“Brasil, meu nego/ Deixa eu te
contar/ A história que a história não conta/
O
avesso do mesmo lugar/ Na luta é que a gente se encontra”. Este texto é da
hora: eu o inicio exatamente às 18:32 h do dia 06 de março e a Mangueira acaba
de ser consagrada campeã do carnaval carioca de 2019. E assim, e não por acaso,
meu texto abre assim-assim, propositadamente em cima da hora com o samba-enredo
campeão, de Ronnie Oliveira, Márcio Bola e Syvio Mamma (compositores de Volta
Redonda) e dos cariocas Deivid Domenico, Tomaz Miranda e Danilo Firminio. “História
para ninar gente grande” é um belo e corajoso samba que fez vibrar e lavou a
alma do público, não só o que estava no Sambódromo do Rio, mas o que vem sendo
sufocado pelas sandices do tal “viés ideológico” e outras maluquices que
chegaram aos borbotões desde que o Brasil viu raiar não a liberdade, mas
tenebrosas trevas desde o alvorecer (melhor, anoitecer) deste 2019.
Mas vamos prosseguir, que a comissão
de frente já passou e não podemos atrasar o andamento de nossa querida Escola.
Sem partido? Não; isto é, sim. Com o coração como partido. “Brasil, chegou a
vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Dá um nó na garganta ver a
efígie de Marielle Franco (Presente!) estampada naquelas bandeiras que esvoaçam
pela passarela. O que me leva – sempre, ainda agora – àquela noite de 14 de
março do ano passado, noite de seu assassinato, noite em que escrevi “A voz da
morta”, aquele poema para ela, aquele poema depois musicado por minha amiga
Thaylis Carneiro: “a
voz que vaza/ em todas casas/ cale-se
não/cale-se não/ a voz que porta/
tudo que importa/ a voz da morta/ cale-se não/ cale-se não”.
E o Brasil, meu dengo, meu realengo, palpável,
real, esse Brasil lindo e trigueiro, esse Brasil brasileiro que não é
imaginário, que não é coisa de coiso algum, tá oukei? Esse Brasil que agora ovaciona a Estação Primeira, aquela em
que penso na minha escola quando piso em folhas secas caídas de uma mangueira: “Brasil, meu dengo/ A Mangueira
chegou/ Com versos que o livro apagou/ Desde 1500 tem mais invasão do que
descobrimento/ Tem sangue retinto pisado/ Atrás do herói emoldurado/ Mulheres,
tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato”.
Neste exato agora
trocava email com minha amiga Ana de Hollanda sobre a emocionante vitória da
Mangueira. Disse Ana: “Ronaldo, estou eufórica com a Mangueira. Acho que foi o
desfile mais impactante e bem realizado que já assisti. Sem contar que o
samba-enredo, que geralmente é aquela colcha de retalhos, é lindo, já nasceu
antológico, não acha?”.Mandei de cá: “Viva a Mangueira, a valentia, a garra daquela
bandeira que acaba de virar nossa verdadeira bandeira. Sim, Ana, o samba-enredo
é antológico, um banho de verdades que todos precisavam ouvir, coisa de grande
coragem e luz em meio a essas tenebrosas trevas”.
Não demorou nadica para Ana responder, e com grande autoridade:
“Em relação à Mangueira, vai aqui um texto que escrevi há dois anos”. Gostei
logo e de pronto do texto de minha amiga – pleno de musicalidade e delicadeza,
não fosse ela também compositora de grande talento. O texto da Ana me pegou
assim, de supetão, exatamente na hora – agora! – em que estou escrevendo esta coluna
para a Rio Total. Um texto
premonitório das grandes vitórias da Mangueira, um texto de quem
verdadeiramente ama
a Estação Primeira. E que se encaixa perfeitamente, e com muita propriedade,
dentro desta minha coluna, razão pela qual ele vai como “fecho de ouro” de meu
texto. Evoé, “Mangueira de Hollanda”!
Fala, Mangueira!
Fala, Ana de Hollanda!
"Mangueira entrou na minha vida como música. Eram
muitos os sambas que lá em casa se cantava, sempre com a mais absoluta
familiaridade: Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza criou... Não
há, nem pode haver, como Mangueira não há, o samba vem de lá alegria também... Lá
em Mangueira aprendi a sapatear, lá em Mangueira é que o samba tem seu lugar...
Aquele mundo de zinco, que é Mangueira, desperta com o apito do trem...
“E foi de dentro do
trem noturno, entre Rio e São Paulo, que tive o impacto de ver pela primeira
vez a placa da Estação Primeira de Mangueira. Foi também quando me mostraram,
criança, que era aquela, a tal Mangueira cantada em memoráveis sambas. Acho que
desde o Coliseu, ao qual fui apresentada, por assim dizer, na minha primeira
infância, eu não havia conhecido um lugar tão carregado de memórias e referências.
“Morava em São Paulo,
mas as férias passávamos no Rio onde viviam minhas avós, tios, primos, e
infinitos aderentes. Era praia todo dia, muito sol, quitutes raros em casa, sem
hora para dormir, brincadeira solta com os primos, escaladas de morro, passeios
na mata e aquela lindeza de cidade!
“Hora de voltar era
inevitavelmente deprimente. Aliás, passei boa parte da vida com essa sensação
desagradável quando deixava o Rio de Janeiro. Mas, para piorar, o que me
esperava, então, era o regime rigoroso de hora pra acordar, hora pra dormir,
escola cedinho, lição de casa, ovo com arroz e chuchu às segundas feiras, frio
e a cidade que não acabava, nem chegava à praia alguma.
“Só restava um lampejo
de euforia nessa partida: o trem da Central, carregando boa parte da família
que, por sua vez, ocupava várias cabines, saía da estação em baixa velocidade e
a única concessão que nós, as três menores, conquistamos de Mamãe era a de só
ir pra cama depois de passar pela Mangueira.
“Nessa passagem lenta
eu tinha chance de ver pela janela a placa ESTAÇÃO PRIMEIRA DA MANGUEIRA, com o morro e a
comunidade mais adiante. Era o momento comovente da nossa despedida em que
cantávamos e homenageávamos com todo vigor a Cidade e a Escola adorada (com a
licença de Christina): “Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza
criôôô...”.
“Fim de férias, desce a
cortina e apaga-se a luz”. (Ana de
Hollanda)
Pois é, Ana, agora sim:
também fim de férias, as águas de março novamente “inundando” o verão, mas há
uma luz que se acende. A Mangueira abre
a cortina do passado desse Brasil tão brasileiro e deixa entrar na avenida –
pra que não nos esqueçamos – rasgos da “ditadura assassina”. A partir de agora
nossa bandeira é verde, de esperança, e rosa – cor de meninos que não têm medo
dessas coisas de coiso algum: E olha cá: não tá nada oukei, cara! “Mangueira,
tira a poeira dos porões/ Ô, abre alas pros teus heróis de barracões/ Dos Brasis
que se faz um país de Lecis, Jamelões/ São verde e rosa, as multidões”.
Ronaldo
Werneck
Cataguases, 06
de março 2019/22:37 h
3 comentários:
Uma bela "colcha de retalhos", juntando texto de ontem, com texto de hoje, muito bem escrito, exaltando a Verde Rosa, neste seu mais um momento de glória. Parabéns.
Que lindo texto/poético nos levando a acreditar que existe uma luz no fim do túnel...
Escrita irretocável!! vc é incrivel!!!
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