10 de mai. de 2022

ROBERTO KIMURA SESSENTÃO: ABRE A CORTINA DO PASSADO

Meu amigo Roberto Pereira Filho, o Roberto Kimura – epíteto herdado do pai, o (des)temido chefe de disciplina do Colégio Cataguases nos anos 1950 – acabou de completar 60 anos no último dia 3 de maio. O que me remete às várias de nossas aventuras nos quarenta anos de uma sólida amizade.

Era aí pela metade dos anos 1980 em Copacabana. Kimura morava comigo no apartamento da Constante Ramos e estávamos sempre inventando festas, a casa cheia de amigos e amigas. Uma delas, eu me lembro agora, uma festa natalina em pleno mês de junho. Um triste junho de chuva e frio, climinha que tinha tudo a ver com o Natal. E foi o que fizemos. Chovia lá fora e a noite estava tão ou ainda mais triste quanto na canção. Mas logo a alegramos com o Papai Noel antecipado, aquele Natal de improviso, quando choveram amigos e presentes. Éramos jovens e quase sempre alegres e festeiros como nunca.

 

Cantoras habitués na Constante

Sábado à tarde na Constante. Praia e feijoada: eu já meio dormindo,
o indefectível cigarro sempre nas mãos. Kimura aciona amigos,
cantoras e fãs para mais uma de nossas tradicionais festas. 

Kimura cantava, compunha, tocava violão e acabou por atrair para o apartamento de Copa várias jovens cantoras que ficaram habitués, constantes na Constante. Lembro-me de Eduarda Fadini, que participou comigo –  acompanhada pelo quarteto do maestro Sérgio Botto e do próprio Kimura na voz e violão – do show Tônica com Guaraná, que dirigi no Botanic, espaço “lítero-musical” do Jardim Botânico, então na moda.

Há alguns anos Eduarda fez no Teatro Maison de France o espetáculo Andança, sobre Beth Carvalho, no papel da própria. Quando ao final ela me viu, já no hall do teatro, veio correndo ao meu encontro. Eu já estava de saída, tinha um compromisso, e depois havia muita gente querendo cumprimentá-la. Eduarda me abraçou, perguntou pelo Kimura e disse: “Nunca mais me esqueci de você, Ronaldo, foi com você que fiz meu primeiro show!”. E lembrou-se do Botanic. Confesso que pintou uma certa emoção. Não pensava que a Eduarda ainda se lembrasse de mim, e menos ainda daquele show no Botanic.

Quem também marcou presença no apartamento da Constante foi Mariana Leporace, que praticamente saiu lá de casa direto para  Los Angeles onde foi cantar com a banda de Sérgio Mendes, que é casado com sua irmã, Gracinha Leporace. De volta ao Rio, Mariana faz ainda hoje grandes apresentações na noite carioca e tem vários discos gravados. Encontrei-me com ela há alguns anos no show que fez na Lapa, no antigo Bar Semente, acompanhada pelo piano de minha amiga Sheila Zagury. Primeira pergunta: cadê o Kimura?

E ainda Andréa Bogossian – “de voz belíssima”, segundo meu saudoso amigo e grande ator Luiz Linhares.  Minha grande e querida amiga Andréa, hoje Andréa Dutra, minha parceira na canção Corpo Ausente, que ela gravou em seu primeiro disco e regravou agora em 2021 em seu novo  álbum. Cantora de jazz como poucas, ela fez shows memoráveis com seu quarteto na antológica Modern Sound, e hoje atua com raro brilho no Arranco de Varsóvia. Ao lado de Kimura, Andréa abriu o show de meu amigo e também parceiro (na canção Serigrafia) Carlinhos Vergueiro, que produzi em Cataguases no final dos anos 1980.

Todas elas, essas belas cantoras, só surgiram lá em casa e na minha vida por meio da amizade com o Kimura, que as atraiu com aquele jeito afável, aquele afeto, aquele violão que deixava fascinadas moças, moçoilas & quejandos. Havia, sempre houve, um quê de ingenuidade em Kimura, qualquer coisa de pureza, de encantamento. Que se conservava em nossas nem assim tão puras noitadas.

 

Abrindo a cortina do passado


Na verdade, nosso “escritório” mesmo era o Bar do Nogueira no Baixo Copa, onde assinávamos ponto noite sim, noite também, em meio à infinidade de notívagas damas, músicos, jornalistas, escritores, dramaturgos, atores, cineastas, travestis, bambinas bambambãs no striptease e coisas quetais. Foi naquelas mesas que escrevi grande parte dos poemas-estilhaços-da-noite  de meu livro Doris Day Night. No foco, day by night, a “noite americana”, fácil e falsa, como no cinema.

O Nogueira era a salvação da madrugada de Copa. Quando terminavam os shows das boates da Prado Jr & redondezas o Nogueira se enchia da flora e da fauna da noite. Era uma só festa: nas noitadas daqueles tempos a rua Ministro Viveiros de Castro não ficava nada a dever àquela via Veneto da Dolce Vita. Fellini daria tudo para estar lá, alguém duvida?

