Foto: Victor Giudice Foto: Adriana Montheiro |
Escrevo a língua
do meu avô
sem sua permissão,
por
isso apenas busco seduzir
os fantasmas que me
visitam
por isso venho até o
rio
para olhá-lo nos olhos
e numa canção
inaudível
berçar os
seres amáveis que o habitam.
Marquei meu campo ali
lavado pelos rios
onde a curta vida se
escoa
–
transferindo
o ouro do meu viço ao
vórtice das palavras,
– e a mina da poesia
vai-se exaurindo.
Há exatos
três anos, em 20 de agosto de 2014, morria no Rio meu grande amigo, o poeta
cataguasense Francisco Marcelo Cabral. Faz falta o que o poeta fez, o que o homem Chico Cabral nos ensinou ao longo de
sua existência. Sua fala, seu bom-humor, seus poemas vão ficar para sempre.
Publico a
seguir o texto-homenagem que
escrevi quando de seus 80 anos, lido em cerimônia realizada no Rio, na sede do Pen
Clube do Brasil, em 5 de novembro de 2010.
CHICO CABRAL 80 ANOS
Senhoras e Senhores, boa noite. E um boa
noite especial para meus amigos, os poetas Cláudio Murilo Leal, atual
presidente do Pen Clube do Brasil, e Marcus Vinicius Quiroga, que me fizeram o
convite – e portanto totalmente responsáveis pelo que sair daqui, dessa fala
desajeitada, afetuosa e sem qualquer compromisso sobre o poeta Francisco
Marcelo Cabral, aqui a meu lado, que completa 80 anos no próximo dia 18.
No Brasil, é tempo de grandes poetas
oitentões, esses eternos meninos-poetas como ele e Ferreira Gullar, que já
completou os seus em 10 de setembro. E ainda do grande Mário Faustino, que
seria também octogenário a partir do último 22 de outubro.
Mas é do poeta Francisco Marcelo que
venho falar, do Chico, Chiquinho Cabral, meu grande amigo, padrinho (de meu
primeiro casamento), compadre (padrinho de meu filho Pablo) e conterrâneo.
Nascemos na mesma rua Dr. Sobral – os dois da mesma parteira, a Dona Alzira,
avó do Chiquinho Cabral, o filho de Dona Jandira e do Seu Pedro Álvares Cabral.
Sim, o Brasil foi mesmo descoberto em Cataguases: o Seu Pedro apenas
disfarçava, fingindo ser dono da Padaria Cabral, mas eu-menino bem sabia de seu
“achamento”: Padeiro artesão, meu pai,
Pedro,/nas artes duras da vida/com as mãos que espantavam medos/cozia sossego e
sono.//Sonhos, não.
No final dos anos 1940, com os
lançamentos da revista Meia Pataca,
editada em parceria com a poeta cataguasense Lina Tâmega Peixoto, sua grande
amiga, e de O Centauro, seu primeiro
livro de poemas, Chico Cabral já era, aos 19 anos, o melhor poeta da Rua Dr.
Sobral, cuíca da cidade e de todas as Minas Gerais. Pelo menos entre aqueles
que “não primavam por tirar ouro do nariz”. Na época, e no Rio, o escritor
Rosário Fusco, em depoimento a José Conde, dizia ser seu preferido no Brasil um
jovem poeta de Cataguases, um moço chamado Francisco Marcelo Cabral. E estamos
conversados.
Anos depois, com toda a saudável inveja,
eu me questionava: “E pensar que numa cidade pequena como Cataguases não
consegui sequer ser o melhor poeta de minha rua!”. Isso porque a fábrica de
pães de Seu Pedro fermentou e produziu Francisco Marcelo Cabral, um poeta sem
igual. Ele que me perdoe, mas vale a rima.
A magia do café com leite
É de Francisco Marcelo Cabral então que
me lembrei enquanto tomava meu café da manhã num hotel carioca. E não por ser
hoje cinco de novembro, o dia da Cultura, e ser ele o meu grande referencial
nessa área. Mas sim pelos mistérios infindáveis do café com leite, dos 38
gostos do café com leite, grande descoberta de Cabral, que também redescobriu o
Brasil, pelo menos para mim. Mas isso é outra história, ou a própria. Menos
café, mais leite. Mais café, um tiquinho de leite. Meio a meio. Com açúcar, sem
açúcar. Puro. Não havia adoçante na época, hoje então podemos acrescentar mais
uns dez novos tipos de café com leite, esse multifário mistério que nos aquece
e, como o sol, é novo a cada manhã.
