Meu amigo Roberto Pereira Filho, o
Roberto Kimura – epíteto herdado do pai, o (des)temido chefe de disciplina do
Colégio Cataguases nos anos 1950 – acabou de completar 60 anos no último dia 3
de maio. O que me remete às várias de nossas aventuras nos quarenta anos de uma
sólida amizade.
Era aí pela metade dos anos 1980 em
Copacabana. Kimura morava comigo no apartamento da Constante Ramos e estávamos
sempre inventando festas, a casa cheia de amigos e amigas. Uma delas, eu me lembro
agora, uma festa natalina em pleno mês de junho. Um triste junho de chuva e
frio, climinha que tinha tudo a ver com o Natal. E foi o que fizemos. Chovia lá
fora e a noite estava tão ou ainda mais triste quanto na canção. Mas logo a
alegramos com o Papai Noel antecipado, aquele Natal de improviso, quando
choveram amigos e presentes. Éramos jovens e quase sempre alegres e festeiros
como nunca.
Cantoras habitués na
Constante
Sábado à tarde na Constante. Praia e feijoada: eu já meio dormindo, o indefectível cigarro sempre nas mãos. Kimura aciona amigos, cantoras e fãs para mais uma de nossas tradicionais festas. |
Kimura cantava, compunha, tocava
violão e acabou por atrair para o apartamento de Copa várias jovens cantoras
que ficaram habitués, constantes na Constante. Lembro-me de Eduarda Fadini, que
participou comigo – acompanhada pelo
quarteto do maestro Sérgio Botto e do próprio Kimura na voz e violão – do show Tônica com Guaraná, que dirigi no
Botanic, espaço “lítero-musical” do Jardim Botânico, então na moda.
Há alguns anos Eduarda fez no Teatro
Maison de France o espetáculo Andança,
sobre Beth Carvalho, no papel da própria. Quando ao final ela me viu, já no hall
do teatro, veio correndo ao meu encontro. Eu já estava de saída, tinha um
compromisso, e depois havia muita gente querendo cumprimentá-la. Eduarda me
abraçou, perguntou pelo Kimura e disse: “Nunca mais me esqueci de você, Ronaldo,
foi com você que fiz meu primeiro show!”. E lembrou-se do Botanic. Confesso que
pintou uma certa emoção. Não pensava que a Eduarda ainda se lembrasse de mim, e
menos ainda daquele show no Botanic.
Quem também marcou presença no
apartamento da Constante foi Mariana Leporace, que praticamente saiu lá de casa
direto para Los Angeles onde foi cantar
com a banda de Sérgio Mendes, que é casado com sua irmã, Gracinha Leporace. De
volta ao Rio, Mariana faz ainda hoje grandes apresentações na noite carioca e
tem vários discos gravados. Encontrei-me com ela há alguns anos no show que fez
na Lapa, no antigo Bar Semente, acompanhada pelo piano de minha amiga Sheila
Zagury. Primeira pergunta: cadê o Kimura?
E ainda Andréa Bogossian – “de voz
belíssima”, segundo meu saudoso amigo e grande ator Luiz Linhares. Minha grande e querida amiga Andréa, hoje
Andréa Dutra, minha parceira na canção Corpo
Ausente, que ela gravou em seu primeiro disco e regravou agora em 2021 em
seu novo álbum. Cantora de jazz como
poucas, ela fez shows memoráveis com seu quarteto na antológica Modern Sound, e
hoje atua com raro brilho no Arranco de Varsóvia. Ao lado de Kimura, Andréa
abriu o show de meu amigo e também parceiro (na canção Serigrafia) Carlinhos Vergueiro, que produzi em Cataguases no final
dos anos 1980.