“Apliquei no Nogueira” várias de minhas amigas, que sempre comigo ali estavam: as cantoras Andréa Dutra e Neti Szpilman; a poeta e hoje atriz de sucesso Elisa Lucinda; a artista plástica e gravadora Anna Carolina; a fotógrafa Mônica Botkay. Quem eu encontrava sempre no Nogueira era meu saudoso amigo, o cineasta David Neves. Numa daquelas noites, tomado por súbita nostalgia, David me confessou: “Sabe, Werneck, gostaria de fazer um filme chamado Abre a cortina do passado, a partir da Aquarela do Ary Barroso”. Pena que não fez. Mas foi ali, na Prado Jr & cercanias, com direto a tomadas no Bar do Nogueira, que David rodou o filme Fulaninha,estrelado por minha amiga Kátia d´Angelo.

 

Bebel do Tiro

Pois é, meu caro David, vamos então abrir a cortina do passado. E, cortina aberta, há que nos lembrarmos da bela Beatriz, a Bebel do Tiro. Nós a conhecemos numa daquelas noitadas do Nogueira – e Kimura a atraiu fingindo-se de tarólogo, mágico, leitor de mãos, essas coisas. Leu as mãos de Bebel e a conquistou para nossa mesa. Noite seguinte, ela apareceu com, vamos dizer, “um de seus pares de ocasião”– e fingiu que não nos viu. Não era pra menos. Sentaram-se numa mesa ao lado da nossa e logo percebemos que estavam discutindo. De repente, o cara sacou de um revólver e atirou em Bebel, sentada ao seu lado.

Sorte pura: Bebel estava comendo uma pizza e o tiro aconteceu na hora exata em que levava uma fatia à boca, a cabeça abaixada. O estrondo foi assustador: a bala passou por cima da cabeça de Bebel e estilhaçou o imenso vidro que ficava ao lado do caixa do Nogueira. O bar ficou paralisado. O sujeito, que conseguiu a façanha de errar um tiro à queima-roupa,  levantou-se calmamente, foi até o Nogueira, que estava pálido atrás do balcão, sacou de um cartão de visitas e gritou: “Pode ligar e mandar a conta”.

Virou-se, pegou Bebel pelas mãos, entraram num táxi e sumiram Copacabana afora, noite adentro. Kimura tremia, eu tremia, Nogueira estava a ponto de desmaiar. Nunca mais Bebel, nunca mais romance, nunca mais drink no dancing, diria Chico Buarque. Nunca mais aquele sujeito que também nunca mais apareceu para pagar o estrago do espelho. Noites depois, o Nogueira me diria: “melhor assim, Werneck, um cara como esse tem mesmo é que sumir”.

Essa é apenas uma das muitas histórias de nossas noitadas no Baixo Copa. Poderia estar em meu livro Doris Day by Night – não por acaso dedicado também ao amigo Kimura e ao impagável Zé Maria, a figuraça que sempre nos acompanhava Copacabana aforadentro – mas não, não havia como a história tragicômica de Bebel do Tiro virar poema.

 

Cantando parece menino

Sempre que vínhamos a Cataguases, Kimura se apresentava com voz e violão num bar que havia na Rodoviária, de nossa bela amiga Isabel, também Bebel. A Bebel de Cataguases, que acabou partindo pra Espanha (soube há pouco que mora ainda hoje em Madri). Levou o Memórias Póstumas de minha coleção do Machado que eu emprestara – e desapareceu pra nunca mais. O bar da Bebel – essa, esse –, ficava aberto a noite toda. Várias e várias vezes saímos de lá com o sol já adentrando Cataguases lá pelos píncaros da pedreira. E Kimura mandava de lá: “Salve/ Como é que vai?/ Amigo há quanto tempo/ Um ano ou mais/A vida é um dilema/ Nem sempre vale a pena”. Aquela canção do Aldir Blanc de que eu gostava e gosto tanto.

 

Na Cataguases de 1994, ele lança com sucesso seu cd “Espelho do Tempo”, que se destacou na época como a primeira gravação independente na Zona da Mata Mineira. Nas palavras de seu padrinho musical, o compositor Paulinho Pedra Azul, "Kimura cantando parece menino/ e eu escutando e sendo menino/ e o povo das mesas, todos, menino/ e a pequena rima repete menino".

Como um adivinho, Pedra Azul vasculha na memória e encontra o Kimura de 1975, com seu primeiro violão. E, logo em seguida, autodidata, curtindo os progressivos e se desmanchando diante do som de mineiros do calibre de Milton, Beto Guedes, Toninho Horta, Flávio Venturini, Lô Borges, e dele próprio, Paulinho Pedra Azul. Enfim, aqueles que um dia, meninos como ele, sonhavam em fazer seu som correr mundo, correr perigo.

 

Amigo, há quanto tempo

Depois, Kimura sumiu por uns tempos pras bandas de Belo Horizonte. Eu estava lá lançando um de meus livros e, ao passar por ele numa noite de Belô, não o reconheci. Só vi que era o próprio quando ele cantarolou de lá: “Salve, como é que vai?”. Estava de terno e gravata o meu amigo, e ainda por cima cortara a longa cabeleira. Havia casado, virara executivo, trabalhava numa grande estatal, era técnico em informática, ou coisa que o valha.

