Em
meados de 1978 fui
diagnosticado com glaucoma. O oftalmologista com a palavra: “tem que pingar
esse colírio de 12 em 12 horas, senão a coisa fica preta”. Literalmente preta,
pensei. Nunca mais o mar, nunca mais o amarelo de Van Gogh. Da aflição, do
temor, surgiu um esboço de conto, o primeiro e único que escrevi. Tempos
depois, num almoço no restaurante da Manchete com os saudosos Salim Miguel e
Victor Giudice, acabei mostrando o texto já pronto. Salim, então um dos
editores da Revista Ficção, junto com
Cícero Sandroni, botou meu texto no bolso e nada mais disse. Dias depois me
ligou: gostou de meu conto, pediu pequena biografia literária e uma foto, pois
iria publicá-lo.
Em dezembro daquele ano, em sua
edição de nº 36, com direito a chamada de capa, Ficção publica Oscuro amore
Esse o título de meu “conto”. Afinal, como já disse Mário de Andrade, “conto é
tudo o que o autor chama de conto”. E estamos conversados. Com minhas sucessivas
mudanças, a Ficção com Oscuro Amore acabou sumindo, inclusive
os originais. Ele não é era lá essas coisas, mas era
também todas essas coisas de um ainda jovem Werneck tateando na ficção,
totalmente sem jeito, sem saber onde o troço ia parar. Literalmente: tanto que
meio à moda do Finnegans Wake de
James Joyce (não à toa eu citava o finnicius joyceano) ele iniciava e findava
com as mesmas palavras, como num eterno retorno.
Aos poucos, eu me esqueci dessa
minha primeira e única aventura ficcional. E também do colírio: às vezes ficava
meses, às vezes até anos sem pingar o maledeto.
Cada vez que voltava ao oftalmologista carioca levava uma bronca daquelas.
Pingava então durante um, dois meses... e relaxava. Passaram anos, muitos anos
– não tantos como aquele pasarán más de
mil años, muchos más/ yo no sé si tenga amor la eternidad ”de “Sabor a mí”,
aquele eterno bolero de muitos anos. E a minha melódia do glaucoma lembrava
mesmo um tristíssimo e esquecido bolero.
Em 2007, já em Cataguases,
consulto um “oftal”, pois o grau de meus óculos já não atendia à demanda.
Surpresa: ele não conseguiu acertar de modo algum o meu grau: o glaucoma estava
avançado e a catarata “obnubilava” que nem a Niagara Falls (menos, menos: vamos dizer, as Cataratas do Iguaçu). Indicado,
procurei outro médico, que desconhecia completamente. O sujeito foi taxativo (na verdade, de uma grossura sem par): “não adianta colírio, não
adianta mais nada. Em menos de seis meses você estará cego”. Saí dali às cegas,
e não era pra menos. Voltei pra casa arrasado, meio que no desespero – e não
consegui dormir.
De noite na cama eu não pensava se “você me ama”, mas sim no meu
amigo, o pianista Paulinho Cego, cegueta mesmo que só ele, mas sempre
bem-humorado. Lembrei de uma noite em
que faltou luz no famigerado Edifício 200, em Copacabana, onde eu morava nos
anos 60 com os bateristas Tião e Afonsinho. Paulinho estava lá, pois tinha um
show com o Afonsinho numa boate das redondezas. Desciam os dois pela escuridão
da escada quando Paulinho soltou sua máxima: “segura no ceguinho, que agora é a
minha vez de guiar”.
Tentava rir, ao rememorar o episódio. Mas só pensava numa coisa: pegar
o carro e partir pro Rio na manhã seguinte. Pra ver outro médico? Não, pra ver
o mar pela última vez. Aí me levantei, e já ia pegar um inexistente cigarro
(não fumo há mais de 20 anos), quando cheguei até a varanda, olhei as sombras
da noite, o vazio, o silêncio da cidade do interior. Foi quando “parei com o
mar” e soltei pra mim mesmo: “Deixa de nostalgia poética, Ronaldo. Deixa de frescura:
você tem sim que ir pro Rio, mas pra fazer uma consulta com um especialista”. Dito e feito: nada tão grave assim: Fui operado de catarata e
glaucoma, e hoje estou enxergando tudo em cinemascope & technicolor.
E Oscuro amore? Não
ficou esquecido. Com o “susto do quase cegueta”, lembrava-me cada vez mais
dele. Em 2016, logo após minha cirurgia de glaucoma, pensei em procurar o Salim
Miguel (Victor Giudice já havia morrido há quase 20 anos), mas fiquei sabendo que ele
também morrera alguns meses antes. Lembrei então que podia procurar o Cícero Sandroni na Academia, quem sabe ele não
possuía a coleção completa de Ficção?