Todas elas, essas belas cantoras, só
surgiram lá em casa e na minha vida por meio da amizade com o Kimura, que as
atraiu com aquele jeito afável, aquele afeto, aquele violão que deixava fascinadas
moças, moçoilas & quejandos. Havia, sempre houve, um quê de ingenuidade em
Kimura, qualquer coisa de pureza, de encantamento. Que se conservava em nossas
nem assim tão puras noitadas.
Abrindo a cortina do passado
Na verdade, nosso “escritório” mesmo
era o Bar do Nogueira no Baixo Copa, onde assinávamos ponto noite sim, noite
também, em meio à infinidade de notívagas damas, músicos, jornalistas, escritores,
dramaturgos, atores, cineastas, travestis, bambinas bambambãs no striptease e
coisas quetais. Foi naquelas mesas que escrevi grande parte dos
poemas-estilhaços-da-noite de meu livro Doris Day Night. No foco, day by night, a “noite americana”, fácil
e falsa, como no cinema.
O Nogueira era a salvação da madrugada
de Copa. Quando terminavam os shows das boates da Prado Jr & redondezas o
Nogueira se enchia da flora e da fauna da noite. Era uma só festa: nas noitadas
daqueles tempos a rua Ministro Viveiros de Castro não ficava nada a dever
àquela via Veneto da Dolce Vita.
Fellini daria tudo para estar lá, alguém duvida?
“Apliquei no Nogueira” várias de
minhas amigas, que sempre comigo ali estavam: as cantoras Andréa Dutra e
Neti Szpilman; a poeta e hoje atriz de sucesso Elisa Lucinda; a artista plástica
e gravadora Anna Carolina; a fotógrafa Mônica Botkay. Quem eu encontrava sempre
no Nogueira era meu saudoso amigo, o cineasta David Neves. Numa daquelas
noites, tomado por súbita nostalgia, David me confessou: “Sabe, Werneck,
gostaria de fazer um filme chamado Abre a
cortina do passado, a partir da
Aquarela do Ary Barroso”. Pena que não fez. Mas foi ali, na Prado Jr &
cercanias, com direto a tomadas no Bar do Nogueira, que David rodou o filme Fulaninha,estrelado por minha amiga
Kátia d´Angelo.
Bebel do Tiro
Pois é, meu caro David, vamos então
abrir a cortina do passado. E, cortina aberta, há que nos lembrarmos da bela Beatriz,
a Bebel do Tiro. Nós a conhecemos numa daquelas noitadas do Nogueira – e Kimura
a atraiu fingindo-se de tarólogo, mágico, leitor de mãos,
essas coisas. Leu as mãos de Bebel e a conquistou para nossa mesa. Noite
seguinte, ela apareceu com, vamos dizer, “um de seus pares de ocasião”– e fingiu
que não nos viu. Não era pra menos. Sentaram-se numa mesa ao lado da nossa e
logo percebemos que estavam discutindo. De repente, o cara sacou de um revólver
e atirou em Bebel, sentada ao seu lado.
Sorte pura: Bebel estava comendo uma
pizza e o tiro aconteceu na hora exata em que levava uma fatia à boca, a cabeça
abaixada. O estrondo foi assustador: a bala passou por cima da cabeça de Bebel
e estilhaçou o imenso vidro que ficava ao lado do caixa do Nogueira. O bar
ficou paralisado. O sujeito, que conseguiu a façanha de errar um tiro
à queima-roupa, levantou-se calmamente, foi
até o Nogueira, que estava pálido atrás do balcão, sacou de um cartão de visitas
e gritou: “Pode ligar e mandar a conta”.
Virou-se, pegou Bebel pelas mãos, entraram
num táxi e sumiram Copacabana afora, noite adentro. Kimura tremia, eu tremia,
Nogueira estava a ponto de desmaiar. Nunca mais Bebel, nunca mais romance,
nunca mais drink no dancing, diria Chico Buarque. Nunca mais aquele sujeito que
também nunca mais apareceu para pagar o estrago do espelho. Noites depois, o
Nogueira me diria: “melhor assim, Werneck, um cara como esse tem mesmo é que
sumir”.
