lago cinza o sol os cisnes brancos.

Dias depois, em Florença, jantamos com meu amigo, o jornalista e escritor Alberto Villas. Não nos víamos há quase 40 anos: a última vez foi em Paris, 1979. Alberto estava em trânsito pela Europa “livrando-se de um livro”, se é que me explico bem: a gente se livra de um livro quando ele está pronto – o encargo passa ao leitor. Três dias entre Medicis, Michelangelos, diante de David e Dante e de um pôr de sol de não se pôr defeito – um pôr de sol porreta e circunflexo que só quando sobre o Arno em Florença: Nessuna meraviglia dura più di tre giorni, diz o ditado. Rebato eu: Ma tre giorni possono essere l'eternità.


Ana Paula Farnzoia, Alberto Villas, RW e Patrícia Barbosa: Florença, abril 2018

     Deixamos a eternidade fiorentina para trás e alugamos um carro, a bravíssima Giulietta (Masina!) – e giramos Toscana aforadentro por uns bons e belos quatro dias.


A Torre torta e o Tirreno: de novo o Arno e sua foz, o sol da tarde que cinzazula a Marina de Pisa, esse mar que não afoga, esse mar que afaga as brancas pedras da praia. Arezzo, Vinci, Siena,San Gimignano:


       

         a lua na toscana




num plano geral
num largo longuíssimo
longshot
o sol se desensolara
escapa na linha de fuga
sol que some
e azula a paisagem

no ar um odor de almíscar
em plano próximo americano
namorados se lambuzam de beijos
e chianti e fartos afagos

é primavera e essa lua
essa lua-lua tamanha
lua que explode companheira
e nos segue nos acompanha
pelas tortas trilhas toscanas.


Flanando por Saint-Germain
Em meados de maio, Beaudelaire a tiracolo, flanamos mais uma vez por Paris. Não, desta vez não fomos ao Café de Flore – e por isso novamente, como sempre, me desencontrei do Chico Buarque. Com quem, aliás, nunca me encontrei em Paris. Parece que ele e seu show “Caravanas” andavam por Lisboa na época.  Soube que há poucos dias, já em Paris, Chico e sua nova namorada foram mais uma vez molestados por aquele bando de brasileiros babacas que vivem enchendo o seu saco. Mas Chico é maior que isso.


     Caminhamos mais uma vez pela calçada onde havia a pequena La Hune, minha livraria preferida em Paris, destruída por um incêndio em 2017. Há logo ali uma mega livraria, L´écume des pages. Passamos pela espuma de sofisticadas páginas, pelo Deux Magots, pelo Flore. Não paramos: a livraria e os dois cafés estavam lotados. Mas perambulamos novamente por Saint Germain-des-Près, rumo ao Museu Delacroix, agora para “cumprir a missão” comandada por minha filha Ulla: comprar uma daquelas gravuras dos tigres do grande pintor francês. Aqueles tigres que ficaram como assinatura do mesmo Delacroix  que dizia nem sempre necessitar a pintura de um tema – o que de certa forma abriu caminho para a arte de vanguarda que viria na virada do século XIX.
Depois de Delacroix, parada estratégica na Rue de Buci.  Café de Paris: “un verre de vin et un filet tartare” – esses bocados de felicidade que esquentam, invadem, deliciam a alma. Fomos "fazer o quilo” às margens do Sena, em meio à floresta de estampas, bugigangas  e livros dos buquinistas. Encontrei um Fellini que desconhecia Les propos de Fellini (Éditions Buchet/Chastel/Paris, 1980), escrito pelo próprio; e o Les Mots de Sartre, na edição francesa de 1964 da Galimard. É o meu Sartre preferido, mais um que sumiu de minhas estantes, lido em português na Bahia de 1964 quando de sua primeira publicação no Brasil pela Difusão Europeia do Livro.