Café com leite também é cultura, e o
café com leite cultural é mais uma das surpreendentes tiradas surgidas da
curiosidade diante do mundo e do permanente bom humor de Francisco Marcelo
Cabral. Curiosidade e bom humor, sinônimos de inteligência. Uma inteligência
fulgurante, um bem falar sobre tudo e qualquer coisa mais e mais ainda, que
sempre me deixou (e acho que a todos que o conhecem) literalmente fascinado.
Logo que me mudei pro Rio, meados dos
anos 60, eu o visitava sempre no apartamento da Rua Paissandu e era com o maior
orgulho que apresentava o eruditíssimo poeta pras minhas namoradas e demais
amigos. E penso agora como é paradoxal a gente não se ater muito nas obras dos
amigos, principalmente dos mais chegados. Parece ser a amizade coisa maior, a
encobrir a própria obra.
O afeto, o amor mesmo, parece nos
preencher de tal forma que o texto, o poema do amigo, resta esquecido, em
segundo plano. Comigo, foi assim com Rosário Fusco, que não li enquanto “o
pratiquei”, como ele dizia, enquanto frequentava sua casa de Cataguases e me
tornava cada vez mais seu amigo. Só fui descobrir o grande escritor que foi
Rosário Fusco depois de sua morte.
Acontece o mesmo com Francisco Marcelo
Cabral, e ainda bem que essa minha redescoberta “cabralina” ocorre com ele vivo
– vivíssimo e pimpão às vésperas de seus “oitentão”. “Chico Cabral chegou, o Chiquinho já está
aí!” – me ligava sempre o Joaquim Branco, sempre mais ligado que eu. Para nós,
jovens provincianos metidos a poetas, Francisco Marcelo Cabral, o Chiquinho
Cabral, era “a voz” (e como falava!), referência, conexão com o Rio-metrópole,
com o fascínio do mundo-exterior.
Sabia de tudo um muito
Era início dos anos 1960 e ele gostara
de nossas primeiras experiências literárias, veiculadas no Muro, um jornalzinho mimeografado e metido a besta. Chico Cabral sabia
de tudo um muito e mais um pouco. Perspicaz, sempre bem humorado, de
transbordante inteligência, sua cultura, seus conhecimentos de largo espectro,
nos deixavam literalmente boquiabertos. No Rio, onde morava, ele conhecia nossos
ídolos de então, e a turma do SDJB, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.
Conhecia de conhecer mesmo, de frequentar, de falar com eles, de ter (ou ter
tido) amizade até mesmo com Mário Faustino, o poeta de quem mais gostávamos,
morto pouco antes num desastre aéreo.
Cerro
de los Cruces/ 97 mortos/ E a cauda intacta, como dizia o poema-homenagem a Faustino, o “aeromorto”,
publicado na revista Invenção pelo poeta paulista Augusto de Campos, outra de
nossas maiores referências. Augusto, o “augusto”. Conhecido de quem? Claro que do
Chiquinho Cabral, que era também muito amigo de seu cunhado, o também poeta
concreto Zé Lino Grunewald que mais tarde lançaria um livro chamado
“Pedras-de-toque da Poesia Brasileira”, com vários poemas de Francisco Marcelo
Cabral em destaque. O Zé Lino, para quem Chico Cabral levaria os originais de
um livro de poemas escrito a quatro mãos pelo Joaquim Branco e por mim. Tempos
depois, o Zé Lino nos enviou o livro de volta, com uma surpreendente e ferina
anotação na página de abertura: “Plenamente publicável ao nível de mercado. Bem
melhor que os lépidos e ledos ivos que graçam por aí”.
Chico Cabral era também amigo de
Guimarães Rosa, com quem trabalhara no Itamaraty. O “Doutor Rosa”, que lhe
dedicara alguns poemas e lera e anotara correções e elogios à margem dos novos
poemas de Pedra de Sal, o livro de
Cabral então inédito, a exemplo do que também fizera o não menos Mário
Faustino. E como também Ezra Pound fez com o Waste Land de Eliot, correções depois transformadas em livro, numa
bela edição da Faber & Faber, que ganhei nos anos 1970 do próprio Chico
Cabral. Bons tempos, em que não havia o computador para “deletar” nossas
correções, que permaneciam visíveis à espera de futuros e presumíveis exegetas.