Essa é apenas uma das muitas histórias
de nossas noitadas no Baixo Copa. Poderia estar em meu livro Doris Day by Night – não por acaso dedicado também ao amigo
Kimura e ao impagável Zé Maria, a figuraça que sempre nos acompanhava Copacabana
aforadentro – mas não, não havia como a história tragicômica de Bebel do Tiro
virar poema.
Cantando parece menino
Sempre que vínhamos a Cataguases,
Kimura se apresentava com voz e violão num bar que havia na Rodoviária, de
nossa bela amiga Isabel, também Bebel. A Bebel de Cataguases, que acabou partindo
pra Espanha (soube há pouco que mora ainda hoje em Madri). Levou o Memórias Póstumas de minha coleção do
Machado que eu emprestara – e desapareceu pra nunca mais. O bar da Bebel –
essa, esse –, ficava aberto a noite toda. Várias e várias vezes saímos de lá
com o sol já adentrando Cataguases lá pelos píncaros da pedreira. E Kimura
mandava de lá: “Salve/ Como é que vai?/ Amigo há quanto tempo/ Um ano ou mais/A
vida é um dilema/ Nem sempre vale a pena”. Aquela canção do Aldir Blanc de que
eu gostava e gosto tanto.
Na Cataguases de 1994, ele lança com
sucesso seu cd “Espelho do Tempo”, que se destacou na época como a primeira
gravação independente na Zona da Mata Mineira. Nas palavras de seu padrinho
musical, o compositor Paulinho Pedra Azul, "Kimura cantando parece menino/
e eu escutando e sendo menino/ e o povo das mesas, todos, menino/ e a pequena
rima repete menino".
Como um adivinho, Pedra Azul vasculha
na memória e encontra o Kimura de 1975, com seu primeiro violão. E, logo em
seguida, autodidata, curtindo os progressivos e se desmanchando diante do som
de mineiros do calibre de Milton, Beto Guedes, Toninho Horta, Flávio Venturini,
Lô Borges, e dele próprio, Paulinho Pedra Azul. Enfim, aqueles que um dia,
meninos como ele, sonhavam em fazer seu som correr mundo, correr perigo.
Amigo, há quanto
tempo
Depois, Kimura sumiu por uns tempos pras
bandas de Belo Horizonte. Eu estava lá lançando um de meus livros e, ao passar por
ele numa noite de Belô, não o reconheci. Só vi que era o próprio quando ele
cantarolou de lá: “Salve, como é que vai?”. Estava de terno e gravata o meu amigo,
e ainda por cima cortara a longa cabeleira. Havia casado, virara executivo, trabalhava
numa grande estatal, era técnico em informática, ou coisa que o valha.
Durou pouco. Na virada deste século
voltamos praticamente juntos pra Cataguases e ele, já descasado e ex-executivo, veio
trabalhar comigo, me auxiliando nas edições de vídeo-poemas que eu começava a
fazer. Isso durou um bom tempo. Ele estava sempre aqui em casa, almoçava, e
comia sempre umas bananinhas: “banana é essencial pra saúde, meu poeta”, dizia Kimura.
Ele era e sempre foi “de casa”. Kimura e suas tiradas, sua bananal filosofia,
como na dubiedade da marcha carnavalesca do Braguinha: “Yessss, nós temos
bananas! Bananas pra dar e vender. Banana, menina, contém vitamina. Banana
engorda e faz crescer”.
Kimura, Maikóvski & Dilma
Nestes
últimos vinte anos/ Nada de novo há/ No rugir das tempestades./ Não estamos
alegres/ É certo./ Mas por que haveríamos/ De estar tristes? Num de seus
últimos shows aqui em Cataguases, realizado em 2015 no antigo Bar Confrarias,
Kimura me convidou para falar esse poema de Maiakóvski – “E então, o que
quereis?”– na abertura da canção que ele iria cantar. Isso porque ele servia
como introdução à música Corsário, de
João Bosco & Aldir Blanc. Exatamente como Bosco fez, indicado por Aldir, na
gravação de 1986 (composta em 1975, em plena época da repressão militar). Na
verdade, os versos de Maiakóvski dialogam em surdina com a letra de Aldir
Blanc.