Dos Passos: Cendrars



Sartre me leva ao poeta e romancista norte-americano John dos Passos (1896-1970), de quem ele dizia ser, simplesmente, “le plus grand écrivain de notre époque”. E John dos Passos me leva ao poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961): de outra feita em Paris, há coisa de uns dois anos, encontrei na Shakespeare Library uma tradução para o inglês realizada em 1931 por Dos Passos para Le Panama ou les Aventures de mes sept oncles, que foi acrescida de novos poemas de Cendrars em 1959.
Publicado em 1994, o livro traz ainda belas ilustrações a cores do próprio John dos Passos. São histórias mirabolantes das aventuras dos sete tios de Cendrars, contadas pela mãe do poeta, e que povoaram sua infância, como quando ela recebia, devidamente deslumbrada, as cartas de seus irmãos, com selos “exotiques” e envelopes com versos de Rimbaud: ces lettres avec les beaux timbres exotiques que portent les vers de Rimbaud en exergue.
Poeta influenciado e influenciador do cubismo, romancista, eterno globe-trotter (quase tudo que escreveu girou em torno de suas constantes viagens pelo mundo), malabarista de palavras e até de music-hall (num deles conheceu em Londres um “promissor palhaço” chamado Charlie Chaplin), Blaise Cendrars foi mesmo um intelectual de peso e um ser fascinante.
No prefácio de sua tradução, escreve John dos Passos: “Poetas como Cendrars e Apollinaire (os dois eram grandes amigos) formam a linha de frente, bandeiras das barricadas cubistas num grupo onde despontavam Picasso, Modigliani, Marinetti, Chagall (que tinha Cendrars como seu melhor amigo) e que influenciou profundamente Maiakovski, Meyerhol, Eisenstein e as ideias que continuaram com Joyce, Gertrude Stein e T.S. Eliot”.

Aux jeunes gens de Catacazes
Não é pouco. Mas, como eu já disse certa vez, “todo mundo é de Cataguases. Inclusive quem não é”. Cendrars, como todo mundo, acabou virando cataguasense. Amigo de Oswald de Andrade, de Tarsila, de Paulo Prado, Cendrars veio várias vezes ao Brasil e numa delas acabou escrevendo em 1927 um poema para os rapazes da revista Verde: Aux jeunes gens de Catacazes.

Araras, São Paulo, 1924: Blaise Cendrars entre Olívia Penteado e Tarsila do Amaral.
 Mãos no bolso, chapéu na cuca, Oswald de Andrade.

    Possivelmente influenciado por conversas com Oswald, um dos entusiastas da revista de Cataguases, Cendrars acabou trocando as bolas, ao citar em seu poema a modernista Klaxon em lugar de Verde. Um poema publicado com orgulho pelos cataguAses em sua revista, repeitando os “erros” do poeta: Tango vient de tanguer/  Et jazz vient de jaser/  Qui importe l´etymologie/ Si ce petit klaxon m´amuse? Blaise saudava com entusiasmo a “buzina dos catacazes” – não importando se vinda de um soturno e triste tango ou do brilho, da alegre algaravia do jazz.
Então, se de outra feita em Paris encontrei o livro de Dos Passos/Cendrars na Shakespeare, desta vez encontro-me novamente com Cendrars num dos buquinistas do Sena. Ali dou de cara com a alentada (750 páginas) e ilustradíssima segunda edição da biografia de Cendrars escrita por sua filha Miriam: Blaise Cendrars – la Vie, le Verbe, l´Écriture (Éditions Denoel, Paris, 2006). Como introdução, Miriam Cendrars colocou um texto do próprio Blaise escrito no Brasil, datado do Guarujá em 15 de março de 1926, onde o poeta reafirma não gostar lá muito da paz de espírito: Je me reserve le droit de tout réveiller. Acordar, despertar para a aventura foi mesmo um dos emblemas seguidos à risca por Cendrars.



