8 de mar. de 2019

Mangueira de Hollanda: O avesso do mesmo lugar



“Brasil, meu nego/ Deixa eu te contar/ A história que a história não conta/
O avesso do mesmo lugar/ Na luta é que a gente se encontra”. Este texto é da hora: eu o inicio exatamente às 18:32 h do dia 06 de março e a Mangueira acaba de ser consagrada campeã do carnaval carioca de 2019. E assim, e não por acaso, meu texto abre assim-assim, propositadamente em cima da hora com o samba-enredo campeão, de Ronnie Oliveira, Márcio Bola e Syvio Mamma (compositores de Volta Redonda) e dos cariocas Deivid Domenico, Tomaz Miranda e Danilo Firminio. “História para ninar gente grande” é um belo e corajoso samba que fez vibrar e lavou a alma do público, não só o que estava no Sambódromo do Rio, mas o que vem sendo sufocado pelas sandices do tal “viés ideológico” e outras maluquices que chegaram aos borbotões desde que o Brasil viu raiar não a liberdade, mas tenebrosas trevas desde o alvorecer (melhor, anoitecer) deste 2019.
     Mas vamos prosseguir, que a comissão de frente já passou e não podemos atrasar o andamento de nossa querida Escola. Sem partido? Não; isto é, sim. Com o coração como partido. “Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Dá um nó na garganta ver a efígie de Marielle Franco (Presente!) estampada naquelas bandeiras que esvoaçam pela passarela. O que me leva – sempre, ainda agora – àquela noite de 14 de março do ano passado, noite de seu assassinato, noite em que escrevi “A voz da morta”, aquele poema para ela, aquele poema depois musicado por minha amiga Thaylis Carneiro: “a voz que vaza/ em todas casas/ cale-se não/cale-se não/ a voz que porta/ tudo que importa/ a voz da morta/ cale-se não/ cale-se não”.



E o Brasil, meu dengo, meu realengo, palpável, real, esse Brasil lindo e trigueiro, esse Brasil brasileiro que não é imaginário, que não é coisa de coiso algum, tá oukei? Esse Brasil que agora ovaciona a Estação Primeira, aquela em que penso na minha escola quando piso em folhas secas caídas de uma mangueira: “Brasil, meu dengo/ A Mangueira chegou/ Com versos que o livro apagou/ Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento/ Tem sangue retinto pisado/ Atrás do herói emoldurado/ Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato”.
Neste exato agora trocava email com minha amiga Ana de Hollanda sobre a emocionante vitória da Mangueira. Disse Ana: “Ronaldo, estou eufórica com a Mangueira. Acho que foi o desfile mais impactante e bem realizado que já assisti. Sem contar que o samba-enredo, que geralmente é aquela colcha de retalhos, é lindo, já nasceu antológico, não acha?”.Mandei de cá: “Viva a Mangueira, a valentia, a garra daquela bandeira que acaba de virar nossa verdadeira bandeira. Sim, Ana, o samba-enredo é antológico, um banho de verdades que todos precisavam ouvir, coisa de grande coragem e luz em meio a essas tenebrosas trevas”.
Não demorou nadica para Ana responder, e com grande autoridade: “Em relação à Mangueira, vai aqui um texto que escrevi há dois anos”. Gostei logo e de pronto do texto de minha amiga – pleno de musicalidade e delicadeza, não fosse ela também compositora de grande talento. O texto da Ana me pegou assim, de supetão, exatamente na hora – agora! – em que estou escrevendo esta coluna para a Rio Total. Um texto premonitório das grandes vitórias da Mangueira, um texto de quem verdadeiramente ama a Estação Primeira. E que se encaixa perfeitamente, e com muita propriedade, dentro desta minha coluna, razão pela qual ele vai como “fecho de ouro” de meu texto. Evoé, “Mangueira de Hollanda”!

Fala, Mangueira! Fala, Ana de Hollanda!


      "Mangueira entrou na minha vida como música. Eram muitos os sambas que lá em casa se cantava, sempre com a mais absoluta familiaridade: Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza criou... Não há, nem pode haver, como Mangueira não há, o samba vem de lá alegria também... Lá em Mangueira aprendi a sapatear, lá em Mangueira é que o samba tem seu lugar... Aquele mundo de zinco, que é Mangueira, desperta com o apito do trem...
      “E foi de dentro do trem noturno, entre Rio e São Paulo, que tive o impacto de ver pela primeira vez a placa da Estação Primeira de Mangueira. Foi também quando me mostraram, criança, que era aquela, a tal Mangueira cantada em memoráveis sambas. Acho que desde o Coliseu, ao qual fui apresentada, por assim dizer, na minha primeira infância, eu não havia conhecido um lugar tão carregado de memórias e referências.
     “Morava em São Paulo, mas as férias passávamos no Rio onde viviam minhas avós, tios, primos, e infinitos aderentes. Era praia todo dia, muito sol, quitutes raros em casa, sem hora para dormir, brincadeira solta com os primos, escaladas de morro, passeios na mata e aquela lindeza de cidade!
“Hora de voltar era inevitavelmente deprimente. Aliás, passei boa parte da vida com essa sensação desagradável quando deixava o Rio de Janeiro. Mas, para piorar, o que me esperava, então, era o regime rigoroso de hora pra acordar, hora pra dormir, escola cedinho, lição de casa, ovo com arroz e chuchu às segundas feiras, frio e a cidade que não acabava, nem chegava à praia alguma. 
     “Só restava um lampejo de euforia nessa partida: o trem da Central, carregando boa parte da família que, por sua vez, ocupava várias cabines, saía da estação em baixa velocidade e a única concessão que nós, as três menores, conquistamos de Mamãe era a de só ir pra cama depois de passar pela Mangueira.
    “Nessa passagem lenta eu tinha chance de ver pela janela a placa ESTAÇÃO PRIMEIRA DA MANGUEIRA, com o morro e a comunidade mais adiante. Era o momento comovente da nossa despedida em que cantávamos e homenageávamos com todo vigor a Cidade e a Escola adorada (com a licença de Christina): “Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza criôôô...”.
     “Fim de férias, desce a cortina e apaga-se a luz”. (Ana de Hollanda)
     Pois é, Ana, agora sim: também fim de férias, as águas de março novamente “inundando” o verão, mas há uma luz que se acende.  A Mangueira abre a cortina do passado desse Brasil tão brasileiro e deixa entrar na avenida – pra que não nos esqueçamos – rasgos da “ditadura assassina”. A partir de agora nossa bandeira é verde, de esperança, e rosa – cor de meninos que não têm medo dessas coisas de coiso algum: E olha cá: não tá nada oukei, cara! “Mangueira, tira a poeira dos porões/ Ô, abre alas pros teus heróis de barracões/ Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões/ São verde e rosa, as multidões”.
Ronaldo Werneck
Cataguases, 06 de março 2019/22:37 h

3 comentários:

José Porfíro disse...

Uma bela "colcha de retalhos", juntando texto de ontem, com texto de hoje, muito bem escrito, exaltando a Verde Rosa, neste seu mais um momento de glória. Parabéns.

Edir Vidal disse...

Que lindo texto/poético nos levando a acreditar que existe uma luz no fim do túnel...

fernanda lopes disse...

Escrita irretocável!! vc é incrivel!!!