Maikóvski: O mar da
história/ é agitado. As ameaças /e as guerras/ havemos de atravessá-las/
rompê-las ao meio/ cortá-las/ como uma quilha/ corta/ as ondas”. Aldir Blanc: Meu coração tropical está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre
gelado/ e a voz vibra e a mão escreve mar./ Bendita lâmina grave que fere a
parede e traz/ as febres loucas e
breves/ que mancham o silêncio e o cais.
Um ano depois do show de Kimura, sou
surpreendido pelo discurso de despedida de Dilma Roussef em 2016, que ela fecha
com trechos do mesmo poema de Maiakósvki: “Encerro compartilhando com vocês um belíssimo
alento do poeta russo Maiakovski”, diz Dilma:Não estamos alegres, é certo,/ Mas também por que razão haveríamos de
ficar tristes?/O mar da história é agitado/As ameaças e as guerras, haveremos
de atravessá-las,/Rompê-las ao meio,/Cortando-as como uma quilha corta.".
O apreço não tem preço
Sou agora tomado de espanto com esses
seus sessenta anos, meu caro Kimura. Como, amigo? Há quanto tempo! Uns 40 anos
ou mais. É sempre assim. Eu desejava um
trago. Não sei quando eu lhe pago. Se vê depois. Estou desempregado. Ê, vida
ruim. Você está bem disposto. Também sofri. Mas não se vê no rosto. Pode ser.
Você foi mais feliz. Dei mais sorte com a Beatriz.
A Beatriz? Será a Bebel do Tiro, a
Bebel da Rodoviária, ou essa Beatriz do
Aldir? Pois é, tudo bem. Pra frente é que se anda. Você se lembra
dela? Não. Minha memória é fogo. E o l´argent? Defendo algum no jogo. E amanhã?
Toma mais um. Já amolei bastante. De jeito algum. Muito obrigado, amigo. Não tem de quê. Por
você ter me ouvido. Amigo é pra essas coisas. Sua amizade basta. O apreço não
tem preço. Eu vivo ao Deus dará. Pois é, o apreço não tem preço. Nós
vivemos ao Deus dará, agora e sempre.
Amigo é pra essas coisas, querido
Kimura. O apreço não tem preço. Salve, salve todas as Bebeis e seus decibeis. Salve
meu sexagenário amigo em plena juventude de seu violão e de suas bananas.
Bananas que é bom a gente dar assim, os braços cruzados sobre o cotovelo, como
me disse certa vez Rosário Fusco: “À noite, o Cristo Redentor cruza os braços
para uma banana carioca”. Braços bananais devidamente cruzados para a vida que
nos sufoca – pra vida quando é ruim. Salve-se quem puder, inclusive a
Marieta, “que a coisa aqui tá preta”.
Copa, 23.10.1988. Finda a festa dos 45 e já de pernas pro ar: sempre da pá-virada. Foto Kimura |
Ronaldo Werneck
Cataguases, 05/05/22
6 comentários:
Belíssimo texto, poeta.
Uma grande homenagem.
Muito obrigado meu amigo Ronaldo Werneck! Esse, foi o melhor presente aos sessenta anos!
Um belo texto, uma bela homenagem ao meu grande amigo Kimura
Meu caro Ronaldo, como fiquei feliz com sua homenagem ao meu querido afilhado e seu grande amigo, Robertinho. Ele merece muito. E, como diziam, um eterno "menino". De uma doçura e amizade sincera. Abraço poeta.
Não é anônimo: Maria do Carmo Santos Pereira
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