Mas sempre que fui ao Rio nesses últimos dois anos para revisões médicas, ou
mesmo para flanar como Baudelaire em Paris, ou cariocamente “bundear”, acabava me esquecendo do Cícero e de Oscuro amore.
Eis que, no final do ano passado, em função de meu livro sobre
Rosário Fusco, o professor, mestre em Literatura e escritor baiano Valdomiro
Santana fez contato comigo. Logo percebemos ter vários amigos em comum, muitos deles
escritores de quando morei em Salvador na década de 60, mortos a maioria,
outros de quando ele e eu moramos no Rio. Mas Valdomiro disse também algo que
me despertou: ele fora do Conselho Editorial de Ficção. Foi quando retomei mais uma vez a busca por meu conto.
Falei que acreditava que ele tivesse sido publicado no número 10 de Ficção. Ele me disse que tinha em casa
uma coleção, embora incompleta, mas que iria procurar.
Dias depois, recebo email do Valdomiro: nada. O número 10 não tinha
nenhum conto meu. Perguntou se eu tinha certeza de que ele havia sido
publicado. Disse que sim, que tinha um exemplar que havia sumido. Ele ficou de
fazer outra busca. Logo a seguir, recebo outro email dele. Não é que Valdomiro,
que agora chamo de meu “Sherlock baiano”, havia investigado minuciosamente e
acabara encontrando um professor em Brasília que... é melhor reproduzir o email
do Valdomiro, que diz melhor:
“Werneck,
Lembrei-me
do Wander Piroli, velho e saudoso amigo. Se fosse ele, aquele filho da mãe,
para lhe escrever esta mensagem, começaria dizendo: "Puta que pariu, seu
conto foi achado". A história do achamento: comecei a pesquisar na
internet os autores publicados por Ficção. Nada. Já ia desistir quando bateu a
sorte: encontrei um link de um cara chamado Alcmeno Bastos, professor
da Universidade de Brasília, que publicou numa revista de literatura
de lá um artigo sobre a história de Ficção. Descobri que tem um blog
e escrevi pra ele. Relembrei a revista e falei de seu conto. Ele
foi de uma atenção imediata e de rara gentileza. Achou e me enviou as
cópias anexadas: capa (dezembro de 1978, nº 36), sumário e
páginas em que aparecem os dados biográficos e o texto do conto
"Oscuro amore", que vou ler em casa, à noite, com calma, pois
estou trabalhando na universidade. Dizem que tudo é possível, menos duas
coisas: Deus pecar e dar gorgulho em sal. Então, agora, junte seu pessoal de
casa e cupinchas para contar esta novidade de 39 anos, o que é muito tempo
para quem estava esperando debaixo da chuva, e abra uma garrafa
respeitável para comemorar. Abraço do Valdomiro”.
Que dizer, senão
comemorar o “achamento” como me sugere o meu sherlockiano professor e amigo
Valdomiro Santana? E dar três vivas de agradecimentos ao também professor
Alcmeno Bastos, ora pois. Na verdade, Oscuro
amore não é propriamente uma grande joia (vejam o texto de
abertura-apresentação que escrevi na época, cheio de dedos e hesitações).
Embora, de certa forma, seja uma pequena joia: não importa a qualidade literária, é um texto que
vou guardar para sempre, lembrança de um tempo de quase cegueira. São assim os
ceguetas, né mesmo? Memória de elefante.
Vejam então a seguir a cópia do conto Oscuro amore que me foi enviada por
Valdomiro Santa via professor Alcmeno
Bastos,meus dois sherlockianos professores – e tal como foi publicado
na Revista Ficção.
ATENÇÃO:
Para ler em tamanho maior, clique sobre a imagem. Depois clique novamente nela com o botão direito do mouse, aparecerá uma janela, clique em: Abrir imagem em uma nova guia. A imagem abrirá então em uma outra aba (na parte de cima) e o mouse será substituído por uma lupa, que permitirá a ampliação da imagem. Ufa, pessoal! É meio confuso, mas no final dá certo. Se não deu, é porque vocês ainda não chegaram ao final.
3 comentários:
Que boa descoberta.
uai?!... e cadê o conto?
Oi, Ronaldo,
Li vários números da Ficção. Nessa época, 1978, eu ainda não escrevia publicamente. Gostava de fazer contos, mas não tive coragem de arriscar algum, mandando para a revista. Legal esse resgate. (Ricardo Alfaya)
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