18 de dez. de 2023

CARLOS LYRA NO NUMBER ONE

O grande compositor da bossa nova Carlos Lyra morreu no Rio de Janeiro na madrugada do último sábado, 16 de dezembro, aos 90 anos.Vejam a seguir a entrevista que fiz com ele há mais meio século. 
Ultima Hora/ Revista – Rio, 14.04.1972
Por Ronaldo Werneck




     Carlinhos Lyra, um dos “papas” da bossa-nova, vai fazer show em boate pela primeira vez no Brasil. O espetáculo, com direção de Tarso de Castro, estreará no Number One. Carlinhos ainda não sabe direito as músicas que vai cantar (“estou resolvendo durante os ensaios, ainda não sei se coloco as músicas mais antigas”), mas é certa a inclusão de “Entrudo”, marcha-rancho feita com Ruy Guerra; de “Essa passou”, com Chico Buarque; e de “Passing by”, com letra de sua mulher Kate Lyra. 
     – Vou pegar meu violão, cantar e tocar, tirar uma onda. No Brasil, esta será minha primeira experiência com frequentadores de casas noturnas. Quando estava no México, cantei duas vezes em boate e acabei me aborrecendo. Numa delas, inclusive, saí no meio do show, irritado com a conversa dos fregueses, discutindo com eles, essas coisas. Espero que no Number One o negócio seja diferente. Vou testar a noite, embora sabendo que vou cantar para um público que normalmente consome minhas músicas.


MPBUC

     Para Carlinhos Lyra, o termo MPB não consegue exprimir com exatidão o que seja o atual panorama de nossa música, pelo menos em termos de mercado.
     – O mercado consumidor de discos no Brasil é formado por uma classe média culta e por uma classe média não culta.  E assim como é preciso distinguir estas duas faixas de público é preciso também determinar os campos da MPB. Prefiro considerar-me um “produtor” e não um criador musical. Não me refiro ao produtor que financia, mas ao que elabora produtos musicais, “como um operário que assume sua profissão”. E tenho plena consciência do tipo de público que minha música atinge, sei perfeitamente que minha área de atuação é dentro de uma faixa urbana e culta.
    Minha música não pode ser definida exclusivamente como MPB. Acredito que seu campo de atuação é outro, que no fundo ela está mais próxima da MPBUC (“Música Popular Brasileira Urbana e Culta”).


Debates


     Carlinhos Lyra esteve fora do Brasil durante cinco anos, trabalhando no EUA e no México. Participou do “Festival de Jazz de Newport”, apresentou-se no Carnegie Hall e fez o acompanhamento (violão) de praticamente todas as gravações de Tony Bennet, além de excursionar com Stan Getz pelo Japão e por quase todo o território norte-americano. No México, fez várias conferências e sua peça infantil “Ouvi Falar em Dragão?” acabou ganhando o prémio de melhor texto e melhor direção. 
     – Além do convívio com grandes músicos, o que considero mais importante em minha vida no exterior foi o fato de ter participado de vários debates em universidades, foram as conferências que fiz para um público jovem, interessadíssimo em nossa música. Principalmente, um show que fiz no México em plena praça pública, uma coisa fantástica. 
     – Voltei ao Brasil porque só aqui a gente consegue ter consciência exata dos problemas do país. De qualquer forma, é aqui que estão as “raízes” que me formaram, é aqui que encontro o estímulo necessário para incentivar minha produção. Recentemente, fiz um espetáculo no Teatro Marília, em Belo Horizonte, que me deixou emocionado: uma plateia de universitários lotava o teatro quase todas as noites, mostrando que o interesse pela música brasileira continua vivo e efervescente.


Universidades

     – Acho muito boa, por exemplo, a ideia do empresário Benil Santos: fazer shows musicais, com debates, nas universidades pelo país. Estou disposto a participar, junto com a maior parte dos compositores que têm consciência de que é nas universidades que se encontra a faixa de público que eles atingem.
     – Existe um tipo de compositor que, ao produzir, atende “principalmente” às suas necessidades expressionais; e outro que, sob pretexto de atender às necessidades estéticas das massas, visa unicamente suas próprias necessidades imediatas.  Acredito que os compositores que vão participar desses espetáculos nas universidades pertencem ao primeiro grupo. Em termos de vendagem de discos, o resultado de cada uma dessas atitudes é fácil de ser deduzido.


Romper com a qualidade 


     Pelo que observei, a ideia do Benil é mais ou menos semelhante aos show (música & debate) que fiz ano passado no Opinião e agora no Teatro Marília. Só que em proporções bem maiores, possibilitando a abertura de uma faixa de mercado da população universitária, consumidora em potencial do tipo de música que fazemos.
      – Por exemplo, eu me recuso a admitir que tenha rompido com tangos & boleros no início de minha carreira, mas sim com Dorival Caymmi e Ary Barroso, o que é bem diferente. Acredito que evoluir artisticamente seria romper não com a mediocridade, mas com a qualidade (inclusive a sua própria), para dar origem a novos produtos. Não visando o passado ou o futuro, mas o seu próprio tempo. 


Surto Cultural


     
Quase todos os compositores que, por um motivo ou outro, estavam radicados no exterior, estão de volta ao Brasil. Comenta-se a possibilidade de explosão de um novo movimento musical. Mas Carlinhos Lyra não acredita muito que isso seja possível.
     – Não me parece que uma atividade cultural sem a devida consciência e planejamento possa chamar-se “movimento”. No meu entender, a bossa-nova, por exemplo, foi um surto cultural decorrente de um movimento econômico. A crise que provocou a perda de identidade de muitos compositores parece indicar o fim de uma crise e o princípio de outra. 
     – O novo movimento de expansão econômica traz de volta os compositores que se deslocaram e evidencia muitos dos que ficaram ou surgiram nesse período. A desunião profissional (“cada um na sua”) e a “união artística” (cada um na dos outros, especialmente nos bem sucedidos) é atitude de uma grande parte, quando o inverso seria talvez o caminho para as soluções econômicas e artísticas. 


Ronaldo Werneck
in UH-Revista
Rio, 14.04.72


Um comentário:

Anônimo disse...

Como sempre, Ronaldo com participação ativa na música, poesia, arte e cultura deste país. Parabéns, meu amigo!
William Ramos