8 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 1 Vida não dá meia-sola



      Copacabana, um dia qualquer dos anos 1960: saio pro trabalho e tomo um ônibus E. de Ferro-Leblon (quando criança, de férias no Rio, em vez de “Estrada de Ferro” eu lia “É de Ferro-Leblon” e nada entendia). Dois bancos à minha frente, na diagonal, vejo Ferreira Gullar também indo pro trabalho (na época ele era copidesque da Sucursal do Estadão). O poeta fumava e lia atentamente o Jornal do Brasil quando, de repente, o amassa com raiva e fica olhando para o nada pela janela. Penso até hoje no que teria lido o poeta, qual notícia o teria irritado tanto.
      O mesmo acontecia comigo quando lia (não leio mais, e agora nunca mais) suas crônicas plenas de diatribes na Folha de S.Paulo, que tanto me irritavam. Na época em que ele começou, lembro-me do Alcione Araújo me contar que Gullar lhe perguntara o que ele achava de ele aceitar o convite para escrever as tais crônicas (engraçado como muita gente ia pedir conselhos ao meu saudoso amigo Alcione sobre os mais variados assuntos). Alcione me disse que o desaconselhou. O poeta, naturalmente, não deu ouvidos ao dramaturgo. E meteu os pés pelas mãos, ou coisa que o valha.
    Irritadíssimo ficaria também eu, quase trinta anos depois do episódio do “E. de Ferro/Leblon”, ao ler um texto de Gullar sobre arte moderna no Caderno Ideias do Jornal do Brasil. Mas não rasguei o jornal. Peguei o texto e escrevi outro a partir dele, rebatendo (meio que raivosamente, no calor da hora) as ideias do poeta. Mandei pro Mário Pontes, então editor do Caderno do JB. Mário me ligou, dizendo ser melhor não publicar: embora achando que em parte eu tinha razão, não queria criar polêmica com o poeta. Melhor assim, acabei achando também. E acho ainda hoje ao reler o que escrevi, embora continue a não gostar nada do que o Gullar disse naquele texto. 
    Mas, voltando ao início dos anos 1960, irritado também eu ficara ao ler o seu João Boa Morte, aquela regressão em redondilhas publicada pelos “Cadernos do Povo/ Violão de Rua”, com poemas que buscavam “vender” poesia barata aos operários e homens do campo (literalmente barata: impressos no modelo canoa, grampeados a exemplo da poesia de cordel, os livrinhos eram vendidos a preço de banana, mas nem assim atingiram o alvo). Um saltatrás de Gullar face aos avanços vanguardistas de seu livro A Luta Corporal, que tanto me impressionara.
     Pois é, a gente só se enfurece, a gente só se irrita mesmo, com coisas vindas de quem gostamos. As outras “passam corrido” e nem ligamos ou lhes damos importância. Tempos depois, em “Dentro da Noite Veloz”, e já próximo de seu “Poema Sujo” e da dicção que faria dele um de nossos grandes poetas, Gullar parecia se “redimir” de sua “escorregadela da Boa Morte”, retomando o apuro formal sem deixar de lado o conteúdo “participante”, como se dizia na época: “Poeta fui de rápido destino./ Mas a poesia é rara e não comove/ nem move o pau-de-arara”.
     Corta para hoje, melhor para domingo passado, dia 4 de dezembro. Como sempre acontece nos domingos em que estou em Cataguases, fui almoçar num restaurante de Leopoldina. Não só por gostar de dirigir (cerca de 20 km), como porque ele fica aberto o dia inteiro (o que não acontece com os daqui). Almoço tarde, hábito antigo, e quando dou por mim aqui está tudo fechado aos domingos.
     Levei comigo a Folha de S.Paulo, e foi assim: passei os olhos pelas manchetes do jornal, li o Cony, o Jânio de Freitas e pulei pra Ilustrada. Por acaso, dei de cara com a coluna do Ferreira Gullar, que evito ler faz longo tempo pra não me irritar ainda mais com a “estranha” guinada política do poeta. Mas o título “Solidariedade” me chamou a atenção e acabei lendo. Gullar começa se perguntando “por que pessoas indiscutivelmente inteligentes insistem em manter atitudes políticas indefensáveis, já que, na realidade, não existem mais”.
    Logo ele avança situando essas pessoas como as que “militaram em partidos de esquerda, fosse no Partido Comunista (ao qual ele mesmo aderiu em 1964), fosse em organizações surgidas por inspiração da Revolução Cubana”. Até aí, o mesmo Gullar dos últimos tempos. 
     E já começava a me irritar novamente com suas idiossincrasias quando sou tomado pelo “espanto” (palavra tão cara à definição de poesia usada pelo poeta) ao ler os demais parágrafos. “Não tenho dúvida alguma em afirmar que Karl Marx foi uma personalidade excepcional, tanto por sua inteligência como por sua generosidade, pois dedicou a sua vida à luta por um mundo menos injusto. Graças a homens como ele, as relações de capital e trabalho – que, na época, eram simplesmente selvagens – mudaram, alcançando as conquistas que as caracterizam hoje. Marx contribuiu para mudar a sociedade humana, muito embora o seu sonho da sociedade proletária se tenha frustrado”. Mas logo Gullar descamba para sua velha cantilena de maldizer “o sonho marxista e os dogmas ditos revolucionários".
     E, num paradoxo, reafirma obviedades sobre o capitalismo: “Tampouco pode-se negar que o regime capitalista se move essencialmente pela exploração do trabalho e pela acumulação do lucro. A ambição desvairada pelo lucro é o mal do capitalismo que deve ser extirpado. E, creio eu, isso talvez possa ser feito sem violência, uma vez que, de fato, ninguém necessita de acumular fortunas fantásticas para ser feliz”. A crônica é finalizada com um exemplo mais que exemplar: “Sabem por que Bill Gates deixou a presidência de sua empresa capitalista para dirigir a entidade beneficente que criou? Porque isso o faz mais feliz, dá sentido à sua vida”.   
      Fechei o jornal, dessa vez sem o amassar nem jogar fora. Entrei no carro e vim pela estrada afora, meio que “reconciliado” com o poeta: “Vida tenho uma só/ que se gasta com a sola de meu sapato/ a cada passo pelas ruas/ e não dá meia-sola// Perdi-a já/ em parte/ num pôquer solitário,/ mas a ganhei de novo/ para um jogo comum// E neste jogo a jogo/ inteira, a cada lance/ que a vida ou se perde ou se ganha com os demais/ e assim se vive/ que o mais é pura perda”.   
      Eu não levara o celular para o almoço, não sabia das notícias desde a noite anterior. Chego em casa, ligo a tv ao acaso, e sou surpreendido com a morte do poeta. Mais surpreso ainda ao saber que essa sua crônica, a última, fora escrita no hospital onde estava internado há quase vinte dias em Copacabana (não tinha conhecimento disso: eu acabara de chegar do exterior e estava sem notícias do Brasil). Segundo Zuenir Ventura, que o acompanhou internado, suas últimas palavras foram à filha Luciana, pedindo para não prolongarem sua vida com aparelhos: “Me leva para Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora”.
       Coisa de poeta? É, coisa de poeta. Eu mesmo já tive um “desvario marítimo” desses, quando um médico maluco daqui me disse que meu glaucoma (“de estimação”) tinha evoluído tanto que não adiantava mais me receitar colírio algum: eu iria ficar cego em seis meses, um ano no máximo. Voltei pra casa aturdido, é “claro/escuro”, e não dormi a noite toda. Lá pelas tantas pensei que o melhor seria ir pro Rio e ver o mar pela última vez. Foi quando parei de pensar besteira dei uma risada: “Deixa de babaquice, Ronaldo! Procure outro médico amanhã”. Dito e (bem) feito. Hoje, após uma cirurgia, com direito a catarata e tudo o mais, estou enxergando maravilhosamente em technicolor e cinemascope – e até mesmo o mar visto de Cataguases. O mar, o mar azul, o mar-espanto, que iria me proporcionar um longo, imenso poema, e que deu a Gullar esse concreto insight:

