15 de abr. de 2024

Affonso Romano sobre RW: O mundo é macio e perigoso.

 


 Neste cinepoema, a poesia vive uma odisseia no espaço. Selva Selvaggia” não é o título de mais um livro de poesias, mas sim o nome de um cine-poema. O roteirista e diretor extraiu o argumento desta edição de fatos vivenciados por ele mesmo no eixo Minas-Bahia-Rio, entre 1962-1975, e de “outros lidos, vistos, consumidos – pelo telstar, pela tv, pelo cinematógrafo”.

Para Glauber Rocha, um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas. Talvez esteja nestas palavras de Glauber a explicação para a proposta poética de Ronaldo, que sem dúvida alguma suou e sofreu para compor seu poema – “na rua, na cama, no teclado da máquina, subitamente dentro de um cinema”. Com uma primeira montagem de Selva Selvaggia (com 66 takes de certa forma mantidos ou reestruturados nesta montagem atual), o autor foi premiado em 1970 pela União Brasileira de Escritores.

Teve outras premiações na primeira promoção de poesia na Guanabara, no primeiro e segundo festival de poesia de Pirapora (neste último recebeu o prêmio “Carlos Drummond de Andrade”). Ronaldo Werneck é um poeta amadurecido em barris de carvalho. Seu poema é uma dose dupla de batida de limão misturada com muitos copos de cerveja, duas vodcas e vários uísques.

A quem brinda? A Oswald de Andrade, Fellini, Mallarmé, Jorge de Lima, Mário Faustino, João Cabral, Maiakóvski, Camões, e.e. cummings e muitos outros. O que brinda o poeta? A palavra e o homem. Em Selva Selvaggia, o leitor-espectador encontrará dez seqncias, e a primeira abre a cena com o poeta refletindo sobre seu ofício: procurando estruturar os elementos necessários para a cine-viagem, através das palavras, imagens, espaços em branco. 

Vejamos o poema “Três haicais à la carte”: 1) os brancos impressos/ entre as letras são tetas/ leite submerso. 2) pedra sal e sonho/ apreender com o corpo/ sol cotidiano. 3) do amor não a/ prendeu a tonalidade/ar e amar´elo”. 

Notam-se influências joycenas – pelas associações sonoras – e de cummings – pela desintegração das palavras. Infelizmente não posso reproduzir aqui os melhores exemplos de total libertação, como acontece nos poemas Telstar, 2001 o espaço poético, Canção da espera”, “Réu´p”, Full-time”, “Pranto-socorro” e outros em que as palavras se agrupam coerentemente e se estruturam formando mosaicos visuais e fragmentos sonoros.

O poeta encerra a seqncia cinco com o poema-processo Pop/lar um poema eletrodoméstico social, em que aparece uma página de jornal anunciando uma liquidação de geladeiras, aparelhos de tv, liquidificadores, fogões, bicicletas, enceradeiras. Na mesma página, a notícia – “O mundo é macio e perigoso” – é o título do poema-texto, que tem como ilustrações fotografias de pessoas rindo e correndo de felicidade. Neste poema-texto Ronaldo mostra em versos como vê a realidade social deste mundo macio e perigoso. – “Uma canção de espera/ uma canção de esperança/ ancião/ ânsia/ canção/ anunciação/ retribuição/ risos/ grunhidos/ febre/ vômito/ de esperança/ é o mundo/ que te anuncio”.

Num total de 86 poemas, Selva Selvaggia é um desabafo de seu autor, refletido em uma boa dose de sentimentalismo poético, misturado com muita poesia concreta e alguns poemas-processo.


Affonso Romano de Santana

Revista Veja, São Paulo, maio de 1976

 


4 comentários:

Tairone Feitosa disse...

Ronaldo nos convida a ver.

Anônimo disse...

Que espetáculo!!!

Anônimo disse...

Só del Poeta Affonso Romano de Santana podiam brotar tão acertados conceitos. Parabéms!!

Jom Tob Azulay disse...

Quando o crítico casa com o poeta como no caso de Affonso Romano as palavras brotam em perfeita síntese de sons e cores, significados e sentimentos. Parabéns Ronaldo Werneck por ter inspirado e nos ter propiciado esta dádiva.