Durou pouco. Na virada deste século voltamos praticamente juntos pra Cataguases e ele, já descasado e ex-executivo, veio trabalhar comigo, me auxiliando nas edições de vídeo-poemas que eu começava a fazer. Isso durou um bom tempo. Ele estava sempre aqui em casa, almoçava, e comia sempre umas bananinhas: “banana é essencial pra saúde, meu poeta”, dizia Kimura. Ele era e sempre foi “de casa”. Kimura e suas tiradas, sua bananal filosofia, como na dubiedade da marcha carnavalesca do Braguinha: “Yessss, nós temos bananas! Bananas pra dar e vender. Banana, menina, contém vitamina. Banana engorda e faz crescer”.

 

Kimura, Maikóvski & Dilma

 


Nestes últimos vinte anos/ Nada de novo há/ No rugir das tempestades./ Não estamos alegres/ É certo./ Mas por que haveríamos/ De estar tristes? Num de seus últimos shows aqui em Cataguases, realizado em 2015 no antigo Bar Confrarias, Kimura me convidou para falar esse poema de Maiakóvski – “E então, o que quereis?”– na abertura da canção que ele iria cantar. Isso porque ele servia como introdução à música Corsário, de João Bosco & Aldir Blanc. Exatamente como Bosco fez, indicado por Aldir, na gravação de 1986 (composta em 1975, em plena época da repressão militar). Na verdade, os versos de Maiakóvski dialogam em surdina com a letra de Aldir Blanc.

Maikóvski: O mar da história/ é agitado. As ameaças /e as guerras/ havemos de atravessá-las/ rompê-las ao meio/ cortá-las/ como uma quilha/ corta/ as ondas”. Aldir Blanc: Meu coração tropical está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve mar./ Bendita lâmina grave que fere a parede e traz/  as febres loucas e breves/ que mancham o silêncio e o cais.

Um ano depois do show de Kimura, sou surpreendido pelo discurso de despedida de Dilma Roussef em 2016, que ela fecha com trechos do mesmo poema de Maiakósvki: “Encerro compartilhando com vocês um belíssimo alento do poeta russo Maiakovski”, diz Dilma:Não estamos alegres, é certo,/ Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?/O mar da história é agitado/As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,/Rompê-las ao meio,/Cortando-as como uma quilha corta.".

 

O apreço não tem preço

Sou agora tomado de espanto com esses seus sessenta anos, meu caro Kimura. Como, amigo? Há quanto tempo! Uns 40 anos ou mais. É sempre assim. Eu desejava um trago. Não sei quando eu lhe pago. Se vê depois. Estou desempregado. Ê, vida ruim. Você está bem disposto. Também sofri. Mas não se vê no rosto. Pode ser. Você foi mais feliz. Dei mais sorte com a Beatriz.

A Beatriz? Será a Bebel do Tiro, a Bebel da Rodoviária,  ou essa Beatriz do Aldir?  Pois é, tudo bem. Pra frente é que se anda. Você se lembra dela? Não. Minha memória é fogo. E o l´argent? Defendo algum no jogo. E amanhã? Toma mais um. Já amolei bastante. De jeito algum.  Muito obrigado, amigo. Não tem de quê. Por você ter me ouvido. Amigo é pra essas coisas. Sua amizade basta. O apreço não tem preço. Eu vivo ao Deus dará. Pois é, o apreço não tem preço. Nós vivemos ao Deus dará, agora e sempre.

Amigo é pra essas coisas, querido Kimura. O apreço não tem preço. Salve, salve todas as Bebeis e seus decibeis. Salve meu sexagenário amigo em plena juventude de seu violão e de suas bananas. Bananas que é bom a gente dar assim, os braços cruzados sobre o cotovelo, como me disse certa vez Rosário Fusco: “À noite, o Cristo Redentor cruza os braços para uma banana carioca”. Braços bananais devidamente cruzados para a vida que nos sufoca – pra vida quando é ruim. Salve-se quem puder, inclusive a Marieta,  “que a coisa aqui tá preta”.

Copa, 23.10.1988. Finda a festa dos 45 e já
de pernas pro ar: sempre da pá-virada. Foto Kimura


Ronaldo Werneck

Cataguases, 05/05/22

 

6 comentários:

Acir Vidal disse...

Belíssimo texto, poeta.
Uma grande homenagem.

Kimura Filho disse...

Muito obrigado meu amigo Ronaldo Werneck! Esse, foi o melhor presente aos sessenta anos!

Fernando Cortes Domingues disse...

Um belo texto, uma bela homenagem ao meu grande amigo Kimura

Fernando Cortes Domingues disse...

Anônimo disse...

Meu caro Ronaldo, como fiquei feliz com sua homenagem ao meu querido afilhado e seu grande amigo, Robertinho. Ele merece muito. E, como diziam, um eterno "menino". De uma doçura e amizade sincera. Abraço poeta.

Anônimo disse...

Não é anônimo: Maria do Carmo Santos Pereira