Enfim, para os jovens basbaques do
interior, o Chiquinho Cabral tornava real o mundo que conhecíamos mal e mal, e
apenas de livros e jornais. Ele nos levava a metrópole, e a tornava um ser
vivo, pulsante caleidoscópio cultural. Sempre
que adentrava a Ponte Velha de Cataguases, Cabral trazia dentro do charme de
seu volks preto anos 1950, modelito alemão, sua mala carregada de cultura,
informações fresquíssimas e uma alegria que nos contagiava e nos contagiou pela
vida afora.
Que
fazer? Cantar.
Seus poemas? Eu mesmo os conhecia muito
pouco. Tinha lido assim-assim O Centauro,
lançado em 1949, seu primeiro e único livro até aquela data. Lembro-me até
hoje do fragmento de um dos poemas, que me despertou logo a atenção: É hora de sol/ lá fora/ e noite, no coração.//
Milhares de estrelas,/borrões/ que as
nuvens carregarão.// Mas a noite
existe/ açoite/ que retalha o sonho, e então// o verso, que vinha/ terso/ se
perde na negação. Mas o Cabral de todo O
Centauro, o Cabral poeta, eu só iria ler com atenção mais tarde. Ler, reler
e admirar profundamente, como merece o grande poeta que ele é. Que lucrei? Um verso./ Que fazer? cantar./ Mas se há dor? que
importa!/A dor é só instrumento.
“A dor é só instrumento”, verso que
Carlos Drummond de Andrade já destacara em carta para o poeta, de 19 de dezembro
de 1949: “Creio que você tem coisas a nos dizer. Elas já estão anunciadas neste
Centauro. Quando você usa expressões
como “as dobras do não dizer”, quando, para descrever um homem sob a chuva, diz
que ele vai “vestido de água corrente”. Sinto que aí tem coisa. Não jogue fora essa
coisa, Francisco Marcelo Cabral. Cultive-as, apure-as, dê-nos boa poesia;
estamos tão precisados!”.
O poeta do Centauro trazia e traz na verdade a sutileza de um Poeta-Pégaso:
asa, ave, voo são suas maiores marcas, temas que se alçam – um ligeiro adejar
de asa acesa – recorrentes em sua poética. Paisagem que do alto avista o
Poeta-Pégaso, como num de seus versos-exemplares, aquele sagaz octossílabo,
pleno de junções silábicas do poema Água
Forte, do livro “Campo Marcado”: o sol o chão cobre de ouro e ocre.
E a boa poesia pedida por Drummond
espalhou-se vida afora, como nessa pequena montagem que me permiti fazer de
alguns fragmentos de poemas dos vários livros de Francisco Marcelo Cabral e com
a qual encerro esta minha fala.
Francisco M. Cabral:
fragmentos/collage
fragmentos/collage
Homem,
cavalo, centauro
trindade
do ser incerto
esta a
minha natureza.
Possa a
poesia evolar-se
homem,
cavalo, centauro,
do meu
pobre ser confuso
Outros
lábios me repitam.
Meus
versos fiz para dar.
Buscando
incerto infinito,
Misto,
centauro, aqui fico.
NADA,
Cataguases, em teu rio pobre
Pomba sem
vida, mudo e sujo
nada, nem
a completa
destruição
da paisagem da minha infância
NADA ME
FAZ
lembrar
um porto de diamantes
TE AMAR
Berço,
seio, colo, braço, calor e umidade
é um ato
simples
como
nadar, anulando-se, na corrente limpa do rio
AMAR
MENOS
é morrer
como o
rio sendo freado pela areia
como
tirar os óculos, desligar o telefone,
guardar a
máquina de escrever e sair de casa
para nada
MENOS
que nada
é o pó do
poema
que aqui
sobrenada
NADA ME
FAZ
TE AMAR MENOS
Temo
jamais ter merecido
as asas
dos meus versos.
Às vezes
eu as desprendo – é noite, é Minas –
E como
quem espreguiça
num largo
espasmo
alço-as e
me vou, ou sou levado
voando,
me vou.
Meu
mestre dança como os pássaros.
E canta
com os claros tímpanos da aurora.