Miriam transcreve parte da intensa troca de cartas de Cendrars com escritores brasileiros, particularmente Paulo Prado. E naturalmente refere-se ao excelente estudo de Alexandre Eulálio “A aventura brasileira de Blaise Cendrars”, de 1978 (há uma edição mais recente, de 2001, da Edusp). Por intermédio de nosso amigo em comum, o poeta Francisco Marcelo Cabral, eu encontrei-me algumas vezes com Alexandre Eulálio (primo do também meu amigo, o saudoso cineasta David Neves) no Rio – e estive inclusive com ele quando do lançamento desse seu livro numa galeria do Shopping da Gávea.
Como ressalta Miriam, citando o livro de Eulálio, “as viagens de Cendrars ao Brasil entre 1924 a 1929 foram em número de cinco, com estadas mais ou menos longas dependendo das circunstâncias. Duas outras, em 1934 (à Amazônia) e em 1935 (por Buenos Aires), como correspondente da imprensa parisiense, foram completadas por uma última, em 1953, seu adeus ao país amado”. Desde Paris, estou lendo aos poucos e gostando aos muitos do livro de Miriam sobre seu pai Blaise Cendrars.

Apollinaire e a Ponte Mirabeau
    Como no diálogo do filme Casablanca, “nós sempre teremos Paris”.  Então mais uma vez “tivemos Paris” – e era mais uma vez uma primavera de clima ameno e azul intenso. Havíamos por coincidência tomado um café na Rue Apollinaire quando descemos para o Sena, o Sena sempre a correr sob a Ponte Mirabeau, onde encontra-se incrustado o  decassílabo famoso do poeta: Sous le pont Mirabeau coule la Seine. E, trazida pelas águas, a voz de Apollinaire (quem sabe refletida na de Cendrars) mesclava-se numa velha gravação à do também poeta e músico Léo Ferré: Sous le pont Mirabeau coule la Seine/ Et nous  amours/ Faut-il qu´il m´en souvienne/ La joie venait toujours après la peine// Passent les jours et passent les semaines/ Ni temps passé/ Ni les amours reviennent/ Sous les pont Mirabeau coule la Seine// Vienne la nuit sonne l´heure/ Les jours s´en vont je demeure.




Ou na precisa tradução de Décio Pignatari: “Que venha a noite e soe a hora/ Os dias se vão não vou embora/ Os dias passam passam mas que pena/ Passado amor/ Nenhuma volta acena/ Na ponte Mirabeau se vai o Sena/ A noite venha sem demora/ Eu fico e o tempo vai embora”. Pois é, eu fico, nós ficamos, afinal era, é ainda, primavera em Paris – toda aquela claridade, aquela luz intensa de não se acabar. Ficamos, fiquemos então com Cole Porter: I love Paris in the spring time/ I love Paris every moment/Every moment of the year/ I love Paris, why oh why do I love Paris/Because my love is here.
Era então maio e todas as tevês, todos os livros, jornais, revistas, toda a mídia, toda ela, todos, todos eles, toda Paris – só se falava daquele maio de 50 anos atrás. Daquele maio de 68 – aquele “carnaval”, aquele chienlit segundo De Gaulle – da força da palavra de (des)ordem de Daniel Cohn-Bendit. A Paris do maio de 1968, com os estudantes e operários tomando as ruas, as ruas que repercutiam com toda a força aquele “é proibido proibir”: a imaginação no poder. Não havia como não me lembrar da voz do Caetano ecoando desde 1968, renovada desde dias atrás em Juiz de Fora: “É proibido proibir! Marielle Presente! Lula Livre!”.

Continua na proxima semana.

7 comentários:

Carlos Alberto Mattos disse...

Delícia deambular desse jeito, com a poesia no peito. Mês que vem vamos londrear

Anônimo disse...

Uma delícia de texto, de viagem, e de forma de compartilhar com os amigos. Aguardo a continuação. Boa viagem com muita poesia.

Carlos Sérgio Bittencourt disse...

Viajei junto com as palavras do poeta e cronista maior, relembrando fatos, paisagens e pessoas da história cultural contemporânea. Bravo!

fernanda lopes disse...

Viagem incrível!!! principalmente com sua poesia na alma!!!

Unknown disse...

Belas cenas junto ao Sena.

maria helena leal lucas disse...

¡¡¡ SUPER !!! + ... Muitos recuerdos & Felicidade ¿¿¿ besotlisss de CORAZÓN em cada "1".

Tamir disse...

Que delicia ler sua poética viagem,Ronaldo!
Parabens grande poeta!!!

Espero mais…

Um grande abraço!