mar azul
mar azul marco azul 
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

    Em 1992, Gullar participou de um Ciclo sobre Fernando Pessoa no CCBB/Rio. Depois de sua palestra, fiz longa entrevista com ele, gravada em VHS. Infelizmente, a fita não resistiu ao tempo e a maior parte se perdeu. O que dela restou (as imagens não estão lá essas coisas, mas o áudio é bem razoável) foi usado como material para o vídeo que acabo de editar e que se encontra na abertura desta crônica. O enquadramento também não está perfeito, com a câmera focada em mim, enquanto Gullar ficou meio de lado, olhando pra mim enquanto falava, quase de perfil. Mas vale como registro. Ah, sim: o sujeito travestido de Fernando Pessoa fazia parte da encenação sobre o poeta português.
    Uma curiosidade: na entrevista, Gullar chama Oswald de Andrade de “poeta menor”, embora não deixe de elogiá-lo e de lembrar quando Oswald esteve pessoalmente em sua casa no dia de seu aniversário, dizendo ter lido e gostado de A Luta Corporal. O mesmo episódio que lembraria 25 anos depois, numa de suas crônicas no primeiro semestre deste ano. Aquela “crônica-spaghettilândia” que resultou num spaghetti western dos diabos com o poeta Augusto de Campos. Em 1954, quando da morte de Oswald de Andrade, Gullar escreveria a elegia que se segue pro poeta paulista.   
  “Enterraram ontem em São Paulo/ um anjo antropófago/ de asas de folha de bananeira/ (mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)// As escolas e as usinas paulistas/ não se detiveram/ para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio/ Quanto mais pressa mais vagar// O lenço em que pela última vez/ assoou o nariz/ era uma bandeira nacional” Nota de Gullar, em pé-de-página do poema: “Fez sol o dia inteiro em Ipanema/ Oswald de Andrade ajudou o crepúsculo/ hoje domingo 24 de outubro de 1954”.
     Repito suas últimas palavras: “Me leva pra Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora”. Mar e Ipanema. Nada mais justo que inserir em meu vídeo a canção que Gullar letrou para Caetano Veloso no primeiro álbum tropicalista do baiano: “Onde andarás nesta tarde vazia/ Tão clara e sem fim/ Enquanto o mar bate azul em Ipanema/ Em que bar, em que cinema, te esqueces de mim”.

Um comentário:

Unknown disse...

Gostei muito da entrevista. E do seu texto também.