Meu
mestre planta um par de asas no meu dorso
e prende
meus pés no chão:
assim meu
voo não se perde
E é puro
deslumbramento
e gozo
Encher de
vinho a tarde, como se faz com a vida.
Encher de
tarde a vida, como se faz com o vinho.
Encher de
vida o vinho, como se faz com a tarde.
Encher de
vinho a vida, como se faz com a tarde.
Encher de
vida a tarde, como se faz com o vinho.
Encher de
tarde o vinho, como se faz com a vida.
O leitor
se assenta
O poeta
puxa a cadeira
a poesia
é o tombo
Escrevemos
Porque
sabemos
Que vamos
morrer.
Escrevemos
porque
não sabemos
por quê.
Para encerrar, leio na íntegra cinco poemas exemplares, highlights, pedras-de-toque de seus dois
últimos livros, Cidade Interior e
deste Campo Marcado, que o poeta está
lançando aqui e agora. Drummond estava
certo: agora e aqui continua “tendo coisa”. E coisa muito boa, sempre que vinda
do poeta Francisco Marcelo Cabral. De
Cidade Interior, dois poemas lisboetas e um parisiense, plenos de bom
humor. De Campo Marcado: “Este momento
tem nome”, de fatura nitidamente drummondiana, e “Hora Nenhuma”, um dos punti luminosi do novo livro de
Francisco Marcelo Cabral, que me lembrou, e muito, desde a estrofe inicial,
aquele flash back de "misterioso mistério" do menino Guido no filme Fellini Otto e Mezzo. E o fecho do poema, que coisa mais perfeita, com
aquela fantástica sacada do "par de asas sem ave", trouvaille do poeta mais alto.
LISBOA 1
Manhã
cedo no Rocio
Madame em
seda e boá
sussurra
surpreendente convite
“C’est
pas par l’argent, m’sieur, mais par vôtre compagnie…”
No Tejo, velas
e mastros se eriçam ao jovem sol do outono.
LISBOA 2
Que é que
nos falam
de modo
tão familiar e carinhoso
mas na
verdade
– estrangeiros
aqui também –
não
entendemos?
PLACE DES VOSGES
Metido em
lãs me esgueiro pelas arcadas
Pouco
sol, uma névoa de outono.
Em frente
à Maison de Victor Hugo
alguém
grita o meu nome
– em
francês !
surpresa
e mistério
logo
desfeito em riso
O turismo
tem disso:
colega de
colégio …
louca
para ser vista ali.
HORA NENHUMA
Pelas frestas do soalho,
coam-se as crinas
oblíquas do cavalo do vento.
Tremem as velas e as
roupas finas
ao sopro dessa luz sem
sombra
que tanto medo me dá.
A mãe sussurra não
olhes o piso nem as telhas.
Nas paredes nuas o sono
os aguarda
entre as manchas de
mofo e seus desenhos
de limo verde.
Aqui mora a noite
e seu bafo de roupa
guardada,
suas lãs descoradas e
ásperas.
como peles selvagens
mal curtidas.
Essas coisas velhas
recendem a calor suado.
Debaixo da cama arfa um cachorro cego
e um jarro de miosótis
tinge com sua morte azul
a penumbra e o silêncio.
a penumbra e o silêncio.
O medo não abre os
olhos do menino
que apenas pressente o
abismo do universo
e embarca no seu bote
de flanela.
O sono se abate sobre o
peito
como um par de asas sem
ave.
uma rajada de brisa
adocicada e morna,
uma persiana que desce
nos fios.
A mãe já não diz mais
nada que se ouça.
apenas nela vibra a
delicada respiração do menino
– fonte e sinal da vida
que prossegue.
ESTE MOMENTO TEM NOME
Este momento tem
nome: êxtase.
A luz dura do sol no
teu olho cerrado
o zumbido de
insetos delicados,
o ácido sal da vida,
o pulso e o
ritmo ofegante do ar que te penetra
Submerges nesta fresta
do tempo
e sentes o
universo tocando o teu ser,
tão íntimo que o podes
separar em fruto e semente
tão sem limites em suas
onze membranas
que nele tudo
cabe inumeravelmente,
tão diversamente o
mesmo que não te contém e contém.
Não estás morrendo,
sossega.
Apenas navegas em
estilhaços
como a estrela que
explode na constelação do Centauro.
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